sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Adriana Regina Tozzi Pontoni (Antônia)

Era uma vez Antônia, uma garota que morava em uma bela casa, nem muito grande nem muito pequena, de tijolos à vista, que abrigava muito bem toda a sua família. Tinha um quintal imenso com um grande chorão plantado, com seus galhos e folhas caídas que abrigavam perfeitamente ela e os irmãos nos dias de muito sol, Na base do chorão, um passarinho havia sido enterrado no inverno passado. Antônia o havia encontrado na rua, caído e tentara de todas as maneiras salvar a sua vida. Falecido no mesmo dia, o animal agora morava nas raízes do chorão, o que havia rendido uma história sobre o maravilhoso pássaro que vivia no subterrâneo.

Antônia se considerava uma inventora de histórias. Tudo que pudesse ser imaginado criava vida no papel. Seus irmãos eram seus dois melhores amigos ec chamavam-se Joaquim e Damião. Os três juntos formavam uma sociedade secreta, onde campeonatos de carros de papel eram disputados, árvores eram escaladas e músicas eram criadas para torcer pela escola de samba preferida. As pernas de Antônia estavam constantemente machucadas, mas ela não se incomodava, já que o melhor amigo da escola a achava linda de qualquer jeito.

O pai era o homem mais inteligente do mundo, a mãe a mulher mais bonita dentre todas e o avô o mais bondoso. Antônia almoçava todos os domingos na casa do avô, apelidado carinhosamente de "vô Nenê". Tinha um sorriso inconfundível, falava pouco e compreendia as crianças como ninguém. Sua casa era grande e cheia de segredos. Antônia secretamente vasculhava as gavetas dos armários da casa era busca de tesouros, como talcos e perfumes que tinham cheiro de coisa velha.

O quintal da casa do avô era repleto de árvores e mudas de plantas, guardado por um pequeno cachorro preto, de dentes esquisitos e raça sem definição. Seu nome era Sucupira. Ele tossia e pigarreava como se fosse um ser humano. Algo extremamente perturbador para as crianças.

O vô Nenê adorava sentar-se na varanda da casa. Os três irmãos sentavam-se na escada, aos pés do avô, e escutavam as histórias que ele tinha para contar, quando ele decidia falar alguma coisa. Na verdade, ele não era muito contador de histórias e sempre ria em partes que, para Antônia, não tinham a menor graça. Sucupira ficava de longe, só observando.

Um dia, o vô contou uma história sobre quatro mundos, que existiam dentro de todas as pessoas, O primeiro mundo, segundo ele, era o da infância. Era o mundo mais difícil de deixar para trás, mas, mais cedo ou mais tarde, todos saiam dele para entrar no mundo dos jovens. Ainda existia o mundo dos adultos e o mundo dos velhos. O avô contava que logo após encerrar sua fase no mundo dos adultos, havia descoberto que o mundo dos velhos era bem parecido com o das crianças, e era por isso que eles se entendiam tão bem.

Uma das crianças perguntou: "Mas vô, como a gente sabe que saiu de um mundo e passou pro outro?". E ele respondeu: "Você sabe que algo chegou ao fim quando existe um recomeço. Neste momento ele deu risada e, como de costume, ninguém entendeu nada. Mais tarde, Antônia ficou pensando quando saberia que havia deixado o mundo da infância, e escreveu uma história sobre quatro planetas diferentes.

Os dias passaram com certa lentidão naquele ano. Antônia havia contraído hepatite, Joaquim havia quebrado o braço e Damião, semanalmente, aparecia com a testa enfeitada com machucados terríveis, resultado da vontade do irmão em ser o menino mais forte, mais veloz e mais ágil de todos os tempos,

Ainda naquele outono, uma tempestade forte devastou muitas casas frágeis e arrancou de vez o grande chorão do quintal, com raiz e tudo. No outro dia, Antônia correu para ver se encontrava o túmulo do passarinho, mas não havia mais nada ali. Correu para o quarto e escreveu sobre o passarinho que trocou as asas por uma capa de invisibilidade.

Na metade daquele ano, os pais avisaram Antônia que ela sairia da escola para uma outra, muito melhor, mas ela não recebeu muito bem a notícia. Chorou por dias e noites e escreveu uma nova história, sobre um casal de namorados que havia sido afastado por uma grande fenda no planeta.

Em agosto, Sucupira não conseguiu vencer o grande cão do vizinho numa briga de rua e deixou o avô sozinho. No final da primavera, o avô faleceu.

A dor era tanta que Antônia passou a sentir-se solitária, mesmo com os irmãos ao seu lado. Seu pai já não parecia mais tão inteligente, e as modelos das revistas eram bem mais bonitas que sua mãe. Que mundo horrível era aquele! As meninas da escola achavam sua saia vermelha fora de moda e os meninos tiravam sarro de suas pernas finas e machucadas. E de repente Antônia não conseguia escrever mais nada.

Quando a casa do avô foi posta à venda, ela entrou em desespero. Queria ao menos guardar um talco. Um cheiro. Um tesouro secreto. E, numa tarde, colocou a mochila nas costas, fugiu de casa e caminhou até lá. Sem a chave, começou a procurar algum tesouro no quintal. Apoiada na ponta dos pés, tentava observar pelas brechas da veneziana alguma imagem familiar. Pela janela do quarto, viu a cama antiga. O armário fedido, Uma foto do avô em cima da cômoda.

Tomada por um sentimento de amor profundo, decidiu que precisava da foto. Pegou um banquinho velho e uma pedra do jardim. Subiu no banco, quebrou o vidro da janela e, com cuidado, colocou seu braço por entre os estilhaços para conseguir destravá-la. Feito isso, pôs-se a empurrar com toda força a veneziana que abriu de supetão quando então o alarme disparou.

Entrou no quarto, pegou a foto, colocou na mochila e saiu correndo, como se algo pudesse alcançá-la e lhe roubar o avô para sempre.

Em casa, entrou no quarto apressada, fechou a porta, sentou na cama e abriu a mochila. O avô sorria para ela. Foi quando ela escreveu a história sobre o dia em que Antônia deixou o mundo da infância.

Fonte:
Enviado por Luiz Hélio Friedrich.
In Ney Fernando Perracini de Azevedo (org). Safira Paranaense. Curitiba: ABRAEE/PR, 2015.

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