sábado, 18 de fevereiro de 2023

André Carneiro (Do outro lado da janela)

Ele notava o defeito bem tarde, quando já passava horas vendo os programas. Era uma pequena mancha que mudava de lugar e às vezes desaparecia, para voltar depois. A televisão era nova, não devia dar defeito.

Mandou consertá-la. No primeiro dia foi tudo bem. No segundo, lá estava a mancha de novo. Nos programas da tarde a imagem era boa. Alguém o lembrou de que talvez fossem os olhos cansados... Não eram. Sentia-os perfeitos, mesmo quando passava da meia-noite. Alguns filmes terminavam por volta das três horas da manhã. O técnico foi chamado de novo, e tudo se repetiu, até que ele resolveu vender o aparelho por qualquer preço e comprar outro, com sacrifício, o melhor e o mais caro nos anúncios.

Até a meia-noite a imagem estava nítida, mas meia hora depois apareceu a sombra, vaga e móvel, como se fosse parte de outra transmissão. A mancha não era estática, tinha movimento, suas bordas modificavam-se, dissolviam-se como algo em crescimento, em evolução. É isso, em evolução. Ele notou que a mancha era uma coisa viva, às vezes tinha tanto interesse quanto os filmes. Ele se perturbava olhando para aquilo, tentando descobrir o que era, o que significava, enquanto se esforçava para não perder o que estava acontecendo atrás, no filme que acompanhava. Atrás? Por que atrás? A mancha não estava na frente, misturava-se à imagem do programa transmitido.

Ele já mudara a televisão de lugar, comprara filtros especiais, inutilmente. Embora não falasse com ninguém do prédio, um dia, no elevador, quando conversavam sobre novelas, criou coragem, perguntou se eles notaram um defeito, uma leve mancha na imagem. Não, ninguém vira nada parecido.

Aos poucos, desistiu de lutar contra a mancha. Não chamaria mais os técnicos, não tentaria eliminar o defeito. Estava aprendendo a conviver com ela. Entretanto, a mancha não era somente algo que tapava o que estava atrás. Ela vibrava e se mexia com tal sutileza que parecia um pequeno programa dentro do outro que ele via. Surpreeendeu-se, um dia, ao perceber que a mancha estava também aparecendo à tarde, nem se lembrava há quanto tempo. Agora, quando o programa não era de seu especial interesse, ele olhava para a mancha, acompanhava as suas bordas, tentava calcular quanto ela tinha crescido e até onde ia chegar.

Bem tarde da noite, ela parecia bem maior e mais forte. Ele ficava no sofá, quase deitado, olhando fixo, horas seguidas. Um dia, surpreeendeu-se com o vídeo luminoso e branco, o zumbido do aparelho ligado, sem nenhuma imagem. Eram cinco horas da manhã, a estação tinha encerrado a transmissão. Ficou olhando por algum tempo ainda o retângulo mágico, depois deitou-se e custou a dormir.

Ficou algumas horas na cama, levantou-se e ligou o aparelho.

A mancha estava lá. Agora bem maior.

Quando se deu conta que a mancha já ocupava metade da imagem , percebeu que só via também os programas pela metade. A mancha crescia do centro para as bordas. Fazia estas reflexões para si próprio, de maneira fria e estatística, pois também ele aumentava as horas em que permanecia em frente ao aparelho, prestando a maior atenção. A mancha não era um borrão. Era uma cena, personagens, gestos, que ele identificava como em um sonho.

Só saia do quarto para pegar algo, um sanduíche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa. Comia coisas frugais, olhando para o vídeo. Já não importava selecionar canais, procurar programas. A mancha estava ali e fixando-a com atenção revelava coisas, fisionomias que ele não identificava, mas lhe pareciam importantes. Não se esforçava para entender nem reconhecer o que via. Era algo que o fascinava e o prendia, que talvez acabasse saindo do aparelho e invadindo toda a casa. Sim, havia personagens na mancha, e um, mais especial, que o emocionava, não sabia por quê.

Assistia aos programas até o fim. Quais programas? Não saberia descrever ou dar o título de nenhum. Ele via televisão e a mancha não existia mais. Era o próprio programa. O personagem principal foi adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar, sua fisionomia marcada eram impressionantes.

Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia amanhecer. Não a desligou, também. Sem quase tirar os olhos dela, bebeu apenas um copo de leite. Pestanejava e olhava o aparelho zumbindo, e de repente teve uma sensação estranha. O quarto parecia menor, mais quente, as paredes não eram mais paredes, mas tinham encaixes, fios, eram curvas, eram... o aparelho de televisão em sua frente parecia imenso agora, mas... não era um aparelho, era como se fosse uma janela retangular, enorme, do tamanho da parede do quarto. Do outro lado da janela, não, não era janela, era o próprio vídeo que ele reconhecia, as paredes do quarto eram de vidro. Ele estava dentro do tubo, dentro do próprio aparelho, e lá fora, sentado em uma cadeira, com os olhos fixos em sua direção, um homem cansado, mas atento. Podia reconhecê-lo facilmente. Era ele próprio.

Fonte:
Texto enviado pelo autor em 31 jan 2001. Disponível em CARNEIRO, André. A máquina de Hyerónimus e outras histórias. São Carlos: EDUFSCar, 1997. p.21-23.

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