quinta-feira, 6 de março de 2014

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) Parte 1

(tradução Monteiro Lobato)

 Vou contar a história da grande guerra que Rikki-tikki tavi sustentou sozinha, na sala de banho dum grande bangalô do acantonamento de Segowlee. É verdade que Darzee, o passarinho-alfaiate, a ajudou, e Chuchundra, o rato mosqueado que nunca ousa caminhar pelo meio da casa e sempre passa deslizando ao longo das paredes, lhe deu um aviso. Isso, porém, foi pouco diante do muito que Rikki-tikki fez.

Era uma jovem mangusta, que pela cauda e pêlo se assemelhava a um gatinho, embora pela forma da cabeça e hábitos lembrasse a doninha. Tinha os olhos cor-de-rosa, e também a ponta do focinho; podia coçar-se com todas as patas, as de diante e as de trás, à vontade; podia também eriçar a cauda ao jeito dos chumaços de lavar garrafa, e seu grito de guerra, quando estava em casa nos campos, era Rikk-tikk-tikki-tikkitchek !

Certo dia as águas dum temporal de verão a arrastaram da toca onde vivia com os pais, e a levaram, a debater-se aflitíssima, para dentro dum valo que havia perto. Rikki agarrou-se a um tufo de ervas flutuantes e perdeu os sentidos. Quando voltou a si, estava numa rua de jardim iluminada pelo sol, com um menino na frente, que dizia:

- E uma mangusta morta. Vamos enterrá-la.

- Não, disse a mamãe. Vamos pô-la a secar, porque pode não estar bem, bem, bem morta.

E a recolheu dentro de casa, onde um homem a examinou e declarou que realmente não estava morta, mas apenas asfixiada; envolveram-na então em flanelas e a puseram perto do fogo... e Rikki-tikki logo abriu os olhos e espirrou.

- Bravos! - exclamou o homem (era um inglês que havia alugado o bangalô muito recentemente). - Agora é não a assustarem e veremos o que a pobrezinha faz.

A coisa mais difícil do mundo consiste justamente em assustar a mangusta, porque é um animalzinho da cabeça aos pés feito de curiosidade. Parece que a divisa da raça é: "Procura e descobre", e Rikki-tikki não desmentia as qualidades do seu povo. Provou logo a flanela que a envolvia e verificou não servir para comer; correu depois em redor da mesa, sentou-se, foi empoleirar-se sobre o ombro do menino.

- Não tenha medo, Teddy, disse-lhe o pai. Esse é o modo de as mangustas mostrarem amizade.

- Ui! Ela está-me fazendo cócegas no pescoço...

Rikki-tikki enfiou os olhos por entre a gola e o pescoço do menino, farejou-lhe as orelhas e depois veio dum salto ao chão, onde se sentou, esfregando o focinho.

- Meu Deus! - exclamou a mãe de Teddy. - Então é a isto que chamam animal selvagem? Será que compreende que somos bons para ela e mostra-se grata?

- Todas as mangustas são assim, disse o marido. Se Teddy não lhe puxar a cauda, nem procurar metê-la em gaiola, viverá em paz aqui dentro, correndo por toda a casa o dia inteiro. Vamos dar-lhe alguma coisa de comer.

Veio um pedaço de carne crua, que Rikki-tikki achou excelente. Depois que a comeu foi para a varanda e sentou-se ao sol, eriçando a cauda para fazê-la secar completamente. Estava já quase sarada.

- Há mais coisas a descobrir nesta casa do que a minha gente lá no mato verá em toda a sua vida, pensou consigo a mangustinha. Vou ficar por aqui.

E começou a correr o bangalô, peça por peça. No banheiro por um tico não morreu afogada. No escritório sujou a ponta do nariz no tinteiro e a queimou na brasa do charuto, ao saltar para o colo do pai de Teddy a fim de vê-lo manejar a pena. Ao cair da noite correu ao quarto do menino para ver a criada acender o lampião, e quando Teddy foi para a cama Rikkitikki fez o mesmo. Mas era má companheira, visto como se levantava cem vezes durante a noite para descobrir a causa de todos os barulhinhos. Os pais de Teddy tinham vindo dar no filho a última vista d'olhos e lá encontraram a mangusta, muito esperta, deitada no travesseiro.

- Não gosto disto, declarou a mamãe. Ela é capaz de mordê-lo.

- Não morde, não, disse o pai. Teddy está mais seguro na companhia deste animalzinho do que se estivesse uma ama a guardá-lo. Se uma cobra entrasse no quarto agora...

No dia seguinte, muito cedo, Rikki-tikki veio à varanda para a refeição, repimpada no ombro de Teddy; recebeu uma banana e um pouco de ovo cozido, deixando-se tomar ao colo por todos os presentes. A mangusta bem educada procura tornar-se logo doméstica, e a mãe de Rikki, que já morara na casa do general comandante da região, lhe havia ensinado o que fazer, caso caísse nas mãos dos homens brancos.

Depois do almoço Rikki foi passear e observar o que havia pelo jardim. Era um grande jardim, mas um tanto largado, com tufos de roseiras Marechal Niel espessos qual moitas, e limoeiros e laranjeiras e touceiras de bambu enormes. Rikki-tikki lambeu os beiços de gosto.

- Que esplendido campo de caça! - disse, e a esse pensamento sua cauda se eriçou. Imediatamente se pôs a correr dum lado e doutro, farejando tudo. Súbito, ouviu lamentações doloridas que vinham de dentro duma moita de espinheiros.

Era Darzee, o passarinho-alfaiate e sua companheira. Moravam ali, tendo construído um belo ninho por meio da junção de duas folhas largas que coseram com fibras nos bordos; a concavidade assim formada fora enchida de paina. O ninho balouçava-se no ar, enquanto os donos, com os olhos no chão, piavam um choro triste.

- Que é que têm vocês? - perguntou Rikki-tikki.

- Somos muito infelizes, respondeu Darzee. Um dos nossos filhotes caiu do ninho, e Nag o devorou.

- Hum ! exclamou Rikki-tikki. O caso é realmente triste. Mas sou nova por aqui e não sei quem é Nag.

Darzee e a companheira, em vez de responderem, recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça com o cabelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de taraxaco - e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.

- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para mim e treme, mangusta !

A cobra retesou o mais que pode o seu cabelo, e Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.

Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las. Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.

- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda eriçou-se de novo. Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direi to de comer os filhotes de passarinho que caem do poleiro?

Nag vigilava os menores movimentos do ervaçal que se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no jardim – simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag molejou o corpo e disse:

- Conversemos ... Você come ovos. Por que não havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.

- Olhe para trás, olhe para trás ! cantou disfarçadamente Darzee.

Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso, sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki, ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.

- Malvado ! Malvado Darzee! exclamou Nag.

E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee, porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.
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continua…
 
Fonte:
Rudyard Kipling. O Livro da Jângal.

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