Esta noite é igual a todas as noites, entretanto, subitamente, é aquela noite que ficará marcada para a minha alegria. Subitamente, estou dentro dela, consciente, e a sinto como se a tivesse aderente a minha pele, como uma tatuagem, como se pudesse envolve-la ou toma-la nos braços
Por que? Não sei. Parece apenas que tudo o que faz a noite, sua calma expectante, seus pequenos ruídos singulares, suas luzes, suas sombras, suas formas estáticas; todos os que são a noite estão presentes, posso senti-los como se fossemos uma mesma coisa, ou um mesmo ser. Como se subitamente, me transmudasse na noite que esta ao meu redor, como se ela estivesse em mim.
Todos os que estão acordados, uns poucos que, como eu, a estão velando ou saboreando, em estado de angústia ou de suprema paz; ou os que embarcaram nos pesados veleiros do sono, e estão adormecidos, onde ? em qualquer lugar, mas sinto que estão adormecidos, fazem parte da minha vida, e dão dimensões inimagináveis a minha solidão.
Sinto sua presença " física ", soma de tantas ausências, nesse extenso e enorme silêncio a volta, silencio de coisa em gestação, tecido de vagos movimentos apenas adivinhados, de sons que não chegam aos nossos ouvidos. Sem a sensação dessa falta, esse silêncio não seria possível, nem essa pausa, essa tranqüilidade, feita de tantos que estão submersos, que nasce da vida momentaneamente em sincope.
Essa hora tarde se impregna de humanidade, porque é justamente a hora em que a vida apenas lateja, distante, sob os meus dedos, como um pulso a apalpação do médico. Em que posso vir a mim, ou ir-me, a encontrar-me como a um velho conhecido, de raras visitas - para conversar sobre coisas de que só nós nos lembramos, tantas e infinitas coisas insignificantes, da maior importância para que continuemos vivos: para falar sobre todos a sobre tudo, a tentar descobertas como quem abre uma janela e se debruça para o acaso. Colho minha alegria em momentos assim. Em de repentes, em subitamentes, como se esbarrasse em transeuntes apressados e desconhecidos. Colho minha alegria de momentos assim, em que nada parece se ter alterado, em que as coisas permanecem como são, em sua rotina, mas em que surpreendentemente me reconheço e me revelo.
Então, ela cintila por segundos, me aposso dela com uma aguda e intensa percepção, penetro-lhe o mistério e o sentido. Mas perco-a também, logo após, tal como a encontrei. E ela se vai e se esvai como surgiu, e mergulho novamente como um ser comum na torrente igual da vida.
Quantos dias, quantos meses, tempo sem tempo, vou seguindo sem me aperceber disto? Mas, de repente, posso reconhecer que vivo.
Sim, a uma descoberta maravilhosa, e tudo me sabe então novo e inédito, como se acabasse de nascer. Grito-me para mim mesmo que estou vivo, e essa sensação é deslumbrante é misteriosa!
- Então eu vivo! E há calor em tudo que me cerca, diante de meus olhos, ao alcance de minhas mãos. Tantos semeando e colhendo. Há estrelas, distantes estrelas, tão próximas para os nossos olhos, nos momentos de desânimo. Há pássaros em perdulários cantos e algazarras, efervescendo nas ramagens ao cair da tarde; automóveis pulsando nas ruas, num vaivém taquicárdico de civilização cardiopática; banhista nas praias, displicentes, colhendo o sol e o mar; crianças, que são sempre crianças, que dão sempre a impressão de que não vão crescer, embaraçando de correrias os jardins, os recreios; e mães gritando há milênios, dos andares altos, das janelas abertas, anunciantes do futuro.
Não é extraordinário que eu descubra que há vida ao meu redor, vida com "V" grande, apenas vida, e que andava cego a surdo ? E que afinal devo a tantos que não me percebem, nem tomam conhecimento de minhas descobertas, e minha alegria de viver?
E só por isso, uma luminosa euforia lava meu coração, e o embebeda, e o abre como uma espátula de luz. Inexplicavelmente compreendo tudo, justifico tudo, e me sinto tocado de amor, de um ímpeto de braços dados, de mãos que se apertam, de peitos que se abraçam!
E só por isso, só ? Meu Deus ? - me sinto melhor, endividado com a vida, a agradecer a todos, e a perdoar até, a todos, a sua presença; paradoxalmente esquecido de mim, integrado a humanidade, a bendize-la.
Meu Deus, acho que nestes momentos fico poeta. Acho que ser poeta é só isto: encontrar-se subitamente dentro da vida, o coração nu, com esse estranho poder de despojar as coisas de si mesmas, a vê-las por dentro, e ama-las em sua palpitante beleza. Sentir-se ao mesmo tempo único a múltiplo, consciente de suas forças pelas infinitas placentas que o prendem ao mundo.
Acho que ser poeta é de repente poder se sentir feliz, apenas porque se vive, sem quaisquer indagações, em contato com Deus, seus mistérios e suas verdades. E a vida ser algo assim que se justifica pela simples e indescritível revelação de um momento perfeito, sem macula, sem preocupações, sem ódios, sem egoísmos, sem despeitos, e até sem desejos; tecido apenas de amor, um amor total, cósmico, transbordante; que não cabe a penas na mulher que nos espera; no filho que se quer; no amigo que nos companha; mas que os integra também na emoção imensa, ampla, profunda - como um remoinho em que nos abandonamos completamente - como uma nebulosa em que nos dissolvemos, inteiros.
Acho que ser poeta é poder colher esse instante, e tentar fixa-lo em palavras e cantos, servi-lo a mancheias, para matar a fome e a sede de paz e beleza, de comunicação e amor, e um mundo feito de ânsias e frustrações, de surdos corações e espíritos cegos.
Acho que ser poeta é poder colher esse instante de alegria como a uma flor imortal, para oferta-lo a todos, para que todos participem dele.
Talvez por isso, escrevi um dia aqueles versos. -
O poeta é um prestidigitador
faz mágicas com a vida
transforma água em vinho,
para a embriaguez da beleza
ou, quem sabe? estes outros:
Meus Deus
por que ser difícil ?
É tão fácil cantar: basta abrir a boca.
É tão fácil amar: basta abrir o coração.
Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969
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