domingo, 19 de fevereiro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Cotidiano número um)


DURANTE TODA A MINHA VIDA, nunca pensei confesso, nunca me passou pela cachola, sinceramente falando, que um dia fosse me cansar. E pior, cansar de viver. Hoje, aos sessenta e nove, compreendo, a gente se cansa sim, de tudo. De todos. Se melindra, se farta, se enraivece, se desgasta, com bobagens, a ponto de se incomodar com uma coisa banal procurada ao acaso, tipo (uma caneta, uma camisa, um par de meias) que por algum motivo não estava no lugar onde deveria ser encontrada.

De tudo é possível se cansar. Mas, de viver, de viver é quase surreal, inimaginável e, de certa forma, desatinadamente insano. Fui pego para Cristo. Aconteceu comigo. Talvez um dia, não sei, idêntico fato ocorra com alguém do meu convívio. Cansar de viver. Cansar de estar sem fazer nada, é a mesma coisa que viver, ou melhor, vegetar num lugar distante como num útero acolhedor. Viver é como estar respirando por obrigação, por dever de ofício.

É levar uma vida estranha, imprópria, misteriosa, uma existência que não era minha, como se, em algum lugar do passado, eu a tivesse roubado de alguém. Geralmente a gente se sente fatigado e exausto, pelo árduo rotineiro do trabalho, de pegar a condução com pessoas saindo pelo ladrão, de criaturas sobrecarregadas, tanto para ir, como para voltar, de segunda a sexta, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.

Rotina estressante, é bem verdade. Todavia, se contínua, se avança, se desembesta, segue em frente, aos trancos e barrancos, sem parar, sem dar tréguas. A gente se aperreia dos elos que nos une. Nosso ser se agasta da casa, se desgosta da mulher, se enerva com os filhos, se entoja dos problemas que eles arranjam na escola, com os coleguinhas.

A certa altura da corrida contra o tempo, bate uma fadiga de todo santo dia ver as mesmas caras, os mesmos amigos. Aborrece parar no boteco da esquina, de almoçar sempre no restaurante mantido pela empresa... igual mesa, idêntico prato de comida, mesma garçonete (apesar da sainha curta que ela usa e do rostinho com um sorriso encantador).

Dá uma leseira mórbida dos companheiros que recontam as velhas e surradas piadas ou, expõem, incansavelmente, as tarefas postas sob as suas responsabilidades. A gente se abomba (1) dos parentes, dos irmãos chatos, das brincadeiras sem graça e repetitivas, das fofocas, do quadro sistêmico que não se altera nunca.

A gente procura se esquivar da mediocridade que carregamos para baixo e para cima, como um fardo extremamente pesado e danoso à saúde. A gente se esfalfa (2) de olhar sempre pela mesma janela, ver a rua, respirar as casas, dar bom dia ou boa noite aos vizinhos, e as vistas miúdas pelo contemplar do mesmo quintal, os mesmos vasos de plantas, o mesmo lixo acumulado produzindo moscas a bel prazer na calçada suja da rua.

Na garagem o possante dos tempos do ronca. A lata velha caindo aos pedaços, os pneus gastos, o infeliz serve apenas para os finais de semana, ainda assim se sobrar uma merreca para a gasolina, o que nunca passa de uma volta na praia com a família. A gente se esbandalha (3) de respirar, de deitar todas as noites, levantar às cinco horas da matina, tomar o café correndo, e à noite, sentar o cansaço arreliado (4) no sofá sujo da sala.

Estou por aqui a alguns passos de jogar tudo para o alto. Me vejo cheio por ver o jornal maquiado, com tudo dando certinho. Passou dos limites assistir as propagandas maçantes, onde cada anunciante tem a solução milagrosa e na dose certa para fazer com que a gente compre o produto e aumente a conta da próxima fatura do cartão de crédito.  

Depois o mais degradante. Engolir a novela. Sempre a titica repetitiva. A gente se abodega (5) até os ossos dos filmes que, igualmente, se reincidem numa continuidade irritante e doentia. A mente se enraivece e se sobrecarrega da inconstância das mesmas coisas, sempre, sempre. Observo que nada muda. Tudo é sempre igual, como um caminhão abarrotado de japoneses, embora alguém viva anunciando por aí, que “nenhum dia é igual ao que passou...”. Pode até ser. Particularmente acho quem disse tremenda asneira, deveria se enforcar sem mais delongas, num pé de alface.

O fato é que chega uma hora, bate uma sensação de impotência, de sofrimento reprimido, de sonhos desfeitos, de planos não realizados. Do nada, aparece uma impressão tétrica de causa perdida, de tempo vivido à esmo, sem futuro, sem hoje e sem amanhã. É como se o próprio ceticismo pirrônico (6) que alimentamos no peito houvesse sido atingido por uma lança afiada e sangrasse pelas veias a derradeira gota do “eu” espúrio (7) que habita dentro de cada um de nós.

Sinto que estou prestes a engolfar a alma e me remeter às profundezas de um nada negro e sem volta. Nessas horas, a gente se pega abalado, se vê emocionalmente tolhido, amarrado, de pés e mãos, os olhos vendados, garganta apertada, indefeso, como se o mundo tivesse despencado do alto de um penhasco imenso e escolhesse cair exatamente sobre a nossa cabeça.

Tenho a impressão de que o medo me bate à porta com um estrondoso ruído, ao tempo em que o receio do que poderei encontrar lá fora (se abrir a guarda), me desassossegará o espírito e o porá em frangalhos. A gente, de uma forma ou de outra, se amofina das músicas, do romantismo, do amor, do amar, de como amar, de como renovar, a cada novo segundo, o carinho pela companheira de tantos janeiros sob o mesmo teto.

Mesmo caminho, a afeição pelos filhos. O aconchego pelos consanguíneos (pai, mãe, avô, bisavô) a turminha antiga e amarrotada que faz parte do esteio familiar cheio de pelancas. A gente se amua de tudo. Um sinistro prognóstico me lança à cova do abismo, e não só dela, da depressão e do terror. À linha disso, me invade uma vontade quase mórbida de não querer mais acordar.

De contrapeso, de colocar um basta definitivo, um ponto final, no meu viver, enfim, é difícil, complicado, inexplicável, inexorável. Não sei por que cargas d’água, esse vento de giro rápido resolveu embaralhar meus cabelos, levar para longe os meus planos para formalizar uma vida mais digna. Pois é: aconteceu comigo. Literalmente entediei. Grosso modo, me enfadei de... vejam se é possível uma coisa dessa natureza. Cansar de viver. EU CANSEI!

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Vocabulário enviado pelo autor:
1 Abomba – O que cansa ou deixa exausto.
2 Esfalfa – Tudo o que esgota ou causa fadiga.
3 Esbandalho – Estragar, quebrar, tirar da ordem.
4 Arreliado – Irritado, incomodado.
5 Abodega – Aquilo que emporcalha ou produz zanga.  
6 Pirrônico – Rabugento e teimoso.
7 Espúrio – Adulterado, ilegal ou viciado.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

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