sábado, 12 de maio de 2012

José Paulo Paes (A Revolta das Palavras [Uma Fábula Moderna])


Era uma Vez um Conto, parte 2
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Como as personagens desta história são palavras, nada mais natural que ela aconteça nas páginas de um dicionário.

O dicionário é uma espécie de pomar. Só que as suas árvores, em vez de serem árvores de frutas, são árvores de palavras.

Cada uma das letras do alfabeto é uma árvore onde estão penduradas as palavras que começam por essa letra. Assim, “abacate” pertence à letra A, “banana” à letra B, “caqui” à letra C, e assim por diante.

A ordem por letra inicial, isto é, a ordem alfabética, ajuda a gente a encontrar rapidamente as palavras quando quer descobrir o que cada uma delas significa.

Por exemplo, vocês sabem o que significa “ábaco”? Se não sabem, é só ir ao dicionário, procurar a letra A, localizar nela “ábaco”, e ler a sua definição.

Aí ficarão sabendo que “ábaco” é uma moldura com arames, ao longo dos quais há bolinhas coloridas que a gente pode movimentar. Movimentando essas bolinhas, conseguimos fazer rapidamente somas e subtrações.

Pois bem: o dicionário só funciona quando cada palavra está corretamente classificada pela sua letra inicial. Se estiver classificada por engano em alguma outra letra, aí é muito difícil achá-la.

Mas a dificuldade será muitíssimo maior se a definição da palavra estiver trocada.

Imaginem, por exemplo, que vocês vão procurar na letra V a definição de “verdade” e lá encontram isto: "Idéia, juízo ou opinião falsos".

Claro que essa não é a definição de “verdade”, e sim a definição de “mentira”, pois falso é aquilo que não é verdadeiro.

Felizmente, nos dicionários, isso nunca acontece.

Mas costuma acontecer muito na vida fora do dicionário. E, toda vez que acontece, engana as pessoas e desmoraliza ou bagunça o significado das palavras.

Foi por causa disso que houve a Revolta das Palavras. Um dia, elas se cansaram de estar sendo usadas de maneira errada por pessoas sem escrúpulos, que só queriam tirar vantagens para si, sem se importar de causar prejuízo aos outros.

Certa noite, numa hora em que os dicionários não estavam sendo usados, elas fizeram uma reunião. A reunião foi presidida pelas duas palavras mais prejudicadas pelo mau uso - ou seja, a Verdade e a Mentira.

- Minhas irmãs - disse a Verdade -, nós precisamos tomar providências para acabar com os abusos na maneira como somos usadas. A mim, me usam constantemente as pessoas desonestas quando querem se aproveitar da ingenuidade de gente de boa-fé.

- É isso mesmo - confirmou a Mentira. - Os desonestos também abusam de mim quando chamam de mentiroso alguém que diga algo verdadeiro que possa prejudicá-los. E, embora eu não queira, sou obrigada a servir de disfarce das más intenções deles.

- Para acabar com esses abusos, minhas irmãs - concluiu a Verdade -, só há uma solução. De agora em diante, todas nós devemos nos recusar a ser mal-usadas. Assim, quando alguém quiser dizer ou escrever uma mentira disfarçada de verdade, não conseguirá. Porque, em vez de eu aparecer, mandarei no meu lugar a Mentira.

- E se um desonesto - confirmou a Mentira - quiser chamar uma verdade de mentira, não adianta me chamar que eu não irei. No meu lugar mando a Verdade. Vocês todas, façam isso também, não se deixem explorar.

As outras palavras bateram palmas para a proposta das duas presidentas e juraram, a uma só voz, que cumpririam ao pé da letra o que ficara combinado na reunião.

No dia seguinte começaram a acontecer as coisas mais estranhas pelo mundo afora.

Enquanto tomava o seu café da manhã, o Industrial teve a pior surpresa de sua vida quando abriu o jornal e leu o anúncio que mandara publicar. Bufando de raiva, telefonou imediatamente para o Publicitário:

- Você é um incompetente, um irresponsável! Como teve a audácia de escrever, no anúncio que redigiu para a minha indústria, que os nossos produtos estão muito longe de ser os melhores do mundo?

- Eu nunca escrevi isso! Só pode ter sido erro do jornal! - respondeu, aflito, o Publicitário.

Por telefone, o Industrial reclamou com o Dono do Jornal.

- Na hora de ser impresso, o anúncio foi conferido e estava tudo em ordem. Só pode ter sido sabotagem de algum agitador ou coisa de feitiçaria! - justificou-se, consternado, o Dono do Jornal.

Nessa mesma hora, o Comerciante estava arrancando os cabelos de raiva porque, na fachada do seu supermercado, havia um cartaz escandaloso. Em vez de dizer que os preços dos produtos ali vendidos eram os mais baixos, dizia que eles eram iguais ou até um pouco mais altos que os dos outros supermercados.

E o susto do Político entrevistado pela televisão quando disse diante das câmeras, sem saber por que nem como, que não cumpriria nenhuma das promessas feitas aos seus eleitores e que se elegera apenas para ganhar dinheiro?

Eu poderia ficar horas e horas contando muitos outros fatos estranhíssimos acontecidos naquele mesmo dia. Aconteceram a quem, como o Industrial, o Publicitário, o Dono do Jornal, o Comerciante e o Político, costuma dizer mentiras publicamente, com a maior cara-de-pau, só para se aproveitar da boa-fé dos outros.

Mas se eu fosse contar tudo isso, a história da Revolta das Palavras ia ficar comprida demais, e eu sei que ninguém gosta de histórias muito esticadas, cheias de repetições.

Por isso, vou apenas acrescentar que nesse mesmo dia inesquecível a Incompreensão foi fazer uma queixa à Verdade e à Mentira. Reclamou que o Poeta continuava mentindo sem que nada acontecesse a ele.

- Imaginem vocês que ele escreveu "A laranja madura é um sol sobre a mesa"! Onde se viu confundir uma bola pequena como a laranja com uma bola enorme como o sol? E se a laranja fosse tão quente como o sol, a mesa pegava fogo na mesma hora!

- Não é bem assim - explicaram a Verdade e a Mentira. - A poesia diz as coisas de modo tão original, tão fora do comum, que parece estar mentindo o tempo todo. Mas pense bem: não é o sol que amadurece as frutas? E o amarelo brilhante da laranja não é como o amarelo do sol que tivesse descido do céu até a terra?

Ah! eu quase ia esquecendo de dizer que tudo isso aconteceu num dia 2 de abril.

Isso porque, se o dia 1º de abril é o Dia da Mentira, nada mais justo que o dia seguinte sirva para desmenti-lo e fique marcado no calendário, de hoje em diante, como o Dia da Desmentira.

Na manhã do Dia da Desmentira, as bibliotecárias de todas as bibliotecas do mundo fugiram apavoradas de seus locais de trabalho porque, quando lá chegaram, os dicionários estavam às gargalhadas, fazendo uma barulheira de estourar ouvido de surdo e de pôr fantasma para correr.

Talvez vocês estejam pensando aí com os seus botões que, afinal de contas, se durou apenas um dia, a Revolta das Palavras não adiantou coisa alguma.

Mas se pensam assim, se enganam.

De agora em diante - eu aposto -, todos vocês vão prestar mais atenção no que dizem as pessoas aproveitadoras, para ver se elas estão mesmo dizendo a verdade quando prometem mundos e fundos.

Sempre que vocês fizerem isso, lembrem-se de encostar bem o ouvido ao dicionário. Talvez consigam escutar lá dentro uma porção de risadinhas.

Fonte:
Era uma vez um conto. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002.
Moacyr Scliar; José Paulo Paes; Milton Hatoum; Marcelo Coelho; Drauzio Varella

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