sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) - Pena de Papagaio - VII - Esopo


Durante todo aquele tempo o menino invisível estivera afastado do grupo, vendo uns macacos que haviam aparecido na orla da floresta. Ao voltar anunciou sua chegada, já de longe, com o costumado cócóricócó. O senhor de La Fontaine, que ignorava aquela mania do Peninha, iludiu-se, julgando tratar-se dum galo de verdade.

— Lá está um galo cantando — disse ele ingenuamente. – Gosto dessa ave, que simboliza a bravura e a vitória.

Todos sentiram vontade de rir ao perceberem o engano dum homem tão sábio. Mas contiveram-se, lembrando o respeito que dona Benta lhes ensinara para com os mais idosos. Todos, menos Emília. A burrinha espremeu uma das suas risadas caçoístas e disse, antes que a menina pudesse atrapalhar:

— O senhor está fazendo papel de bobo, senhor de La Fontaine! Aquilo nunca foi canto de galo, nem aqui nem na casa de sua sogra. É o Peninha que vem vindo.

Narizinho, envergonhada, tapou-lhe a boca com a mão e ralhou; — Como chama bobo a um homem tão importante, Emília? Vovó, quando souber, vai ficar danada!...

Nisto a pena de papagaio apareceu flutuando no ar, vinda da floresta, em companhia dum homem esquisito. Todos se voltaram para ver.

— Quem será o bicho careta? Com certeza algum homem que estava tomando banho e perdeu as roupas — berrou Emília. – Vem embrulhado na toalha.

O senhor de La Fontaine explicou quem era.

— Estás enganada, bonequinha. Aquele homem é um famoso fabulista grego. Não vem embrulhado em nenhuma toalha, mas sim vestido à moda dos antigos gregos. Chama-se Esopo. Foi o primeiro que teve a idéia de escrever fábulas.

Esopo chegou e saudou cortesmente o fabulista francês. Depois fez festas às crianças. Vendo Emília, admirou-se.

— Oh, uma bonequinha também! Era o único ente que faltava nestas terras. É falante?

— É sim. Emília fala pelos cotovelos — respondeu Narizinho.

A admiração de Esopo foi grande, porque apesar de velho nunca tinha sabido de nenhuma boneca que falasse.

— É extraordinário !— disse ele. — Bonecas vi muitas em Atenas, mas mudas. O mundo tem progredido, não resta dúvida. Como te chamas, bonequinha?

— Emília de Rabicó, sua criada.

— Lindo nome. E quem te ensinou a falar?

— Ninguém — respondeu Emília com todo o espevitamento.

— Nasci sabendo. Quando o doutor Caramujo me deu uma pílula tirada da barriga dum sapo, comecei a falar imediatamente.

— Emília fala muito bem — explicou Narizinho. — Pena é que diga tanta tolice. O grego sorriu com malícia.

— Nós, sábios, também não fazemos outra coisa — disse ele. — Mas como dizemos nossas tolices com arte, o mundo se ilude e as julga alta sabedoria. Vamos, bonequinha, diga uma tolice para o velho Esopo ver.

Emília desapontou e, torcendo a ponta do seu lencinho de chita, respondeu com muito propósito:

— Assim de encomenda, não sei...

Os dois fabulistas trocaram um olhar de inteligência, como quem diz: “Vê?” Em seguida ferraram uma discussão a respeito da origem das fábulas — e, afastando-se dali, foram sentar-se numa pedra à beira do ribeirão.

Vendo-se sós, os meninos começaram a planejar grandes aventuras.

— Eu quero ver um leão! Quero conhecer o leão da fábula! — disse Pedrinho.

— Eu quero ver aqueles dois pombinhos do apólogo tão bonito que vovó contou — disse a menina.

— E eu quero pegar um tatu-canastra — disse Emília.

Era a terceira vez que Emília falava em tatu-canastra. Narizinho ficou intrigada.

— Que tatu-canastra é esse em que você tanto fala, Emília?

A boneca respondeu sem demora.

— É que a canastrinha que trago sempre comigo me dá muita canseira. Tenho de carregá-la no lombo do Visconde o tempo todo. Ora, se pego um tatu-canastra, fico dona duma canastra que anda por si mesma nos seus quatro pés. Não acham que é boa idéia?

— É a maior idéia que a senhora teve até hoje, marquesa! — exclamou o Visconde.

O pobre sábio andava que mal podia consigo, de tanto carregar às costas a tal canastrinha. Por isso não falou nem se meteu em coisa nenhuma durante todo o passeio. Não pôde nem sequer debater ciência com os dois fabulistas, seus colegas em sabedoria. Se de fato houvesse um tatu-canastra, que bom!


Peninha contou que na floresta havia muito mais bichos do que ali — leões, tigres, macacos, ursos — todos os animais importantes. Em vista disso, para lá se encaminhou o bando, guiado pela pena de papagaio flutuante. Assim que entraram na floresta viram no topo de uma árvore seca um corvo de queijo no bico. Pedrinho, muito sabido em fábulas, disse logo:

— Aposto que embaixo da árvore está uma raposa. Ela vai gabar a voz do corvo, dizendo que nenhum sabiá canta mais bonito que ele. O vaidoso acredita, fica todo ganjento, abre o bico para cantar e o queijo cai e a raposa pega o queijo e foge com ele, na risada. Já sei tudo. Não vale a pena pararmos para ver isso.

— Vale, sim! — contrariou Emília. — Podemos enganar a raposa e comer o queijo.

Narizinho fez cara de nojo.

— Que coragem, Emília! Comer um queijo que já andou em bico de corvo...

— Comer de mentira, boba. Só para ver o desapontamento da raposa.

Mas não pararam. Pedrinho achava que corvo e raposa eram bichos sem importância, dos que não valem a pena. Queria feras de verdade.

— Onde mora o leão, Peninha? — perguntou ele.

— Na montanha. Vai-se pelo caminho da casa da Menina do Leite.

— Bravos! — exclamou Narizinho. — Vovó nos contou a história dessa coitadinha que foi ao mercado vender o primeiro leite da sua vaca mocha, fazendo castelos do que havia de comprar com o dinheiro. De repente tropeçou, o pote veio ao chão e a coitada viu irem-se água abaixo, com o leite, todos os seus lindos sonhos. Desejo muito conhecê-la pessoalmente.

A floresta formava ali uma clareira, de modo que puderam avistar ao longe a fumacinha, depois a chaminé, depois o telhado e por fim a casa inteira de Laura, a Menina do Leite.

— Lá vem ela! — gritou Emília.

De fato, num vestido de pintas vermelhas, Laura vinha vindo na direção deles, com o pote de leite à cabeça.

— Bom dia, Laura! — disse Narizinho ao defrontar a raparigota. — Aonde vai tão requebrada e faceira?

— Ao mercado da vila próxima, vender este leite da minha vaca mocha. Vendo o leite e compro duas dúzias de ovos. Pretendo chocar os ovos e tirar duas dúzias de pintos. Cresço a pintalhada e obtenho doze galos e doze galinhas. Vendo os galos e conservo as galinhas para botarem ovos. A duzentos ovos cada uma por ano, terei, deixe ver... — e começou a fazer a conta de cabeça.

— Não estrague a sua cabecinha, dona Laura — disse Emília.

— Temos aqui o Visconde que é um danado para contas. Visconde, arrie a canastra e faça a conta desta menina.

O embolorado sábio obedeceu. Arriou a canastrinha, enxugou o suor da testa e fez a conta na areia, com um pauzinho.

— Dois mil e quatrocentos ovos — declarou ele por fim.

— É isso mesmo — disse a Menina do Leite, que já tinha feito a conta de cabeça. — Dois mil e quatrocentos ovos! Ponho tudo a chocar e consigo outras tantas aves. Vendo-as no mercado e compro dez porcos. Faço uma criação de porcos. Vendo os porcos e compro cinqüenta vacas.

A boneca, que conhecia a fábula, estava de olho no pote para vê-lo cair. Era naquele ponto que o leite se derramava. Mas o pote não caiu e Laura continuou:

— Faço uma grande criação de vacas. Depois vendo as vacas e compro uma casa e um automóvel. Fico morando na casa e vou passear na vila de automóvel. Lá encontro um lindo moço que se apaixona por mim. Caso-me com ele e vou morar na cidade.

Emília estava na maior aflição. A Menina do Leite já passara todos os pontos em que o pote cai. Já estava casada e morando na cidade. Continuando assim, a fábula ia ficar completamente sem jeito. A boneca não pôde conter-se por mais tempo.

— Pare, senhorita, e derrube o pote de leite, se não a fábula fica sem pé nem cabeça! Laura deu uma gargalhada.

— Já se foi esse tempo, bonequinha! Isso me aconteceu uma vez, mas não acontece outra. Arranjei esta lata de metal, que fecha hermeticamente, para substituir o pote quebrado. Agora posso sonhar quantos castelos quiser, sem receio de que o leite se derrame e meus sonhos acabem em desilusões. Adeus, meninada, adeus!

Foi um desapontamento geral.

— Não valeu a pena pararmos para ver só isto – disse Pedrinho. — Vamos depressa à montanha. Talvez lá as fábulas sejam sempre as mesmas. Quero ver o leão.

Nisto avistaram a montanha onde estava a caverna do rei dos animais. Dali por diante tinham de ir com todas as cautelas, na ponta dos pés, para não despertar a atenção dalguma fera. Chegaram ao terreiro que havia em frente da caverna. Ossos de animais devorados e um cheiro de carniça mostravam que não houvera engano, era ali mesmo a caverna procurada.

— Sei duma fresta na rocha — disse Peninha – donde podemos ver o leão sem que ele nos veja. Sigam-me, sem fazer o menor barulhinho.

Todos o seguiram, pé ante pé, como gatos. Subiram pela rocha e por fim alcançaram a tal fresta, que ficava bem no topo da caverna, em ponto que os bichos não podiam alcançar nem que pulassem. Dali os meninos veriam tudo sem o menor perigo.

Cada qual se ajeitou como melhor pôde, com um olho na fresta.

— Lá está ele! — disse Pedrinho, que foi o primeiro a ver. — Lá está o Leão da Fábula no seu trono de ossos, rodeado de toda a corte.
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Continua… Pena de Papagaio – VIII - Os animais e a peste

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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