domingo, 19 de fevereiro de 2023

Fernando Campanella (Conversa de Compadres)

Conta-se que lá pelas bandas do Curralinho, a umas boas léguas de Santana de Caldas, vivia um homem, chamado por Bastião Medonho, sovina até os ossos, mestre no ofício de contar os grãos, para gerar maior lucro e evitar dissipação.

Seu sítio era o que mais prosperava nas redondezas. Possuía tal homem uma azenha, onde transformava o milho em fubá ou quirera. A ele recorriam os sitiantes do lugar, trazendo parte de sua safra de milho para a troca com a farinha ou o fubá. E o Sr. Bastião sempre lucrava, o que os vizinhos levavam era três vezes menos o que traziam.

Se era hora do café, às crianças, cujos pais até seu sítio chegavam para uma visita, de amizade ou a negócio, era dada apenas a metade de um bolinho de chuva que a esposa fazia; se hora do almoço, uma lasquinha cozida do imenso castrado que abatera…Tudo calculado, medido, regulado.

Seus cavalos eram os mais belos e mais possantes, seu milharal o mais viçoso, seu gado o mais gordo da região.

Conta-se , também, que Bastião Medonho era um caloteiro de primeira, mau pagador, embora houvesse amealhado uma pequena fortuna, que esquentava o único banco da pequena Santana de Caldas. Acertava suas dívidas só quando não havia mais jeito e pesava contra ele a ameaça de um processo na comarca da região.

Ora, havia um compadre seu, o Sr. Maneco da Lua, um homem de caráter íntegro, pródigo, uma ‘candura de pessoa’ , como se dizia por lá. Conheciam-se os dois desde que nasceram. Brincaram juntos, as famílias tinham um laço de compadrio que remontava há várias gerações, embora morassem distantes.

Acontece que, certa vez, o Sr. Maneco vendera um belo cavalo para o compadre Bastião, sem documento assinado, na base da mais pura confiança, da amizade que os unia desde o berço. E nunca recebeu o dinheiro da transação. Também nunca cobrou: o Bastião era ‘cumpadi’, amigo dos ‘bão’ um ‘irmãu’. E se o companheiro não pagava era porque devia estar em situação ‘das pior’, como este sempre lhe dizia, chorando as mágoas, prometendo saldar a dívida logo que se recuperasse.

O tempo passou e Bastião nunca mais deu as caras no sítio do compadre, mais por safadeza que por vergonha de encarar o bobo do compadre.

O Sr. Maneco não era mesmo um homem deste mundo. Colocava os valores do sentimento acima de tudo, a fidelidade, a integridade eram seus bens maiores, embora fosse constantemente acusado de ingenuidade pela esposa e familiares.

E certa feita, em regresso de uma viagem de vários dias, Bastião passou em um armarinho de Santana para a compra de alguma peça de vestuário. E viu que lá estava o Maneco. Tentou disfarçar, evitar o encontro, um certo mal-estar lhe gelando as veias como se houvesse enxergado um fantasma. Mas o bom compadre dele se aproximou, em sua aura de cordialidade, sempre discreto em sua elegância, o chapéu bem limpo, os óculos, a calça mais curta, deixando ver as botas sem meia, o embornalzinho a tiracolo.

– Salvi, Cumpadi Bastião. Comu tem passado a famia? E ocê, irmãu, já tá melhozinho lá nu sítiu? Miorô as coisa por lá?

– Vigi, cumpadi, a situação tá ruim, mais tá ruim… tô penano dimais, doença no gado, praga no milhu, perdi tudinhu, Deus tenha dó….

E continuou a ladainha, tentando despertar piedade no amigo, evitando tocar no assunto da dívida contraída.

Porém, o Maneco também nem referência a tal dívida fez. Só lembrou para o Bastião os bons tempos em que nadavam nas enchentes, lá no Lava-Cavalos, bons tempos da infância em comum dos dois. E despediu-se assim como viera, uma leveza de espírito, quase um sopro de candura. Uma luz calma que de repente alumia e esvaece.

Meio encolhido pela grandeza do amigo, disse então Bastião ao dono da loja -Bom sujeitinhu este Manequinhu – Pareci até um espíritu di tão levezinhu …. E riu, meio a contragosto.

– O senhor tá bem? – perguntou o proprietário do armarinho. – Tava falando sozinhu… Tá passandu bem?

– Tava proseanu aqui com meu Cumpadi, ora, o Maneco da Lua, irmão dos báum…..

– O Sô Maneco lá da Juruaia? – indagou o dono da loja, espantado?

– Sim, meu cumpadi….

– Ele faleceu esta manhãzinha … O corpo tá lá na igreja agora…

Diz a lenda que Bastião, após confirmar falecimento do compadre pelo anúncio da igreja, se arrepiou dos fios do cabelo às unhas do pé, e disparou da loja, como se o Maldito, o Coisa-ruim, a Besta-de-Barba-de-Bode, o tivesse atacado.

Seu sítio foi vendido, a família dali se foi. De Bastião Medonho não mais se ouviu falar.

Se honrou as dívidas, se continuou medonho, não se sabe…Se morreu ninguém sentiu.

Fonte:
Palavreares. Acesso em 13 novembro 2011.

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