Na cidade de Vitória, no Espírito Santo, havia uma ceguinha que, por ser muito amiga de crianças, ia todos os dias sentar-se perto de uma escola, num caminho ensombrado por bambus. Entretinha-se ela ouvindo as conversas da pequenada que subia para as aulas.
As auras do mar vinham de longe queimar-lhe o rosto trigueiro. Imóvel, com o cajado nas mãos pequenas, ela imaginava quanto os rapazinhos deveriam estar pimpões dentro das suas roupinhas bem lavadas, e ria-se quando, a qualquer ameaça ou repelão de um dos mais velhos, os pequenos gritavam:
—Eu vou dizer à mamãe!
E havia sempre um coro de gargalhadas, a que se juntava uma voz lamurienta.
Um dia, dois dos estudantes mais velhos, já homenzinhos, desciam para o colégio, quando verificaram ser ainda muito cedo, e sentaram-se também numas pedras, a pequena distância da mendiga. O dever da pontualidade, que não deve ser esquecido em nenhum caso da vida, aconselhou-os a ficarem ali até a hora fixada pelo mestre para a entrada na escola. Entretanto, para não perderem tempo, repassaram os olhos pela lição, lendo alto, cada um por sua vez, o extrato que tinham feito em casa, de uma página de História do Brasil.
A cega, satisfeita por aquela inesperada diversão, abriu os ouvidos à voz clara de um dos meninos, que dizia assim:
"A civilização adoça os costumes e tem por objetivo tornar os homens melhores, disse-me ontem o meu professor, obrigando-me a refletir sobre o que somos agora e o que eram os selvagens antes do descobrimento do Brasil. Eu estudei história como um papagaio, sem penetrar nas suas ideias, levado só por palavras. Vou meditar sobre muita coisa do que li. Que eram os selvagens, ou os índios, como impropriamente os chamamos? Homens impetuosos, guerreiros com instintos de animal feroz. Entregues absolutamente à natureza, de que tudo sugavam e a que por modo algum procuravam nutrir e auxiliar, estavam sujeitos às maiores privações; bastando que houvesse uma seca, ou que o animais emigrassem para longe das suas tabas, para sofrerem os horrores da fome. Sem cuidar da terra e sem amor ao lar, abandonavam as suas aldeias, poucos anos habitadas, e que ficavam pobres “taperas” sem único indício de saudade daqueles a quem agasalharam! Elas ficavam mudas, com os seus telhados de palma apodrecidos, sem ninhos, sem aves, que as flechas assassinas tinham espantado, sem flores, sem o mínimo vestígio do carinho que temos por tudo que nos rodeia. Abandonando as tabas, que por um par de anos os tinham abrigado, os donos iam plantar mais longe novos arraiais. Os homens marchavam na frente, com o arco pronto para matar, e as mulheres iam atrás, vergadas ao peso das redes, dos filhos pequenos e dos utensílios de barro de uso doméstico. O índio vivia para a morte; era antropófago, não por gula, mas por vingança.
Desafiava o perigo, embriagava-se com sangue e desconhecia a caridade. As mulheres eram como escravas, submissas, mas igualmente sanguinárias. Não seriam muito feios se não achatassem os narizes e não deformassem a boca, furando beiços. Além da guerra e da caça, entretinham-se tecendo as suas redes, bolsas, cordas de algodão e de embira, e polindo machados de pedra com que cortavam lenha. Quero crer que as melhores horas da sua vida seriam passadas nessas últimas ocupações.
Que alegria invade o meu espírito quando penso na felicidade de ter nascido quatrocentos anos depois desse tempo, em que o homem era uma fera, indigno da terra que devastava, e como estremeço de gratidão pelas multidões que vieram redimir essa terra, cavando-a com a sua ambição, regando-a com seu sangue, salvando-a com a sua cruz!
Graças a elas, agora, em vez de devastar, cultivamos, e socorremo-nos e amamo-nos uns aos outros!
Pedro Álvares Cabral, Pêro Vaz de Caminha, Frei Henrique de Coimbra, vivei eternamente no bronze agradecido, com que no Rio de Janeiro vos personificou o mestre dos escultores brasileiros!”
Vinham já os outros rapazes muito apressados a caminho da escola. A cega calculou pelas vozes o tipo e a estatura de cada um, e, quando já se perdia ao longe o rumor dos passos da maior parte deles, sentiu, como nos outros dias, cair-lhe devagarinho no colo uma laranja e um pedaço de pão.
Nenhuma palavra costumava acompanhar aquela dádiva, mas uma corridinha leve denunciou, como das outras vezes, o fugitivo, o Chico, que não tendo nunca dinheiro para dar à pobrezinha, dava-lhe a sua merenda!
Nesse dia as crianças voltaram imediatamente do colégio: o professor adoecera e não havia aula. Sentindo-os, a cega levantou o bastão para que parassem e perguntou:
— Como se chama o menino que todos os dias me mata a fome, dando-me a sua merenda?
Ninguém respondeu. Como a pobre renovasse a pergunta, Chico fugiu envergonhado. Reconhecendo-o pela bulha dos passarinhos rápidos, a mendiga exclamou:
— É aquele que fugiu! Tragam-no cá; quero beijar-lhe as mãos!
Alcançado pelos colegas, Chico retrocedeu, vermelho como uma pitanga, e deixou-se abraçar pela mendiga, que lhe passava os dedos pelo rosto, procurando adivinhar-lhe as feições.
Familiarizados com ela, os meninos perguntaram-lhe:
— Vocemecê não vê nada, nada?
— Nada.
— Já nasceu assim?
— Não...
— Como foi?
— Coitadinha...
As perguntas das crianças não a humilhavam, porque ela já as tinha por amigas.
— Querem saber como fiquei cega? Escutem: quando eu era moça, morava e frente à casa de uma viúva carregada de filhos. Uma noite acordei ouvindo gritos. — Socorro, socorro! Pediam em brados. Levantei-me à pressa, vesti-me não sei como, e fui à janela. Da casa fronteira saíam chamas e grandes novelos de fumo; na rua, a dona da casa, gritando sempre, aconchegava os filhos ao peito. De repente deu um grito agudíssimo: faltava um dos filhos mais moços – o Manoel!
A desgraçada quis atirar-se às chamas, mas as crianças agrupavam-se todas agarradas à sua saia: então eu atravessei correndo a rua, e de um pulo trouxe para fora o menino, já meio tonto e pálido como um morto. Não me lembro senão do calor do fogo que me cercava por todos os lados, da fumaça que oprimia e da dor horrível que senti nos olhos, quando, à rajada fria da noite, entreguei na rua o filho à mãe.
Ela gritou radiante: — Está salvo! e eu pensei com amargura: — Estou cega...
— E essa família? Inquiriu um dos meninos.
— Era pobre também. Nem sei onde para...
— Sei eu! Respondeu um dos pequenos; essa família é a minha! A criança que a senhora salvou é hoje um homem trabalhador e que há de protegê-la. É meu pai.
Uma hora depois a velha cega entrava para sempre em casa de Chico, onde lhe deram o melhor leito e a trataram sempre com o mais doce carinho, provando assim que muita razão tinha o mestre fazendo ver ao discípulo quanto a civilização adoça os caracteres e torna os homens bons!
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Histórias da nossa terra. (Rio de Janeiro. Ed. Francisco Alves, 1925), 99. 25-34. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil
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