Meu pensamento volta-se, constantemente, para a derradeira história que Clayton contou, relembrando-a em todos os seus pormenores. Ele passara a maior parte do tempo no sofá, junto à lareira, estando a seu lado Sanderson, fumando um daqueles cachimbos especiais, que trazem seu nome gravado. Evans e Wish, este o famoso e tão modesto ator, faziam parte do reduzido grupo.
Era um sábado de manhã, e havíamos chegado ao clube todos juntos, exceto Clayton, que ali pernoitara, o que motivou esta história. jogáramos golfe até ao escurecer e, depois de cear, caíramos naquele estado de bem aventurança, quando se fica em condições de ouvir qualquer fantasia que nos contem. E assim que Clayton iniciou sua extraordinária narrativa, quisemos tachá-lo de mentiroso. A princípio, julgamos que se tratasse, apenas, de uma de suas anedotas reais, no que ele era mestre.
— Já sabem que passei a noite sozinho, aqui? interrogou ele, depois de ter ficado muito tempo fitando as fagulhas que saiam das brasas, reanimadas por Sanderson.
— Com os criados... - emendou Wish.
— Sim, mas que dormem na outra ala - retrucou Clayton, que, antes de prosseguir, soltou mais algumas baforadas do charuto. E, sem perder sua habitual fleuma, declarou, calmamente:
— Apanhei um fantasma.
— Um fantasma! - exclamou Sanderson. - E onde está ele?
Evans, que passara quatro semanas na América e era grande admirador de Clayton, gritou com sua voz anasalada:
— Você agarrou mesmo um fantasma, Clayton? Extraordinário! Vamos, conte, logo, como tal aconteceu!
Clayton pediu que fechássemos a porta e, olhando para mim, à guisa de desculpa, disse:
— Não quero chamar ninguém de bisbilhoteiro, mas não desejo divulgar a história e assustar nossos excelentes servidores. Os cantos escuros e os estranhos adornos da arquitetura do prédio dão margem à imaginação... E o fantasma a que me refiro, quero que saibam, era um fantasma incomum. E talvez nunca mais volte...
— Mas... você não o prendeu? - perguntou Sanderson.
— Faltou-me ânimo para tanto - respondeu Clayton.
Enquanto nós desatamos a rir, Sanderson dava mostras de surpresa e Clayton parecia perturbado.
— Parece mesmo singular, - disse, sorrindo contrafeito - mas a verdade é que lidei realmente com um fantasma, tão certo quanto estar aqui conversando com vocês. Nada de gracejos, sei bem o que falo.
Sanderson mamava seu cachimbo, com mais vigor, concentrando seus olhos congestionados em Clayton e, após expelir uma espessa coluna de fumaça, resmungou algo a que Clayton não prestou atenção.
— Nunca me ocorrera uma aventura tão singular. Os amigos já conhecem minha descrença a esse respeito, mas, quando menos pensava nisso, apanho um fantasma, num dos cantos do prédio.
Mergulhou de novo em reflexões e puxou do bolso outro charuto.
— Conversou com ele? - perguntou Wish, curioso.
— Uma hora, mais ou menos.
— E que lhe contou? - indaguei, chegando mais perto dos incrédulos.
— O coitado pareceu-me encabulado...
— Ele chorou? - perguntou outro.
Clayton suspirou, ao pensar nessa circunstância.
— Sim, coitadinho, chorava que dava dó.
— E onde o apanhou? - quis saber Evans, com seu sotaque americano.
— Jamais poderia ter imaginado que um fantasma fosse uma coisa tão lamentável, prosseguiu Clayton, ignorando a pergunta.
E, após essas palavras, deixou-nos de novo em suspenso, fingindo que declarava em encontrar os fósforos e acendia, depois, o charuto.
— Apenas, consegui aproveitar uma oportunidade disse, afinal, como que respondendo à pergunta anterior.
E, como ninguém o interrompesse, prosseguiu:
— Posso afirmar que, mesmo sem o seu corpo, o caráter de uma pessoa permanece invariável, embora constantemente nos olvidemos disso. Indivíduos de vontade firme e forte dão espectros de firme e forte vontade. A maioria desses fantasmas obsecados que andam por aí deve ter uma ideia fixa qualquer, como qualquer maníaco, e se demonstram mais obstinados que um burrico. O meu pobre fantasma, porém, era diferente. Levantou subitamente os olhos, de maneira estranha, e seu olhar pesquisou todos os cantos do recinto.
— Afirmo-o com a minha melhor boa-fé, pois é a pura verdade. Logo de início, percebi que se tratava de um débil mental. - Soltou umas baforadas e continuou. - Agarrei-o no fim do longo corredor. Ele me dava as costas e, por isso, eu o vi antes que me percebesse. Certifiquei-me imediatamente de que era um espectro, tanto era transparente e esbranquiçado. Através de seu tórax, eu distinguia o reflexo dos vidros da janelinha. Pelo seu físico e atitudes, deduzi-lhe a fraqueza. Ele não sabia, absolutamente, o que iria fazer. Segurava um dos adornos da janela, com uma das mãos, e a outra passava-a constantemente pela boca. Desta maneira...
— Qual seu aspecto?
— Muito magro. Seu pescoço parecia formar duas calhas, nas costas, aqui e aqui. Cabeça pequena, cabelos despenteados, orelhas disformes. Ombros imperfeitos e mais estreitos que os quadris. Usava um colarinho caído, casaco curto, calças remendadas, à altura dos joelhos, e mais alguns rasgões, logo abaixo. Tal seu aspecto. Eu ia subindo sossegadamente as escadas, sem levar luz, já que as velas costumam ficar cá embaixo, e ali existe uma lâmpada. Ao subir, vi-lhe os chinelos. Estaquei de súbito, ao notá-lo. . . e examinei-o. Não me incutiu medo algum. Creio que, na maior parte de casos assim, o indivíduo não se assusta tanto como se poderia supor. Somente fiquei intrigado e surpreso. "Meu Deus!" exclamei, para mim mesmo. "Finalmente, vejo um fantasma! E justamente eu, que nunca acreditei nisso!"
— Hum! - rosnou Wish.
— Ao chegar ao patamar, o fantasma deu pela minha presença. Virou de novo a cabeça e dei com a cara de um jovem, nariz fino, bigode ralo e um esboço de barbicha. Ficamos alguns instantes a olhar um para outro. Olhava-me por cima do ombro. Afinal, pareceu recordar-se de suas altas funções. Esticou-se, virou-se de completo, espichou o rosto, estendeu a mão, no clássico estilo dos espectros, e veio para meu lado. Deixou cair seu pequeno queixo e emitiu um prolongado, mas fraco "Bu! No..." Como veem, nada de apavorante. Eu havia ceado muito bem e esvaziado uma garrafa de champanhe, e, depois de ter ficado sozinho, tomara mais alguns copinhos de uísque, por isso me encontrava mais firme que uma rocha e não mais amedrontado do que se tivesse visto uma rã.
— Bu! - retribuí-lhe eu. - Deixe de ser bobo. Você não tem nada que fazer aqui. Notei que ele estremecia.
— Buuu! - repetiu.
— Bu! Vá para o diabo! Você é sócio cá do clube? Mexeu-se algo, como que querendo sair do caminho, mas seu aspecto parecia abatido.
— Não... não sou sócio do clube, - respondeu o espectro, ante a insistente interrogação de meus olhos. - Sou um fantasma.
— Muito bem, mas isso não o autoriza a frequentar o Clube Mermaid. Está procurando alguém por aqui?
Dito isto, acendi logo minha vela, para que ele não julgasse que meu tremor era de medo e não por causa do uísque que eu ingerira. Perguntei-lhe:
— Que está fazendo aqui?
O espectro deixou pender os braços, parando de rosnar, e ali se ficou, meio sem jeito, acabrunhado, nítida imagem de um fantasma frouxo, inocente, sem vontade de ação.
— Estou dando uma voltinha... - respondeu, afinal.
— Seu lugar não é aqui, procure outras paragens.
— Eu sou um fantasma... - murmurou, como desculpa.
— Pode ser, mas aqui não é seu lugar. Este é um clube particular, bastante respeitável. Aqui, vêm, com frequência, pessoas com crianças, pajens, e, se alguma delas o encontrar por aí, pode ficar louca de susto. Não pensou ainda nisso?
— Não me havia ocorrido ainda essa hipótese, senhor.
— Pois devia ter pensado. Creio que não possui nenhum motivo ponderável para vir aqui, pois não? Suponho que não morreu assassinado nem sofreu morte violenta.
— Oh, não, meu senhor... mas, como esta casa é velha, possui seus enfeites de madeira, julguei...
— O pretexto é demasiado pueril - interrompi-o, fitando-o firme. - Foi um erro, sua vinda aqui - ajuntei, com amistosa superioridade.
Disfarcei, procurando fósforos nos bolsos, e olhei francamente para ele.
— Sabe que faria eu, em seu lugar? Procuraria evaporar-me, sumir daqui, antes do galo cantar.
Tais palavras deixaram-no perturbado.
— Na verdade, meu senhor...
— Eu me evaporaria - repeti, com insistência.
— Mas, então... eu não posso...
— Não pode, não?
— Não, porque me esqueci de algo. Tenho andado vagando por aqui, desde a última meia-noite, escondendo-me nos armários dos quartos desocupados... e já meio desorientado, tonto. Fiquei desconcertado, pois nunca rondara, antes.
— Ficou desconcertado?
— Sim, senhor, não me saio nunca bem. Parece que olvidei alguma coisa... e não consigo lembrar-me de quê...
— Essa circunstância impressionou-me bastante - afirmou Clayton. - Ele olhava para mim, tão desanimado, que me deixou incapaz de continuar mantendo aquele tom altivo e fanfarrão que adotara.
— Isso é muito singular - disse-lhe.
Nesse instante, julguei ouvir rumor, no andar inferior.
— Vamos para meu quarto e conte-me tudo, porque, até agora, nada compreendi .- convidei-o.
Procurei puxá-lo por um braço, mas, está claro, foi como se tentasse segurar uma nuvem de fumaça. Penso que até me esquecera o número do quarto. Assim, entrei em vários aposentos, antes de descobrir o meu, e foi sorte estar ali sozinho, naquela parte do prédio.
— Bem, agora, sente-se e conte-me sua história - disse-lhe, sentando-me também. - Pelo que vejo, meu amigo, meteu-se numa enrascada. O fantasma declarou não desejar sentar-se e que preferia ficar andando pelo quarto. Não me opus e, dali a instantes, estávamos numa prosa animada. Assim que me libertei dos vapores do uísque, comecei a ter noção do caso absurdo, fantástico, em que me enredara. À minha frente, se encontrava, meio transparente, o tradicional fantasma, sem outro ruído a não ser o de sua voz sideral, e seu nervoso vaivém pelo quarto, recoberto de tapetes. Através do seu corpo, eu podia vislumbrar o reluzir dos candelabros de cobre, o resplendor dos abajures e os quadros nas paredes, ao passo que ele me ia narrando sua desditosa e breve odisséia. Sua feição não era lá muito honrada, mas podem crer que falava a verdade, tanto era transparente.
— Como? - interrogou Wish, levantando-se de pronto.
— Que quer saber? - perguntou, por sua vez, Clayton.
— Porque era transparente... não podia deixar de dizer a verdade?... Não estou entendendo nada - explicou Wish.
— Muito menos eu - ajuntou Clayton, com incrível seriedade. - Contudo, era essa minhá impressão. Juro até que não se afastou por nada da pura verdade. Contou-me como morrera - descera a um porão londrino, para verificar um escapamento de gás, com uma vela na mão. E, quando isso ocorreu, exercia as funções de professor, numa escola particular de Londres.
— Pobre homem... - lamentei eu.
— Também fiquei com pena dele, e mais ele falava mais me comovia. Não tinha objetivo algum na vida e ficara fora dela. Falou-me, com desprezo, sobre seu pai, sua mãe, a respeito de seu professor, na escola, e de todos quantos conhecera no mundo. Tinha sido exageradamente impressionável e nervoso. Ninguém o havia apreciado verdadeiramente e muito menos o compreenderam, conforme contou. Penso que não chegou a ter nenhum amigo sincero nem jamais obtivera êxito algum. Mantivera-se alheio das diversões e fracassara em vários exames. Alegou que esquecia tudo, quando entrava na sala de exames. Estava noivo, naquela época, prestes a casar-se com outra pessoa igualmente impressionável, quando o escapamento de gás pôs termo aos seus amores.
— E onde foi você parar, depois da morte? - perguntei-lhe. - Não será em... A respeito disto, foi algo confuso. Parecia encontrar-se numa espécie de estado impreciso, intermediário, num lugar reservado às almas demasiado inexistentes para coisas tão positivas como o pecado e a virtude. Não soube explicar direito. Era bastante egoísta e indiferente para fornecer-me uma idéia clara quanto ao lugar ou região em que se encontrava. Muito além das coisas, estivesse onde estivesse, ele caíra, suponho, no meio de uma série de espíritos da mesma natureza; fantasmas de jovens londrinos, fracos, com os mesmos prenomes, entre os quais se devia falar muito em rondar. Sim, sair e rondar. Parece que, para esses fantasmas, o "rondar" fosse uma grande aventura e a maior parte deles não parava de falar nisso. Instigado, curioso, meu fantasma resolvera sair e... rondar.
— Ora, será isso possível? - perguntou, descrente, Wish.
— São as conclusões que tirei - respondeu Clayton, modestamente. - É bem possível que eu também me encontrasse num estado d'alma pouco favorável para discernir, mas essa impressão foi ele que ma deu. Não cessava de andar de um lado para outro, falando com voz fininha do seu mísero ego, porém sem nunca emitir uma declaração nítida e firme, do princípio até ao fim. Era bem mais minucioso, ingênuo e monótono do que se estivesse vivo e real. Se estivesse vivo, aliás, não o teria deixado em meu quarto. Teria saído dali a pontapés!
— Sim, - concordou Evans - há tipos dessa espécie.
— Mas que possuem tantas propriedades de ser fantasmas como os demais.
O que lhe dava algum interesse era sua convicção de lhe ser impossível desaparecer. A confusão que resultara de sua aventura deprimira-o de maneira incrível. Disseram-lhe que aquilo seria um mero passeio, e viera para cá esperando que assim fosse, mas encontrou apenas mais um fracasso a ajuntar aos de seu longo rol. Confessou-me, e acreditei, que jamais tentara coisa alguma, na vida, que não houvesse resultado num desastre e que isso continuaria acontecendo, pela eternidade afora. Caso tivesse encontrado simpatias, talvez... Não terminou e ficou a olhar para mim. Disse-me, ainda, que, por mais incrível que pareça, ninguém lhe havia dispensado nunca a dose de simpatia que eu lhe demonstrava. Adivinhei logo aonde queria chegar e decidi libertar-me dele, no mesmo instante. Pode ser que isso seja brutalidade de minha parte, mas, ser o único amigo sincero, o confidente de um desses débeis egoístas, seja ele homem ou fantasma, era algo
superior à minha resistência física. Levantei-me de supetão.
— Não se iluda - disse-lhe. - O melhor que lhe resta a fazer é ir-se embora, sair imediatamente. Reúna suas forças e experimente.
— Não consigo... - murmurou.
— Experimente! - intimei-o.
E ele experimentou.
— Experimentou?! - exclamou Sanderson. - E de que modo?
— Com passes - respondeu Clayton.
— Com passes?
— Sim, uma série de complicados movimentos, executados com as mãos. Fora assim que viera, e, assim, devia ir-se embora. Meu Deus! Que trabalho lhe custou!
— Mas, com uma série de passes. .. - comecei.
— Meu amigo, - interrompeu Clayton, voltando-se para mim e dando uma entonação especial às palavras - você quer que tudo seja bem explicado. Sei, apenas que ele executou esses passes. Após muitos esforços, conseguiu realizá-los perfeitamente, sumiu.
— Você prestou atenção nos passes? indagou Sanderson, lentamente.
— Sim, - respondeu Clayton, que parecia refletir.
Foi uma coisa extraordinariamente inédita. Estávamos ali, ambos, o vago e transparente fantasma e eu, naquele silencioso quarto, naquela casa silente e vazia, numa silenciosa noite de sexta-feira, na pequena cidade. Não se ouvia o menor ruído, exceto nossas próprias vozes e um ligeiro arfar, que produzia o espectro ao executar seus gestos. Estávamos iluminados pela vela do quarto e por outra, que havia no aparador. Nada mais. Uma ou outra vez, as velas produziam, durante alguns segundos, uma chama alta e esquia. E, então, se passaram coisas estranhas.
— Não, não posso... - gemia o fantasma. - Nunca mais.
Sentou-se subitamente numa cadeira e começou a soluçar. Deus meu! Que modo horrível de chorar!
— Reúna suas forças! - disse-lhe.
Tentei dar-lhe umas palmadinhas nas costas, porém minha maldita mão atravessou por ele. Nesse instante, devem compreender, já não me sentia tão... firme como quando chegara à escada. Notava perfeitamente tudo quanto ocorria de incomum. Recordo-me de que retirei a mão dele, com um leve estremecimento, e que fui até à mesa do aparador.
— Reúna suas forças, - repeti - e experimente.
E, no intuito de animá-lo e auxiliá-lo, procurei experimentar, também.
— Como! - exclamou Sanderson. - Os passes?
— Exatamente, os passes.
— Mas - disse eu, levado por uma idéia que não sabia traduzir.
— Muito interessante - comentou Sanderson, batendo a cinza do cachimbo. - Quer dizer
que esse fantasma lhe revelou...
— Sim, fez tudo quanto pode para revelar o segredo da maldita barreira.
— Mas não o conseguiu, - interveio Wish, - nem poderia fazê-lo, pois, do contrário, você também teria sumido.
— Essa é precisamente a questão - concordou Clayton, olhando, pensativamente, para as chamas.
Houve um breve silêncio.
— E, afinal, conseguiu? - perguntou Sanderson.
— Finalmente, conseguiu-o. Envidei enormes esforços para que não desanimasse, mas, enfim, conseguiu-o. .. e bastante bruscamente. Estava já desesperado, tivemos uma cena, todavia, de súbito se levantou e pediu-me que fizesse todos os movimentos lentamente, para que os pudesse ver. Creio, confiou-me, que, se pudesse ver bem, descobriria o que não estava certo. E tal ocorreu.
— Agora já sei! - exclamou enquanto me observava os movimentos.
— Sabe o quê? - perguntei-lhe.
— Sim, já sei - repetiu, ajuntando, a seguir, mal-humorado. - Se fica assim a olhar para mim, nada posso fazer. Na verdade, não posso. E é por isso que até agora nada fiz. Sou de tal modo nervoso que o senhor me desconcerta.
Entabulamos uma discussão. Certamente, eu queria ver como fazia, mas ele era mais teimoso que um burro, e eu me senti, de súbito, exausto, sem forças. Virei-me para o espelho do armário próximo da cama. Iniciou uma série de movimentos, muito rápidos. Procurei acompanhá-lo pelo espelho, para ver qual deles tinha esquecido. Seus braços e mãos rodopiavam, assim e assim, e depois veio, precipitadamente, o gesto final, - o corpo erguido e os braços abertos - e nesta atitude ficou. E, de repente, não mais o vi! já ali não se encontrava! Rodei sobre meus calcanhares e olhei. Nada! Eu estava só, diante da chama das velas, e com o espírito vacilante. Que teria acontecido? Tudo teria sido um sonho?. . . E aí, num tom absurdo de remate final, o relógio do patamar julgou chegado o momento de dar UMA hora. Assim: Ping! E eu me encontrava tão sério e tão atento quanto um juiz, sem vestígios de minha champanha nem de meu uísque. Mas, presa de estranha sensação, compreendem? Horrivelmente estranha! Singular! Santo Deus!
Olhou um momento para a fumaça do charuto e acrescentou:
— E foi tudo quanto aconteceu.
— E, depois, foi deitar-se? - indagou Evans.
— Que mais poderia fazer?
Olhei Wish, bem dentro dos olhos. Queríamos gracejar, mas havia algo na voz e nos gestos de Clayton que se opunha ao nosso desejo.
— E os passes? - perguntou Sanderson.
— Creio que seria capaz de executá-los, neste momento.
— Oh! - exclamou Sanderson, puxando um canivete e raspando a cinza do cachimbo. - Por que não os faz, agora?
— Vou fazê-los já! - disse Clayton.
— Nada conseguirá - profetizou Evans.
— Mas, se conseguir. . . - observei.
— Ouça, eu preferiria que o não fizesse - disse Wish.
— Por quê? - interveio Evans.
— Eu preferiria que o não fizesse, repetiu Wish.
— Mas, se já aprendemos bem ... volveu Sanderson, enchendo de fumo o cachimbo.
— De qualquer modo, eu preferiria que não o fizesse! insistiu Wish.
Discutimos com Wish, o qual afirmava que, permitir a Clayton executar tais gestos, era como que brincar com algo de sério, de misterioso.
— Mas você não vai acreditar nisso, vai? - disse eu.
Wish lançou um olhar de esguelha a Clayton que, com os olhos presos ao fogo, refletia sobre qualquer determinação de seu espírito.
— Eu creio... pelo menos, mais da metade, sim, acredito... - respondeu Wish, em tom sério.
— Clayton, - falei - você é um inventor de histórias bom demais, para nós todos. Quase tudo quanto você contou estava certo. Mas... essa coisa de desaparecer... não me convenceu muito. Vamos, fale, trata- e de um conto terrorífico?
Clayton ficou de pé, sem prestar atenção às minhas palavras, pondo-se ao centro do tapete, bem na frente de mim. Por alguns minutos, olhou pensativamente para os próprios pés e passou, depois, a fitar intensamente a parede oposta, com expressão decidida. Ergueu lentamente ambas as mãos à altura dos olhos e, assim, começou... Agora, muito bem, Sanderson era maçon e pertencia à loja dos Quatro Reis, que, com tanta pericia, se dedica ao estudo e esclarecimento de todos os mistérios da maçonaria passada e presente. E, entre os pesquisadores dessa loja, Sanderson não era de maneira alguma dos mais insignificantes. Acompanhava os movimentos de Clayton, com invulgar interesse, refletido em seus olhos avermelhados.
— Não vai indo mal - observou, quando Clayton terminou. - Na verdade, você consegue fazer isso de maneira assombrosa. Falta, todavia, um pequeno detalhe.
— Já sei! - respondeu Clayton. - E penso que lhe poderei dizer qual.
— Sim?
— Veja, este - disse Clayton, fazendo um movimento, que consistia em retorcer as mãos e atirá-las para a frente.
— Exatamente.
— Quero que saibam que este era o que ele não conseguia executar bem, mas, como VOCÊ ...
— Eu não entendo quase nada desse negócio e, principalmente, como pode você inventá-lo - retrucou Sanderson - esse gesto, porém, eu o conheço, está claro. - Refletiu um instante e continuou: - Em resumo, trata-se de uma série de sinais relativos a certo ramo de maçonaria esotérica ... Com certeza, você os conhece... pois, do contrário ... como?
Tornou a refletir mais ainda, e prosseguiu:
— Não penso que haja mal algum em revelar-me o sinal exato. Além disso, se você já o conhece, melhor para si, mas, se o não conhece, fica tudo na mesma.
— Eu nada sei, além do que me ensinou o pobre, naquela noite - declarou Clayton.
— Então, tanto faz - murmurou Sanderson, pousando o cachimbo, cuidadosamente, no modilhão. Em seguida, passou a executar rápidos movimentos, com as mãos.
— É assim? - perguntou Clayton, imitando-o.
— Isso mesmo! - certificou Sanderson. voltando a pegar o cachimbo.
— AGORA, - disse Clayton - sou capaz de executar a série toda... bem. Encontrava-se de pé, diante do fogo, que ia morrendo, e sorria para nós. Contudo, pareceu-me haver certa hesitação naquele sorriso.
— Vou começar... - preveniu-nos.
— Em seu lugar, eu não começaria, - observou Wish.
— Nada poderá acontecer - afirmou Evans. - A matéria é indestrutível. Você não irá pensar que uma invenção dessas seja capaz de lançar Clayton para o mundo das sombras. Teria graça! Quanto a mim, Clayton, pode bracejar à vontade, até que seus braços se separem dos punhos.
— Não concordo com isso - atalhou Wish, que se levantou e pôs a mão no ombro de Clayton. - Saiba que quase me fez acreditar em sua história, por isso, não quero que faça tal coisa.
— Valha-me Deus! - exclamei - Parece que Wish está assustado!
— Sim, estou - confessou Wish, com veemência real, ou notavelmente fingida. - Penso que, se fizer tais gestos esotéricos, acabará desaparecendo.
— Nada disso acontecerá! - exclamei. - Os homens somente podem sair deste mundo por um caminho, e Clayton ainda tem mais de trinta anos à sua frente. Você não julga que...
Wish interrompeu-me, todo agitado. Saiu de entre nossas poltronas e, parando junto à mesa, gritou:
— Clayton, você está maluco!
Clayton voltou-se sorrindo, com um brilho humorístico no olhar.
— Wish tem razão - disse - e vocês; todos estão equivocados. Desaparecerei. Levarei até ao fim estes passes, e, quando o derradeiro movimento rasgar o ar ... pronto! Este tapete ficará vazio, a sala ficará inundada de mudo assombro, e um cavalheiro de noventa e cinco quilos, decentemente trajado, mergulhará em cheio no mundo das sombras! Tenho certeza disso, e vocês também não tardarão em tê-la. Desisto de continuar a discussão por mais tempo. Que se faça a prova!
— NÃO! - intimou Wish, dando mais um passo à frente. Mas estacou, e Clayton ergueu as mãos, mais uma vez, para repetir os passes do fantasma.
Naquele instante, nos encontrávamos numa deplorável tensão de espírito, principalmente por causa da atitude de Wish. Permanecíamos imóveis, olhares fixos em Clayton, e eu, pelo menos, experimentava uma estranha sensação de tensão e rigidez, como se, desde a nuca aos músculos, meu corpo fosse de aço. Nesse ínterim, com uma gravidade imperturbável e serena, Clayton se inclinava, movimentava-se e agitava as mãos e braços, à nossa frente. Ao aproximar-se o fim, nossa tensão nervosa se tornou insustentável e percebi que rangiam os dentes. O derradeiro movimento, como já disse, consistia em abrir completa- mente os braços, com o rosto voltado para cima. Quando, finalmente, iniciou esse gesto, cheguei a conter a respiração. Podia ser uma coisa ridícula, evidentemente, mas vocês já irão conhecer a impressão que causam essas histórias de fantasmas. E notem, ainda, que isso acontecia numa casa fora de comum, escura e antiga. Chegaria, depois de tudo, a ... ?
Durante um estarrecedor momento, Clayton permaneceu naquela posição, de braços abertos e cara virada para o alto, firme e resplandecente, sob o fulgor da lâmpada. Todos nós nos quedamos em suspenso durante aquele lapso de tempo, que nos pareceu um século, e, depois, brotou de nossas gargantas um som que era, ao mesmo tempo, um suspiro de infinito alivio e um NÃO! tranquilizador, pois, que, visivelmente... Clayton... não desaparecia. Tudo aquilo não passara de uma mentira. Clayton nos contara uma história banal, infantil, e quase nos fizera acreditar nela. Nada mais que isso! ... Mas, exatamente naquele momento a fisionomia de Clayton se transformava. Mudou-se completamente. Tal como se transforma uma casa iluminada, quando se lhe apagam subitamente as luzes, assim se transformou seu semblante. Seus olhos se vidraram bruscamente, o sorriso se lhe gelou nos lábios, subitamente exangues, e ele continuou de pé, imóvel. E assim se conservou, balançando-se suavemente.
Mas, aquele momento valeu, também, por um século. E, pouco depois, as cadeiras bailavam, objetos caíam ao chão, e todos nós nos sentíamos em movimento. Os joelhos de Clayton deram a impressão de que iam dobrar-se e ele tombou para a frente, ao passo que Evans dava um pulo e o amparava nos braços...
Isso nos deixou atônitos. Durante o espaço de um minuto, creio que nenhum de nós disse nada coerente. Estávamos vendo; no entanto, custávamos a acreditar... Sai de minha estupefata admiração para me encontrar ajoelhado junto ao corpo estendido. Seu casaco e sua camisa estavam rasgados, e Sanderson lhe auscultava o coração. Esse gesto, tão simples, podia ter sido deixado para mais tarde, para quando estivéssemos menos emocionados, pois não tínhamos pressa alguma em compreender. O cadáver permaneceu ali cerca de uma hora, mas ainda se conserva em minha memória, negro e desconcertante como então. Clayton passara, efetivamente, para aquele mundo que se encontra tão perto, e, ao mesmo tempo, tão distante de nós. Clayton fora para lá, realmente, pelo único caminho que pode seguir um mortal. Mas, que para lá seguiu unicamente graças aos conjuros daquele inexperiente fantasma ou repentinamente atacado de apoplexia, no decorrer de uma história banal, - como o médico-legista nos deu a entender - é o que não posso precisar. De qualquer maneira, trata-se de um dos muitos enigmas que hão de permanecer sem explicação até que estejamos em condições de compreender todas as coisas misteriosas que nos cercam. Tudo quanto posso garantir, porém, é que, no próprio momento, no instante exato em que Clayton acabava de executar aqueles passes esotéricos, transfigurou-se, cambaleou e tombou no chão, bem diante de nós... morto!
Fonte:
POE, Edgar Allan e outros escritores. Mestres do terror. dezembro de 1999. http://www.virtualbooks.com.br/ (in CR-ROM Biblioteca Eletronica vol. III. Magister) Conto em Domínio Público.
POE, Edgar Allan e outros escritores. Mestres do terror. dezembro de 1999. http://www.virtualbooks.com.br/ (in CR-ROM Biblioteca Eletronica vol. III. Magister) Conto em Domínio Público.
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