terça-feira, 11 de março de 2014

Machado de Assis (Metafísica das rosas)

Pour la rose, le jardinier est immortel, car de mémoire de rose, on n’a pas vu mourir un jardinier.
Fontenelle.


LIVRO PRIMEIRO

No princípio era o Jardineiro. E o Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para glória e contemplação das Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas, os galhos, os troncos e botões. Criou a terra e o estrume. Criou as árvores grandes para que amparassem o toldo azul que cobre o jardim e a chácara, e ele não caísse e esmagasse as Rosas. Criou as borboletas e os vermes. Criou o sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.

Grande é o Jardineiro! Suas longas pernas são feitas de tronco eterno. Os braços são galhos que nunca morrem; a espádua é como um forte muro por onde a erva trepa. As mãos, largas, espalham benefícios às Rosas.

Vede agora mesmo. A noite voou, amanhã clareia o céu, cruzam-se as borboletas e os passarinhos, há uma chuva de pipilos e trinados no ar. Mas a terra estremece. É o pé do Jardineiro que caminha para as Rosas. Vede: traz nas mãos o regador que borrifa sobre as Rosas e água fresca e pura, e assim também sobre as outras plantas, todas criadas para glória das Rosas. Ele o formou no dia em que, tendo criado o sol, que dá vida às Rosas, este começou a arder sobre a terra. Ele o enche de água todas as manhãs, uma, duas, cinco, dez vezes. Para a noite, pôs ele no ar um grande regador invisível que peneira orvalho; e quando a terra seca e o calor abafa, enche o grande regador das chuvas que alagam a terra de água e de vida.

LIVRO II

Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:

— Que tendes vós, que inclinais as pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o jardim; criei o sol e os ventos frescos; derramo sobre vós o orvalho e a chuva; criei todas as plantas para que vos amem e vos contemplem. A minha mão detém no meio do ar os grandes pássaros para que vos não esmaguem ou devorem. Sois as princesas da terra. Por que inclinais as pétalas para o chão?

Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse.

O Jardineiro sacudiu a cabeça com um gesto terrível; o jardim e a chácara estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que trazia:

— Dei-vos tudo e não estais satisfeitas? Criei tudo para vós e pedis mais? Pedis a contemplação de outros olhos; ides tê-la. Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e ame.

E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão. No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos, mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto, soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.

E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:

— Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores, as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras.

LIVRO III

O homem e a mulher tiveram filhos e os filhos outros filhos, e disseram eles entre si:

— O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres.

Então vieram à chácara e ao jardim, e bailaram e riram, e giraram em volta das Rosas, cortejando-as e sorrindo para elas. Vieram também outros e cantaram em verso os merecimentos da Rosas. E quando queriam falar da beleza de alguma filha das mulheres faziam comparação com as Rosas, porque as Rosas são as maiores belezas do universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e respira.

Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o Jardineiro disse-lhes: — Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um lugar de delícias que vos indicarei.

Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. E levando-as para fora do jardim, foram com elas a um lugar de delícias, misterioso e remoto, onde todos os filhos dos homens e todas as filhas das mulheres as adoram prostrados no chão. E depois que o Jardineiro manda embora o sol, pega das Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e uma por uma prega-as no toldo azul que cobre a chácara e o jardim, onde elas ficam cintilantes durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem a noite quando o sol vai descansar por trás das grandes árvores do ocaso.

Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os ventos, nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas sublimes.

Publicado originalmente em Gazeta Literária 1883

Fonte:
Portal Domínio Público

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