segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Engazopadeira)


A SÔNIA PASSA A MÃO no telefone celular e liga para a amiga. Assim que ela atende, fala. Aliás, não fala, grita:
—  Vânia, minha boa amiga, ufa! Até que enfim a sorte me sorriu. Estou ligando pela trigésima vez. Graças a Deus consegui te encontrar.
— O que você manda, Sônia?
— Quero comprar um tênis novo. O meu furou. Você pode tirar um na sua conta?

Silêncio momentâneo:
— Vânia, Vânia, por tudo quanto é sagrado. Você está aí?
— Claro, claro. Estou. Tem que ser hoje? — Indaga a amiga sabendo, todavia, qual a resposta que ouviria:
— Agora, quero dizer, se você puder, amiga.
— Tudo bem. Daqui duas horas, pode ser?
— Duas horas, Vânia?
— Tenho visitas em casa. Meus sogros chegaram de Santa Catarina. Dentro de duas horas, acredito, estarei liberada. 

Sônia não desiste e persevera com insistência. Berra, a voz descomedida: 
— Caraca, amiga. Duas horas? 
— Sim, duas horas ou mais. Preciso acomodá-los, preparar o almoço...
— Sendo assim, o que se há de fazer? O jeito é esperar. Você me pega aqui em casa, de carro?
— Não dá para a gente se encontrar lá na porta do shopping ou você vir até aqui?

O silêncio, desta vez, parte do lado de quem implora socorro:
— Sônia, ainda está aí? Sônia, Sônia... alô...
Sônia reaparece. Chora:
— Estou mal de bolso, Vânia. De bolso e de bolsa. Só tenho comigo os vales transportes para ir e voltar amanhã para o trabalho. Sabe como é. Final de mês. Ainda não recebi...
— Tudo bem. Passo por aí. Fique pronta.
— Você não se chateia de eu estar sempre te torrando a paciência?
— Chateação é doença.

Para quebrar e aliviar o pedido chato feito à sua salvadora, Sônia cessa o choro ensaiado e põe fim ao teatrinho mentiroso. Imediatamente volta e ataca. Pergunta:
— E o Marcos, como está?
— Viajando...
— Que homem de sorte. Para onde, desta vez?
— Salvador. Foi participar de um Congresso sobre medicina nuclear.
— Nuclear?
— É.

A Sônia, além de pegajosa, tem o perverso dom de querer ser engraçada, sem ser, logicamente. Força a barra:
— Por acaso ele vai consultar seres extraterrestres recém-chegados do espaço?
Risos:
— Não, Sônia. Medicina nuclear é outra coisa...
— Mas o Marcos não é cardiologista?
— Sim. Cardiologista com especialização em cintilografia de perfusão miocárdica.

— E onde entra esse negócio de nuclear?
— Medicina nuclear, Sônia, é aquela medicina que envolve o uso de material radioativo (isótopo ou radioisótopo ou rádio fármaco) para diagnosticar e tratar certas doenças. São usadas quantidades muito pequenas de materiais radioativos (inofensivos para a saúde em quantidades escassas), mas que permitem seja feitas “fotos” da área do corpo que seu médico deseja examinar.

— Fotos?
— Isso mesmo, Sônia. Essas imagens fornecem informações sobre as funções dos órgãos e sistemas do nosso organismo. Enquanto a radiologia faz imagem da estrutura (da forma), a medicina nuclear faz uma imagem prévia da acomodação e da maneira como esta pode estar alterada em determinada doença. Muitas vezes, essas técnicas se completam, tornando mais exato o diagnóstico.
— Nossa, vejo que você está por dentro!

— Esqueceu que sou casada com um médico vinte e quatro horas por dia?
— Garota de sorte! Tudo bem. Voltando ao nosso compromisso, espero você aqui na portaria do prédio dentro de duas horas. Pelo leite que mamou na sua mãe, não vá me deixar plantada.
— Fique tranquila.

Vânia, em vista do trânsito moroso, passa alguns minutos do horário combinado. Quando chega, a espevitada da Sônia se faz à espera, impaciente, mãos na cintura. Parece uma fera enjaulada. Foram numa das lojas do shopping, no centro e, lá, a amiga passou o cartão para trinta dias, direto, sem juros. As coisas acalmaram aí.

Menos de vinte dias depois, Vânia recebe outros telefonemas de Sônia, todos com a mesma insistência e petulância que marcavam a sua conduta. O negócio era atender ou a outra não daria trégua:
— Oi, amiga, tudo bem? Sou eu de novo!...
— Não me diga, amiga Sônia, que está com o dinheiro do tênis que lhe comprei e quer adiantar o pagamento?
— Não, ainda está longe...
— Mas fale. Sou inteira ouvidos.

De novo, em cena a mesma historinha: 
— Vânia, será que você me faria um grande favor? Aliás, um “grandississíssimo” favor?
— Se estiver ao meu alcance...
— Sabe o que é minha linda? Eu tenho um casamento, no sábado, para ir com o Waldir. Sou a madrinha. Estou pelada, amiga. Peladérrima. Da cabeça aos pés. Não sei o que é uma calcinha nova faz bom tempo. Meu guarda-roupa anda mixuruca.  Meio nada por inteiro, essa é a verdade. Você tiraria um Risco de Giz preto no seu cartão?

Vânia não pode deixar de cair na gargalhada:
— Risco de Giz?
— Exato. É um terninho riscado. Tem esse nome.
— Mas você nem pagou o tênis que lhe comprei! Não vai ficar meio apertado para seu lado?
— De jeito nenhum. Olhe, não se preocupe. Um dia antes do vencimento, eu deposito o dinheiro na sua conta... ou mando um Pix ou PicPay. Em última alternativa, você passa aqui na portaria do meu apê e eu lhe entrego pessoalmente, sem problemas. Você sabe que não deixo furos. Ainda mais com você, que tanto tem me quebrado os galhos.

Vânia, como sempre, alma pura, prestativa, coração aberto, se deixa ser levada:
— Amigas são para essas coisas. Me liga amanhã?
— Não, não, tem que ser hoje. O Waldir... bem, o Waldir já falou com o pai e o pai dele, meu sogro, deu o terno de presente. Temos um jantar...  e ele queria... ele queria que eu fosse com o terninho. Então, eu...
— Está bem. Venha aqui em casa.
Silêncio constrangedor momentâneo:

— Desculpe, Vânia. Estou desprevenida, como da derradeira vez...
— Está bem. Pego você às oito horas em ponto.
— Não dá para ser agora? Eu...
— Sônia, o Marcos vai chegar dentro de dez minutos com uns amigos, para jantar. Estou ocupadíssima. Não podia nem estar falando contigo... estou dando uma força à Lídia, minha empregada...
— Desculpe. Puxa! Só contava com você. Vou tentar dar meus pulos...
— Tá legal, amiga. Às oito horas em ponto.

Sônia, radiante, dá vivas e urras de alegria:
— OK, Vânia. Estarei na portaria...

O tênis vence e nem sinal da Sônia. O terninho Risco de Giz, idem. Sequer, um telefonema. Vânia nos dias seguintes, liga reiteradas vezes para a amiga. Nada. Igualmente para o marido dela, o Waldir. Qual o quê! Ambos simplesmente mudaram os números de seus telefones celulares e pior, de endereço. Conclusão: escafederam sem deixar pistas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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