Essas moças e moços - quase sempre muito jovens -, que de vez em quando aparecem para me entrevistar, perguntam sempre - quase sem exceção - como foi que comecei a escrever. Esperam que eu diga o momento exato em que me apareceu a vocação, se foi de dia ou de noite, se comecei a escrever o livro, direto, e fui até o ponto final, e por aí vai. Perguntam muito também sobre a minha vida, o que aconteceu, e depois, e depois, e depois... Tento explicar, na medida do possível, que a vida da gente não é uma sequência, como numa história em quadrinhos, em que um fato acontecido num quadro tem a sua lógica no quadro seguinte; e que a nossa memória também não é uma coisa contínua, uma lembrança sucedendo a outra. Eles ficam meio decepcionados, mas procuro satisfazê-los contando alguma coisa da minha vida. Pelo menos os pedaços de que me lembro.
Bem, quando adolescente resolvi ser atriz. É que passara por Fortaleza uma companhia de operetas e, é lógico, fiquei toda alvoroçada. Meu pai, do sertão, me comprou uma assinatura para duas pessoas e me mandou para a cidade. Acompanhada de uma velha amiga da família, fomos a todas as récitas (menos a Casta Susana, que era imprópria). Essa temporada me virou a cabeça.
Nunca mais perdi companhia teatral de passagem pela terra; e, na falta, ia aos espetáculos dos amadores locais. Estava decidida a minha vocação. Ia ser atriz. Lia toda peça de teatro em que punha a mão, me sonhava uma grande atriz, uma Duse, ou, no mínimo, uma Lucilia Peres. Mas nunca falei desses sonhos a ninguém: fracassando, ninguém poderia me fazer cobranças. Verdade que eu antes quisera ser violinista. Por causa de uma foto saída numa revista de uma violinista (ou pianista?) polonesa, por nome Luba; tinha cabelo ruivo, trajava veludo preto, com uma cauda longa que arrastava atrás de si, como uma onda. A dificuldade é que eu nunca tivera a mínima musicalidade, nunca chegara perto de um piano ou de um violino. Só a figura da artista me encantava; o instrumento era acessório. Guardei anos aquela página recortada, com a imagem colorida da Luba.
Muito cedo me meti a escrever, porque na nossa casa livro e leitura tinham lugar principal. Pessoa que não lesse (e que não escrevesse um pouco, nem que fosse às escondidas) não era propriamente um ser humano.
Mas eu era a única menina no meio de quatro irmãos: imagine-se as críticas deles todos gozando a "literata"! Assim, na moita, aos 12, 14 anos, é que fazia os meus contos; estava na fase romântica, - Victor Hugo, Dumas, Rostand - Ah, Cirano! (no colégio as freiras me obrigaram muito cedo a ler francês). E José de Alencar (Diva), e Júlio Diniz (Fidalgos da Casa Mourisca), e até Camilo (Amor de Perdição). Claro que nos meus contos pululavam as noites sombrias, os amores impossíveis, os pais ferozes, as traições e as juras. Contudo, mal dava o ponto final no dramalhão, eu tratava de rasgar tudo, com medo do patrulhamento dos meninos e - horror dos horrores - que minha mãe, ela sim, com o seu bom gosto literário, os descobrisse. Para não correr riscos e porque me parecia mais bonito, eu fazia uma fogueirinha no quintal com os meus escritos e os meninos começaram a dizer que eu andava fazendo bruxaria - ideia que, aliás, me agradou enormemente. E, então, inventei um ritual: consumida a fogueira, enterrava cuidadosamente as cinzas.
Tentei então fazer versos; mas em versos eu era ainda pior. Não esperava para os queimar nem que chegasse o dia seguinte, liquidava-os recém-nascidos.
Com 15 anos me diplomei em professora. O que não foi uma boa ideia: saindo do curso tão cedo, não tinha nenhuma base de estudo; precisei refazer sozinha tudo o que devera ter estudado numa faculdade. Por sorte, fomos então morar na fazenda, onde havia a grande livraria de minha mãe; nela iniciei o meu curso particular de literatura. A leitura me ficou como uma obsessão. Lia de dia, lia de noite. Como no sertão não havia luz elétrica, meu pai me arranjou um foto-mobile: é um castiçal oco onde se enfia uma vela; e à medida em que a vela se consome, é impulsionada para cima por uma mola que a mantém sempre à mesma altura; coroando tudo, uma pequena manga de vidro que protege a chama contra o vento. Noite havia em que eu consumia até três velas e das grossas!
Esqueci de contar que antes da fase romântica, atravessei a fase Júlio Verne. Eram uns volumes encadernados em pano, com figuras relativas às aventuras dos heróis, ilustrando a capa. Tradução de Portugal, letrinha miúda. Me encarnei nos filhos do Capitão Grant, dei a volta ao mundo em 80 dias, fiz sete semanas em um balão, fui num foguete à Lua. Mas, acima de todos, a grande paixão: Vinte Mil Léguas Submarinas. Acho que se puxasse pela memória, ainda seria capaz de repetir de cor algumas frases do Capitão Nemo!
Eu ia pelos 16 anos quando me meti a fazer uma "carta de leitor" para um jornal de Fortaleza, comentando com alguma irreverência a recente eleição da Rainha dos Estudantes. Prudentemente assinei a peça com um pseudônimo: Rita de Queluz (aproveitando minhas iniciais). A carta agradou; e na Fortaleza daquele tempo, puseram-se a procurar quem seria aquela Rita, acabaram descobrindo. E eu fui então ser jornalista. Fazia uma crônica por semana, tomava conta da página literária.
De lá pra cá não teve mais jeito. Já "veterana" aos 18 anos, deu-me um impulso de escrever um livro, um romance. Só o mostrei a meu pai e minha mãe quando estava pronto. Foi O Quinze, publicado em l930.
De lá até hoje não parei mais, quer em jornal, quer em livro. Mas não posso dizer que foi propriamente uma vocação. Nunca nos meus sonhos juvenis pensei em me tornar uma escritora. O que eu queria mesmo era ser atriz. Jamais o fui. Nunca pisei num palco, nem mesmo de amadores. Como nunca vesti um vestido longo, de veludo preto, segurando na mão, com elegância, a grande cauda suntuosa.
E é isso aí, meus queridos. A vida da gente é assim, sem nada planejado, feita aos pedaços como um quebra-cabeça onde sempre falta - ou se perdeu, alguma daquelas peças coloridas.
Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo . 07 de setembro de 2002
Bem, quando adolescente resolvi ser atriz. É que passara por Fortaleza uma companhia de operetas e, é lógico, fiquei toda alvoroçada. Meu pai, do sertão, me comprou uma assinatura para duas pessoas e me mandou para a cidade. Acompanhada de uma velha amiga da família, fomos a todas as récitas (menos a Casta Susana, que era imprópria). Essa temporada me virou a cabeça.
Nunca mais perdi companhia teatral de passagem pela terra; e, na falta, ia aos espetáculos dos amadores locais. Estava decidida a minha vocação. Ia ser atriz. Lia toda peça de teatro em que punha a mão, me sonhava uma grande atriz, uma Duse, ou, no mínimo, uma Lucilia Peres. Mas nunca falei desses sonhos a ninguém: fracassando, ninguém poderia me fazer cobranças. Verdade que eu antes quisera ser violinista. Por causa de uma foto saída numa revista de uma violinista (ou pianista?) polonesa, por nome Luba; tinha cabelo ruivo, trajava veludo preto, com uma cauda longa que arrastava atrás de si, como uma onda. A dificuldade é que eu nunca tivera a mínima musicalidade, nunca chegara perto de um piano ou de um violino. Só a figura da artista me encantava; o instrumento era acessório. Guardei anos aquela página recortada, com a imagem colorida da Luba.
Muito cedo me meti a escrever, porque na nossa casa livro e leitura tinham lugar principal. Pessoa que não lesse (e que não escrevesse um pouco, nem que fosse às escondidas) não era propriamente um ser humano.
Mas eu era a única menina no meio de quatro irmãos: imagine-se as críticas deles todos gozando a "literata"! Assim, na moita, aos 12, 14 anos, é que fazia os meus contos; estava na fase romântica, - Victor Hugo, Dumas, Rostand - Ah, Cirano! (no colégio as freiras me obrigaram muito cedo a ler francês). E José de Alencar (Diva), e Júlio Diniz (Fidalgos da Casa Mourisca), e até Camilo (Amor de Perdição). Claro que nos meus contos pululavam as noites sombrias, os amores impossíveis, os pais ferozes, as traições e as juras. Contudo, mal dava o ponto final no dramalhão, eu tratava de rasgar tudo, com medo do patrulhamento dos meninos e - horror dos horrores - que minha mãe, ela sim, com o seu bom gosto literário, os descobrisse. Para não correr riscos e porque me parecia mais bonito, eu fazia uma fogueirinha no quintal com os meus escritos e os meninos começaram a dizer que eu andava fazendo bruxaria - ideia que, aliás, me agradou enormemente. E, então, inventei um ritual: consumida a fogueira, enterrava cuidadosamente as cinzas.
Tentei então fazer versos; mas em versos eu era ainda pior. Não esperava para os queimar nem que chegasse o dia seguinte, liquidava-os recém-nascidos.
Com 15 anos me diplomei em professora. O que não foi uma boa ideia: saindo do curso tão cedo, não tinha nenhuma base de estudo; precisei refazer sozinha tudo o que devera ter estudado numa faculdade. Por sorte, fomos então morar na fazenda, onde havia a grande livraria de minha mãe; nela iniciei o meu curso particular de literatura. A leitura me ficou como uma obsessão. Lia de dia, lia de noite. Como no sertão não havia luz elétrica, meu pai me arranjou um foto-mobile: é um castiçal oco onde se enfia uma vela; e à medida em que a vela se consome, é impulsionada para cima por uma mola que a mantém sempre à mesma altura; coroando tudo, uma pequena manga de vidro que protege a chama contra o vento. Noite havia em que eu consumia até três velas e das grossas!
Esqueci de contar que antes da fase romântica, atravessei a fase Júlio Verne. Eram uns volumes encadernados em pano, com figuras relativas às aventuras dos heróis, ilustrando a capa. Tradução de Portugal, letrinha miúda. Me encarnei nos filhos do Capitão Grant, dei a volta ao mundo em 80 dias, fiz sete semanas em um balão, fui num foguete à Lua. Mas, acima de todos, a grande paixão: Vinte Mil Léguas Submarinas. Acho que se puxasse pela memória, ainda seria capaz de repetir de cor algumas frases do Capitão Nemo!
Eu ia pelos 16 anos quando me meti a fazer uma "carta de leitor" para um jornal de Fortaleza, comentando com alguma irreverência a recente eleição da Rainha dos Estudantes. Prudentemente assinei a peça com um pseudônimo: Rita de Queluz (aproveitando minhas iniciais). A carta agradou; e na Fortaleza daquele tempo, puseram-se a procurar quem seria aquela Rita, acabaram descobrindo. E eu fui então ser jornalista. Fazia uma crônica por semana, tomava conta da página literária.
De lá pra cá não teve mais jeito. Já "veterana" aos 18 anos, deu-me um impulso de escrever um livro, um romance. Só o mostrei a meu pai e minha mãe quando estava pronto. Foi O Quinze, publicado em l930.
De lá até hoje não parei mais, quer em jornal, quer em livro. Mas não posso dizer que foi propriamente uma vocação. Nunca nos meus sonhos juvenis pensei em me tornar uma escritora. O que eu queria mesmo era ser atriz. Jamais o fui. Nunca pisei num palco, nem mesmo de amadores. Como nunca vesti um vestido longo, de veludo preto, segurando na mão, com elegância, a grande cauda suntuosa.
E é isso aí, meus queridos. A vida da gente é assim, sem nada planejado, feita aos pedaços como um quebra-cabeça onde sempre falta - ou se perdeu, alguma daquelas peças coloridas.
Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo . 07 de setembro de 2002
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