quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) XI

Obs. do blog: O primeiro verso e título de cada poema é do poeta colocado abaixo do título, com a página e livro onde se encontra.

QUANDO EU VOLTAR À TERRA DE ONDE VIM
Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 19

Quando eu voltar à terra de onde vim
Não chorem que essas lágrimas não trazem
O meu olhar ao chão onde se fazem
As rosas que incendeiam um jardim.

Nem rezem, nesse já morto Latim
Ladainhas que em nada satisfazem
As pálidas lembranças em que jazem
Os restos do melhor que havia em mim.

Entreguem o meu corpo ao fogo santo
Que o limpe do pecado e do quebranto
Até que dele sobre apenas pó.

E o meu penar talvez não seja em vão
Vendo que o trigo, antes de ser pão
Primeiro há de passar por qualquer mó.
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VEM TER COMIGO, À NOITE, À MINHA CAMA
Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.

No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.

Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.

Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
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TUDO O QUE SOU É MENOS DO QUE EU QUERO
José Carlos Ary dos Santos in "Cem Sonetos Portugueses", p. 146

Tudo o que sou é menos do que eu quero
Para matar a sede em que me afogo
E acabrunhado aos pés da vida eu rogo
O fim da pequenez que não tolero.

Amarrado a um corpo que é severo
Nas margens do impossível em que eu vogo
Perplexo, pobre e puro eu me interrogo
Do modo como ser mais do que um zero.

Tem razões para estar insatisfeito
O coração que trago no meu peito
Vestindo a sua estranha condição:

Com asas de voar para se erguer
O destino o condena a padecer
E a morder esse pó que há pelo chão.
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O TEU ROSTO DE SAL NA PRAIA VÃ
José Charles González in "Cem Sonetos Portugueses", p. 148

O teu rosto de sal na praia vã
Filtrava a luz do sol nesse cristal
E lá do sul, subindo o areal
Vinha a lua dizer que é tua irmã.

Sendo a razão de ser desta manhã
Silhueta esculpida num vitral
Serias Virgem numa catedral
Se não tivesses já coroa de romã.

És sereia que o mar azul trouxesse
Uma rosa de orvalho que amanhece
E, por milagre, a Terra iluminasse.

És aragem lembrando borboleta
Vestida de amarelo, azul, violeta
E que ao bater das asas nos deixasse.
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DEBAIXO DA MESA GUARDAS OS JOELHOS
Manuel António Pina in "Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011)", p. 50

Debaixo da mesa guardas os joelhos
Nesse ponto preciso do ângulo reto
Das pernas que, descendo, são cateto
Que morre aos pés de uns chinelos vermelhos.

Esta cor não constava entre os conselhos
Do que era bom, prudente e tão correto
Numa donzela de berço e de teto
Que tanto se privava dos espelhos.

A barra da toalha ajuda a saia
A esconder a tez branca de cambraia
Que aos meus olhos traz louca tentação.

Esquecendo a moral e o pudor
Sinto saudades tais do teu calor
Que entre os dois vai subindo a minha mão…

Fonte:
Enviado pelo poeta. 
Disponível em Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.

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