segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Uma Historinha bem Antiga)


O Cambuci era balzaqueano (se posso usar essa palavra), pois o bairro tinha ainda trinta anos, na época em que se passa este fato.

Eu era menina pequena, morava em Itararé e estava de férias em São Paulo, na casa do juiz Dr. Oscar Martins de Mello, na rua que então se chamava Apiaí (nas placas a grafia era Apiahy). Hoje o nome é outro, que não me ocorre no momento.

A empregada da casa era Luzia, uma morena sarará muito prosa, de quem Floriza, filha do juiz, e eu, ouvíamos mirabolantes histórias em que ela, Luzia, figurava como estrela principal. Ela costumava guardar o dinheiro que economizava durante o ano, para gastá-lo todo no Carnaval em fantasias de luxo, caras e vistosas. Era uma foliona para Arlequim ou Pierrot nenhum, botar defeito.

E o Carnaval já se prenunciava. A marchinha “Seu China”, tocava o dia inteiro no rádio da casa e, naturalmente, no dos vizinhos. Eu acho oportuno aqui, gravar a letra da marchinha: Lá vem o Seu China na ponta do pé / ligui-liligui-liliguililé / dez tões, vinte pratos, banana e café / ligui-liligui-liliguililé. / Chinês come somente uma vez por mês / não vai mais a Shangai buscar a “butterfly” / Aqui com a morena fez a sua fé / ligui-ligui-liguilé. (Se alguém souber o que significa “dez tões”, agradeço pela ajuda. Seria por acaso “dez tostões”?)

Outra música que os rádios tocavam diariamente era uma valsinha que o palhaço de um circo cantava... E a gente também: Eu fui à cozinha fazer o café / a pulga malvada mordeu o meu pé./ Eu fui à cozinha fazer o almoço / a pulga malvada mordeu meu pescoço./ Eu fui à cozinha fazer o jantar / a pulga malvada mordeu meu calcanhar. / Como pula, como se agita / como é perversa essa pulga maldita! / (bis). Esse era o refrão que se repetia a cada “ida à cozinha”.

Era época de Natal e com Dona Rosinha, esposa do juiz, e a filha Floriza, íamos até a Vila Prudente, encomendar uma árvore viva, um pinheiro para enfeitar a nossa festa natalina. A rua paralela era a Muniz de Souza, que tinha uma caída íngreme para o que se poderia, mesmo, chamar de buraco. E no buraco havia uma fileira de cortiços que apesar de serem construídos de alvenaria, feios do jeito que eram, bem poderiam ser taxados de barracos.

Ao sairmos, atraiu nossa atenção um garoto subindo pela escada que vinha do buraco para a Rua Apiaí. Chegando, sorrateiro, ele olhou furtivamente para a direita e para a esquerda, com muita atenção. Depois, virando-se, deu um discreto assobio lá para o buraco. Curiosas, nós ficamos observando. De lá debaixo surgiu uma bonita moça muitíssimo bem vestida, com luvas, chapéu e bolsa de muito bom gosto. Deu uns trocados para o menino, e sentindo-se segura, calmamente seguiu até a parada de seu ônibus. Divertidas, nós percebemos o porquê da coisa. Ela não queria que alguém visse de onde assomava toda aquela elegância, e mandava o garoto espiar primeiro, para saber se o trecho estava “limpo”... Um bom expediente.

Esta é a minha “historinha antiga”.

Surpresos com a minha boa memória?

Ora essa! Afinal, não foi há tanto tempo assim... Apenas setenta anos!...

Fonte:
Texto enviado pela autora. Disponível em Sorocult.

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