Uma desventurada mãe, louca de dor, velava o berço de seu filhinho agonizante. A criancinha pálida tinha os olhos fechados. Respirava ansiosa, e às vezes tão profundamente, que parecia gemer. A mãe, no entanto, causava ainda mais lástima do que o pequenino moribundo.
Nisto bateram à porta, e entrou um velho miserável embuçado numa manta de arrieiro. Era em Dezembro. Lá fora, no escuro, um lençol de neve, e o vento cortando que nem uma navalha.
O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se, a chegar as brasas uma caneca de cerveja. O velho começou a embalar a criança, e a mãe sentou-se ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez com mais dificuldade, tomou-lhe a mãozinha descarnada e disse para o velho:
– Oh! Nosso Senhor não mo há de levar! Não é verdade?
E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça de modo estranho, em ar de duvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas deslizavam-lhe em fio pelo rosto. Sentiu-se estonteada, com um grande peso na cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou levemente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.
– Que é isto?! exclamou, lançando em roda o olhar alucinado. No berço ninguém! O velho partira, roubando-lhe a criança.
E a triste mãe, soluçante, correu desgrenhada por montes e vales, à procura do filho. Encontrou uma mulher no meio da neve vestida de luto.
– A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Vi-a a sair muito ligeira, levando o teu filho. Anda mais do que o vento, e o que ela rouba não torna a dar.
– Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-me-o! Diz-me-o pelo amor de Deus!
– Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de negro. Mas só te ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes te ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
– Cantar-te-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.
A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram ainda mais do que as palavras.
No fim disse-lhe a Noite:
– Toma a direita, pela floresta escura de pinheiros. Por ai e que a Morte seguiu com o teu filho.
A mãe correu para a floresta. No meio, porém, dividia-se o caminho, e não sabia que direção escolher. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.
– Não viste a Morte que levava o meu filho? perguntou a mãe.
– Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho sem me aqueceres primeiro no teu seio, porque estou gelado.
E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno frigidíssima; tal é o calor febril do selo de uma pobre mãe angustiosa.
E o matagal ensinou-lhe o caminho por onde ela devia ir. Foi andando, andando, até que chegou: à margem de um grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era profundo de mais para o passar a vau. Contudo urgia atravessá-lo. Num ímpeto do seu amor, arrojou-se de bruços a ver se poderia beber-lhe toda a água. Impossível! Lembra-se que Deus, compadecido, faria talvez um milagre…
– Não! Não és capaz de me esgotar, disse-lhe o lago. Sossega, e entendamo-nos. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são de um brilho mais suave que as pérolas mais ricas que tenho possuído. Querendo, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: aí habita a Morte; e, as flores e as arvores que estão lá dentro, é ela quem as trata; em cada flor e em cada árvore habita a vida de um coração humano.
– Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho! soluçou a mãe.
E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não teve no mundo uma rainha.
O lago então, arrebatando-a numa onda, depositou-a na outra margem, onde se erguia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de comprido. De longe ninguém discriminava se era um monumento de arte ou uma grande montanha cheia de cavernas, grutas e florestas. Mas a pobre mãe nada podia ver, porque tinha dado os seus olhos.
– Ah! como hei de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho! bradou ela desesperada.
– A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que andava de um lado para o outro, inspecionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste, tu aqui parar? quem te ensinou o caminho?
– Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. Anda, compadece-te de mim, e diz-me onde está o meu filho.
– Eu não o conheço, e tu és cega, tornou a velha. Há aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte não tarda aí para as levar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste sitio uma árvore ou uma flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e descobrirás talvez o coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que tens ainda de fazer?
– Já nada me resta, disse a pobre mãe suspirando. Mas iria até ao fim do mundo buscar o que tu quisesses.
– Fora daqui, não preciso de coisa alguma, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros. Agradam-me. Troca-los-ei pelos meus cabelos brancos, que têm mais de mil anos.
– Só isso? volveu a mãe. Ei-los, dou-vos de boa vontade.
E arrancou os esplêndidos cabelos, o seu orgulho na juventude, outrora, recebendo em volta os cabelos curtos e inteiramente brancos da corcovada feiticeira.
Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação maravilhosa.
Viam-se debaixo de campânulas de cristal, jacintos mimosíssimos ao lado de peônias inchadas e ordinárias. Havia também plantas aquáticas, umas a estourar de seiva, outras meio murchas, e em cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas. Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos frondosos; depois, num outro sítio isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas humildes.
Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, quase a rebentar; mias viam-se também florzinhas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, cuidadas com esmero delicadíssimo. Tudo isto representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a China até à Groenlândia.
A velha queria-lhe mostrar tantas e tantas coisas misteriosas, porém a mãe impacientada rogou-lhe que a levasse aonde estavam as plantas pequeninas; tateava-as, apalpava-as, para lhes sentir o arfar, e, depois de haver tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações do coração de seu filho.
– É ele! exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que, pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.
– Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte ganhará medo porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem Ele o permitir.
Nisto zuniu um vento glacial, e a mãe adivinhou que era a Morte que se aproximava.
– Como é que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o conseguiste?
– «Sou mãe», balbuciou ela.
E a Morte estendeu a mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.
A mãe, porém, defendia-o violentamente com ambas as mãos, tendo o cuidado de não magoar uma só das pequeninas pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos enregelados de Dezembro.
– Não podes nada comigo! disse a Morte.
– Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a mãe.
– É verdade. mas eu não faço senão o que Ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as, para outros jardins, um dos quais é o grande jardim do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém sabe o que se lá passa.
– Misericórdia! misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o meu filho, agora que eu o encontro!
Suplicava e gemia. Tudo inútil: a Morte, impassível. Agarrou então em duas flores lindíssimas e gritou a Morte:
– Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não só estas, mas todas as flores que estão aqui!
– Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes que és desgraçada, e querias ir partir o coração das outras mães!
– Outras mães! balbuciou a infeliz mulher, largando logo as flores.
– Aqui tens os teus olhos, volveu a Morte. Brilhavam com tal esplendor que os extrai do lago. Não sabia que eram teus, Mete-os nas Orbitas, e olha para o fundo deste poço; vê o que destruías, arrancando as flores. Contemplarás na miragem da água a sorte destinada a essas duas flores, e a que teria o teu filho, se porventura vivesse.
Inclinando-se então sobre a cisterna, viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros risonhos e trágicos, e logo depois cenas inefáveis de miséria, de angústias e desolação.
– Nisto que vejo, tornou a mãe aflitíssima, não distingo qual a sorte que Deus destinava ao meu filho.
– É me possível revelar-te, acrescentou a Morte. Porém no que viste podias ler o destino do teu filho.
A mãe, alucinada, caiu de joelhos, exclamando:
– Suplico-te, diz: era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não é verdade? Fala! Não me respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele sofrer desgraças tão horrendas. O meu querido filho! Quero-lhe mais que à vida. As angústias que sejam todas minhas. Leva-o para o reino dos Céus. Esquece estas lágrimas, estas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que te disse.
– Não compreendo, respondeu a Morte: Queres o teu filho ou desejas que o leve para a região desconhecida de que não posso falar-te?
Então a mãe, alucinada, convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos, e, dirigindo-se a Deus, exclamou:
– Não me atendas, Senhor, se reclamo no fundo do coração contra a tua vontade que é sempre boa e sempre justa! não me ouças, meu Deus!
E deixou cair a fronte sobre o peito, mergulhada numa alegria dilacerante.
E a Morte, arrancando o pequenino açafroeiro, lá o foi plantar nos jardins da luz do Paraíso.
O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se, a chegar as brasas uma caneca de cerveja. O velho começou a embalar a criança, e a mãe sentou-se ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez com mais dificuldade, tomou-lhe a mãozinha descarnada e disse para o velho:
– Oh! Nosso Senhor não mo há de levar! Não é verdade?
E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça de modo estranho, em ar de duvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas deslizavam-lhe em fio pelo rosto. Sentiu-se estonteada, com um grande peso na cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou levemente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.
– Que é isto?! exclamou, lançando em roda o olhar alucinado. No berço ninguém! O velho partira, roubando-lhe a criança.
E a triste mãe, soluçante, correu desgrenhada por montes e vales, à procura do filho. Encontrou uma mulher no meio da neve vestida de luto.
– A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Vi-a a sair muito ligeira, levando o teu filho. Anda mais do que o vento, e o que ela rouba não torna a dar.
– Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-me-o! Diz-me-o pelo amor de Deus!
– Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de negro. Mas só te ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes te ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
– Cantar-te-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.
A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram ainda mais do que as palavras.
No fim disse-lhe a Noite:
– Toma a direita, pela floresta escura de pinheiros. Por ai e que a Morte seguiu com o teu filho.
A mãe correu para a floresta. No meio, porém, dividia-se o caminho, e não sabia que direção escolher. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.
– Não viste a Morte que levava o meu filho? perguntou a mãe.
– Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho sem me aqueceres primeiro no teu seio, porque estou gelado.
E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno frigidíssima; tal é o calor febril do selo de uma pobre mãe angustiosa.
E o matagal ensinou-lhe o caminho por onde ela devia ir. Foi andando, andando, até que chegou: à margem de um grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era profundo de mais para o passar a vau. Contudo urgia atravessá-lo. Num ímpeto do seu amor, arrojou-se de bruços a ver se poderia beber-lhe toda a água. Impossível! Lembra-se que Deus, compadecido, faria talvez um milagre…
– Não! Não és capaz de me esgotar, disse-lhe o lago. Sossega, e entendamo-nos. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são de um brilho mais suave que as pérolas mais ricas que tenho possuído. Querendo, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: aí habita a Morte; e, as flores e as arvores que estão lá dentro, é ela quem as trata; em cada flor e em cada árvore habita a vida de um coração humano.
– Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho! soluçou a mãe.
E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não teve no mundo uma rainha.
O lago então, arrebatando-a numa onda, depositou-a na outra margem, onde se erguia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de comprido. De longe ninguém discriminava se era um monumento de arte ou uma grande montanha cheia de cavernas, grutas e florestas. Mas a pobre mãe nada podia ver, porque tinha dado os seus olhos.
– Ah! como hei de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho! bradou ela desesperada.
– A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que andava de um lado para o outro, inspecionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste, tu aqui parar? quem te ensinou o caminho?
– Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. Anda, compadece-te de mim, e diz-me onde está o meu filho.
– Eu não o conheço, e tu és cega, tornou a velha. Há aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte não tarda aí para as levar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste sitio uma árvore ou uma flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e descobrirás talvez o coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que tens ainda de fazer?
– Já nada me resta, disse a pobre mãe suspirando. Mas iria até ao fim do mundo buscar o que tu quisesses.
– Fora daqui, não preciso de coisa alguma, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros. Agradam-me. Troca-los-ei pelos meus cabelos brancos, que têm mais de mil anos.
– Só isso? volveu a mãe. Ei-los, dou-vos de boa vontade.
E arrancou os esplêndidos cabelos, o seu orgulho na juventude, outrora, recebendo em volta os cabelos curtos e inteiramente brancos da corcovada feiticeira.
Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação maravilhosa.
Viam-se debaixo de campânulas de cristal, jacintos mimosíssimos ao lado de peônias inchadas e ordinárias. Havia também plantas aquáticas, umas a estourar de seiva, outras meio murchas, e em cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas. Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos frondosos; depois, num outro sítio isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas humildes.
Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, quase a rebentar; mias viam-se também florzinhas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, cuidadas com esmero delicadíssimo. Tudo isto representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a China até à Groenlândia.
A velha queria-lhe mostrar tantas e tantas coisas misteriosas, porém a mãe impacientada rogou-lhe que a levasse aonde estavam as plantas pequeninas; tateava-as, apalpava-as, para lhes sentir o arfar, e, depois de haver tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações do coração de seu filho.
– É ele! exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que, pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.
– Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte ganhará medo porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem Ele o permitir.
Nisto zuniu um vento glacial, e a mãe adivinhou que era a Morte que se aproximava.
– Como é que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o conseguiste?
– «Sou mãe», balbuciou ela.
E a Morte estendeu a mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.
A mãe, porém, defendia-o violentamente com ambas as mãos, tendo o cuidado de não magoar uma só das pequeninas pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos enregelados de Dezembro.
– Não podes nada comigo! disse a Morte.
– Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a mãe.
– É verdade. mas eu não faço senão o que Ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as, para outros jardins, um dos quais é o grande jardim do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém sabe o que se lá passa.
– Misericórdia! misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o meu filho, agora que eu o encontro!
Suplicava e gemia. Tudo inútil: a Morte, impassível. Agarrou então em duas flores lindíssimas e gritou a Morte:
– Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não só estas, mas todas as flores que estão aqui!
– Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes que és desgraçada, e querias ir partir o coração das outras mães!
– Outras mães! balbuciou a infeliz mulher, largando logo as flores.
– Aqui tens os teus olhos, volveu a Morte. Brilhavam com tal esplendor que os extrai do lago. Não sabia que eram teus, Mete-os nas Orbitas, e olha para o fundo deste poço; vê o que destruías, arrancando as flores. Contemplarás na miragem da água a sorte destinada a essas duas flores, e a que teria o teu filho, se porventura vivesse.
Inclinando-se então sobre a cisterna, viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros risonhos e trágicos, e logo depois cenas inefáveis de miséria, de angústias e desolação.
– Nisto que vejo, tornou a mãe aflitíssima, não distingo qual a sorte que Deus destinava ao meu filho.
– É me possível revelar-te, acrescentou a Morte. Porém no que viste podias ler o destino do teu filho.
A mãe, alucinada, caiu de joelhos, exclamando:
– Suplico-te, diz: era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não é verdade? Fala! Não me respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele sofrer desgraças tão horrendas. O meu querido filho! Quero-lhe mais que à vida. As angústias que sejam todas minhas. Leva-o para o reino dos Céus. Esquece estas lágrimas, estas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que te disse.
– Não compreendo, respondeu a Morte: Queres o teu filho ou desejas que o leve para a região desconhecida de que não posso falar-te?
Então a mãe, alucinada, convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos, e, dirigindo-se a Deus, exclamou:
– Não me atendas, Senhor, se reclamo no fundo do coração contra a tua vontade que é sempre boa e sempre justa! não me ouças, meu Deus!
E deixou cair a fronte sobre o peito, mergulhada numa alegria dilacerante.
E a Morte, arrancando o pequenino açafroeiro, lá o foi plantar nos jardins da luz do Paraíso.
Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância. Livro em Domínio Público
Guerra Junqueiro. Contos para a infância. Livro em Domínio Público
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