quarta-feira, 26 de março de 2014

Joracy Camargo (Os mendigos)

Estamos diante da porta principal de uma velha igreja. No interior, a luz morta dos templos.

E eis ali um homem de cinquenta anos, barbas e cabelos compridos, olhar sereno, expressões messiânicas, em suma, uma cabeça que despertaria a atenção dos pintores retratistas; chapéu de feltro, velho e esburacado, paletó esfarrapado bem amplo, com os enormes bolsos cheios, volumosos; calças também escuras, remendadas "à la diable"; botinas velhas, deixando ver alguns dedos sem meias. Com uma bengala tosca nas mãos e um maço de jornais amarrotados.

É um mendigo.

Hélio anda com o desembaraço de homem velho, mas sadio. Ao avistar um rapaz que se aproxima, finge, instantaneamente e com muita prática, um  grande abatimento, uma expressão de angustioso sofrimento; e, apoiando-se na bengala, simula sentar-se a custo sobre os jornais que atirara no primeiro degrau da escada.

Estende o chapéu a um rapaz que, sem olhar, atira uma moeda, que ele apanha.

- Deus lhe pague... – diz Hélio, que olha para dentro da igreja e para os lados antes de ajeitar melhor os jornais, a bengala e o chapéu, tomando posição cômoda e definitiva para o trabalho...

 Olha em direção à rua e observa que outro mendigo se aproxima - mesma idade, mesmos farrapos, mas de aparência pior, porque revela um grande abatimento físico. Está mesmo esquálido e faminto.

Hélio distraidamente estende-lhe o chapéu:

- Ah! Desculpe... – diz sorridente. - Não tinha reparado que você é colega... Posso saber o seu nome?

- André. Ainda não fiz nada hoje, velhinho. Mas tenho cigarros. Aceita um?

- São bons?

- Hoje, até as pontas que consegui apanhar são de cigarros ordinários! – Diz, tirando do bolso uma latinha cheia de pontas de cigarros. – Sirva-se.

- Muito obrigado – agradece Hélio. - Não fumo cigarros ordinários. Quer um charuto?

- Olha lá! Aceito sim – exclama André espantado.

- É Havana! – torna Hélio. - Tenho muitos! Custam 10$000 cada um.

- Aceito, porque nunca tive jeito para roubar...

- Nem eu.

- Não foram roubados? – pergunta André.

- Foram comprados. Ainda não sou ladrão...

- Desculpe. É que...

- Não é preciso pedir desculpas. Não sou ladrão, mas podia sê-lo. É um direito que me assiste.

- Acha? – espanta-se André, sentando-se na escada

- Acho, mas sempre preferi trabalhar. Como trabalhar nem sempre é possível, resolvi pedir esmola, antes que fosse obrigado a roubar. Pedir dá menos trabalho.

- E é por isso que você pede?

- Só por isso. Conhece a história do mundo?

- Não.

- Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?

- Eu não fui...

Hélio acrescenta com ar sério:

- Não foi ninguém. Os espertalhões, no princípio do mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a Justiça e a Polícia...

- Pra quê?

- Para prender e processar os que vieram depois. Hoje, quem se apropria das coisas é processado pelo crime de apropriação indébita. Por quê? Porque eles resolveram que as coisas pertencessem a eles...

- Mas quem foi que deu?

- Ninguém. Pergunte ao dono de uma faixa de terra na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, se ele sabe explicar por que razão aquela faixa é dele...

- Ora! É fácil. Ele dirá que comprou ao antigo dono.

- E o antigo dono?

- Comprou de outro.

- E o outro?

- De outro.

- E este outro?

- Do primeiro dono.

- E o primeiro dono, comprou de quem?

- De ninguém. Tomou conta.

- Com que direito? – e acrescenta: - Sem direito nenhum. Naquele tempo não havia leis. Depois que um pequeno grupo dividiu tudo entre si é que se fizeram os Códigos. Então, passou a ser crime... para os outros, o  que para eles era uma coisa natural...

- Mas – retruca André - os que primeiro tomaram conta das terras eram fortes e podiam garantir a posse contra os mais fracos.

- Isso era antigamente. Hoje os chamados donos não são fortes e continuam na posse do que não lhes pertence.

- Já sei: garantidos pela polícia, pelas classes armadas...

- Sim. Garantidos pelos que também não são donos de nada, mas que foram convencidos de que devem fazer respeitar uma divisão na qual não foram aquinhoados.

- E você pretende reformar o mundo? – torna André.

- Tinha pensado nisso, mas depois compreendi que a humanidade não precisa do meu sacrifício. Porque o número de infelizes avoluma-se assustadoramente...

- E foi por isso que desistiu de reformar o mundo? – pergunta André, sorrindo.

- Foi. Abandonei a sociedade e resolvi pedir-lhe o que me pertence. Exigir é impertinência; pedir é um direito universalmente reconhecido. Dá prazer a quem se pede, não causa inveja. Você já reparou que ninguém é contra o mendigo? Por que será? Porque o mendigo é o homem que desistiu de lutar contra os outros.

- Os homens não precisam de nós...

- Precisam, sim. - Precisam, mas não dependem; e é por isso que nos olham com ternura.

- Ora!... Quem é que precisa de um mendigo?

- Todos! Eles precisam muito mais de nós, do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: "Quem dá aos pobres, empresta a Deus", confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus... Não há generosidade na esmola: há interesse. Os pecadores dão, para aliviar seus pecados; os sofredores, para merecer as graças de Deus. Além disso, é com a miséria de um níquel que eles adiam a revolta dos miseráveis...

- Mas quando agradecem a Deus, revelam o sentimento da gratidão.

- Não há gratidão – afirma Hélio. - Só agradece a Deus quem tem medo de perder a felicidade. Se os homens tivessem certeza de que seriam sempre felizes, Deus deixaria de existir, porque só existe no pensamento dos infelizes e dos temerosos da infelicidade. Quem dá esmola pensa que está comprando a felicidade, e os mendigos, para eles são os únicos
vendedores desse bem supremo.

- A felicidade é tão barata... – diz André desanimado.

- Engana-se. É caríssima. Barata é a ilusão. Com um tostãozinho compra-se a melhor ilusão da vida, porque quando a gente diz: "Deus lhe pague...", o esmoler pensa que no dia seguinte vai tirar cem contos na loteria... Coitados! São tão ingênuos... Se dar uma esmola, um mísero tostão à saída de um cabaré, onde se gastaram milhares de tostões em vícios e corrupções, redimisse pecados e comprasse a felicidade, o mundo seria um paraíso! O sacrifício é que redime. Esmola não é sacrifício! É sobra. E resto. É a alegria de quem dá porque não precisa pedir.

- Você é contra a esmola?

- Sou a meu favor e contra os outros. A sociedade exige que eu peça. Eu peço. E foi pedindo que me vinguei dela.

- Como assim?!

- Porque, obrigado a pedir, fui obrigado a enriquecer!

- Você é rico?! – indaga André meio em segredo.

- Riquíssimo! Não tive outro remédio...

- Há de me explicar como foi obrigado a ficar rico.

Hélio toma novamente um ar sério:

- A sociedade é muito defeituosa, meu velho. Pela lógica, o mendigo deveria ser sempre pobre. Pelo menos, enquanto fosse mendigo. Entretanto, pobres, realmente pobres, são os ricos. Pobres de espírito, pobres de tranqüilidade, de fraternidade, e, às vezes, até de dinheiro!

- Não estou entendendo nada...

Nisso, aquele senhor que entrara na igreja sai, visivelmente preocupado, agitado, indeciso.

Mais que depressa André lhe pede:

- Uma esmolinha pelo amor de Deus!...

Mas foi em vão – o homem nada lhe dá.

Hélio, por sua vez, também pede, estendendo-lhe o chapéu:

- Favoreça, em nome de Deus, a um pobre que tem fome!...

Aquele homem lhe dá uma esmola e sai agitadíssimo. André irrita-se.

- Conhece esse sujeito? – pergunta Hélio.

- Não.

- É o Vieira de Castro, presidente do Consórcio das fábricas de tecidos. Milionário. Tanto quanto eu! Observou a aflição desse homem, procurando igrejas a esta hora da noite? Sabe o que significa um momento de contrição religiosa de um milionário? - Egoísmo. Lutas entre eles! Miséria!... Pior do que a nossa!

- Do que a minha?!...

- Sim, porque a minha faria inveja ao homem mais rico do mundo... A minha miséria é a miséria mais confortável que há, pois...

André interrompe a conversa:

- Mas não me explicou ainda como foi obrigado a fazer fortuna.

- Pedindo e guardando. Fui obrigado a guardar, porque a sociedade me impedia de gastar. Esta roupa, que recebi como esmola, visto-a há 25 anos. Substituí-la por uma nova seria desmoralizar a minha profissão... Logo, fui obrigado a economizar, pelo menos, o valor de dois ternos por ano... cinqüenta ternos. Vinte e cinco contos!

- A 500$000 cada um?

- É quanto me custam agora... Obrigado a comer os restos de comida que os outros me davam, calculo a minha economia, por baixo, em 6$000 diários... sem gorjetas...

André faz os cálculos:

- Cento e oitenta por mês... 2 vezes nada, nada; 2 vezes 8, 16; 2 vezes 1, 2 e um 3; uma vez nada, nada; 1 vez 8, 8; 1 vez 1, 1; 6, 11 e vão 2. Dois contos cento e sessenta por ano...

- Em 25...

- Mais de 50 contos.

- Agora – orienta Hélio - acrescente outras despesas, como cinemas, teatros, esportes e certos luxos que me pareceram inconvenientes para um mendigo, e compreenderá como pode um mendigo enriquecer e um rico empobrecer.

- Tem razão.

- Nós vivemos acumulando as sobras da sociedade. E a sociedade pensa que as sobras não fazem falta... É a ilusão do lucro, porque não há lucro. O que há é uma necessidade menor no momento em que o dinheiro é maior. Quando a necessidade aumenta, o que era lucro passa a ser prejuízo. Se você não tiver necessidade de comprar um automóvel, não sentirá falta do dinheiro que ele custa. Se você não tiver nenhuma necessidade, o dinheiro que tiver no bolso será lucro. É sobra. Pouco se lhe dá deitá-la fora. E nós, os mendigos, somos a lata de lixo da humanidade.

- Mas você é rico mesmo?!

- Sou. Mas não tenho culpa nenhuma disso...

- E pretende continuar esmolando?

- Até o fim da vida. Não me dá trabalho nenhum... Não pago imposto, não estou sujeito a incêndio nem a falência...

- Mas - argumenta André - se vivesse dos rendimentos, também não precisaria trabalhar. Por que não emprega o seu dinheiro na indústria, no comércio ou na lavoura?

- Para quê, se não tenho necessidade de arriscar o meu capital?!

- Em compensação, ganharia muito mais.

- Puro engano. O lucro maior não é a maior quantidade de dinheiro que sobra. No comércio ou na indústria, quem ganha mais precisa gastar mais. No meu caso, dá-se o contrário: quanto mais ganho, menos preciso e devo gastar, para ganhar mais e mais. E depois, o que faço não é ganhar; é cobrar o que a sociedade me deve. E cobro humildemente, suavemente, em prestações módicas.

- Quanto lhe deve a sociedade?

- Tanto quanto deveria caber a mim, se houvesse uma divisão "camarada".

- Comigo essa gente tem sido muito caloteira... – diz André tristemente.

- É que você não sabe cobrar... - Como é que você pede uma esmola?

- Como todos os mendigos: "Uma esmola pelo amor de Deus!..."

- Isso é passadismo!... Ninguém mais ouve esse pedido. Deus é uma palavra sem expressão. Quando se diz "Ai, meu Deus!" - é como se estivesse dizendo: "Ora bolas!". Você nunca ouviu um ateu dizer: "Graças a Deus sou ateu"?

Fonte:
Joracy Camargo. Deus lhe Pague. primeiro ato

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