sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Guerra Junqueiro (A Boneca)


Deixe-me agora, leitor, contar-lhe a história de uma boneca!

Estava eu uma noite, distraidamente, encostado a uma barraca de feira.

Cansado das inúmeras figuras, que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica, dispunha-me a dar o espetáculo por concluído, quando novas personagens me chamaram a atenção.

Eram os meus vizinhos ricos.

Expliquemos:

Das famílias da minha vizinhança, só conheço três.

Uma vive na loja da casa onde habito. É uma tribo de crianças que fazem o martírio e a alegria da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.

Algumas delas, andando limpas, seriam encantadoras; assim, parecem anjos, caídos do Céu sobre um monte de lama.

São os meus vizinhos pobres.

A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e ocupa a casa imediata.

como se costuma dizer, gente que vai muito bem com a sua vida.

A filha, de dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente, gosta de experimentar com o dedo e que resistem à pressão.

São os meus vizinhos remediados. A terceira é a dos nossos vizinhos ricos. Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos,

criados, nome inscrito nas listas dos acionistas de todos os bancos e no rol dos credores do Estado – nada falta àquela ditosa gente!

Compõe-se por igual de marido, mulher e filha.

Que linda criança!... Terá oito anos.

Delgada e pálida, com os cabelos negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminando por unhas de uma cor-de-rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado – provavelmente ainda a crescer – que terá um dia direito de lhas cobrir de beijos.

Qual das três famílias será a mais feliz?...

Pelo que noto, não podem invejar-se umas às outras.

São todas felizes: cada qual a seu modo.

Vi, pois, chegar os meus vizinhos ricos.

Parou o carro, o trintanário saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos braços a filhinha, depô-la no chão, auxiliou a esposa a descer, e com ela e com a menina dirigiu-se para a barraca onde eu estava.

Aquele homem, exemplar como marido, rico, doido por ela, parecia agradecer à formosa criança a manifestação de qualquer desejo.

No fim de meia hora possuía a minha pequena vizinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos abastadas.

Tinha o necessário para montar completamente a casa de uma boneca... rica.

Faltava apenas a dona da casa – a boneca.

Todo risos e atenções, apresentou o lojista o que havia de melhor.

Depois de muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil criança, acabou por escolher uma bela boneca de dois palmos de altura, cabelo de ouro e grandes olhos azuis.

Uma boneca como as outras: cabeça e peito de massa, corpo de pelica recheada, braços e pernas de pau.

Feita a compra, levou o escudeiro todas aquelas preciosidades para dentro do carro.

A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocrática menina.

Saí dali, apenas o trem rodou, e fui fazendo até casa variadíssimas considerações, sugeridas pela quase indiferença com que aquela criança recebera brinquedos, que representavam um bom par de moedas.

Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras raparigas da mesma idade namoravam uma simples boneca de cabeça de pano, horrível artefato, em que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de retrós cor-de-rosa, a boca por outro fio vermelho, e os cabelos por flocos de lã preta!

Quando cheguei a casa, já na dos meus vizinhos remediados não havia luz.

Na dos meus vizinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de três assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar, provocavam zangas e descomposturas da mãe.

Quando, no dia seguinte, cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.

Na rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na casa imediata não se via ninguém – estava a pequena na mestra; no palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionária fazendo rodar, com o auxílio de uma linha, uma magnífica caleche descoberta, puxada por cavalos brancos.

Dentro da caleche pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.

– Ah! está a tua caricatura, minha feiticeira!... – disse eu de mim para mim. «Ensaias nas bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...»

Retirei-me da janela.

Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma cena.

A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que mudava três e quatro vezes de vestido.

Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!

Chamava-lhe Srª D. Luísa; dava-lhe excelência; sustentava, finalmente, com a boneca um destes diálogos de senhoras de alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.

Um dia – estava eu de costas voltadas para a janela dos meus vizinhos ricos –ouvi um grito de susto.

Era devido a um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.

Voltara-se este e caíra a boneca, rachando a cabeça na pedra da janela.

O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a vítima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se de que sé lhe bastava querer, para que lhe dessem outra boneca nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la com despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida e suplicante:

– Não deite fora!... Dê-ma.

Era a minha pequena vizinha da casa contígua, de quem eu não dera fé até então.

Assim invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sítio donde viera a súplica.

Mas, vendo uma criança, pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros, respondeu:

– Já não presta!... Está esmurrada!...

– É o mesmo!... Dá-ma?... – bradou a outra, cujos olhos ardiam de cobiça.

– Dou... volveu a rica, encolhendo novamente os ombros.

E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha, que tremia receosa de que o tesouro se fosse despedaçar nas pedras da calçada.

Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para mostrar à mãe o que ela ainda não podia acreditar que fosse seu!

Durante meses foi a boneca a principal ocupação da sua dona.

A pobre perdera na troca. ia longe o tempo em que ela se vestia quatro vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excelência! Chamavam-lhe a Srª D. Ana; falavam-lhe de arranjos domésticos, de desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas, enfim, completamente estranhas para ela!

E a desgraçada perdia as cores; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azuis; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se ia tornando mais escura: parecia uma nódoa, um estigma!

Nos primeiros tempos, enquanto durou o vestido que trouxera no corpo, ainda enganaria olhos pouco conhecedores.

Não tardou, porém, que arrebique de mau gosto, fitas velhas, rendas amareladas, chapéus impossíveis, viessem contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja de uma adeleira.

Mas o vestido foi-se tornando velho; desapareceu o brilho, e com ele as ondulações ao moiré, até que, um belo dia, vi a boneca vestida de cassa – no Inverno! – xale e manta na cabeça.

Muito mal lhe ficava aquilo!... Aquela boneca custava-lhe decerto o ver-se tão mal arranjada.

Eu retirei-me da janela com um suspiro e balbuciei:

– É justo!... Cada qual segundo as suas posses.

Por este tempo, entrei em relações com o meu vizinho sapateiro.

O honrado homem soubera que eu me queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a primeira ocasião, para me pedir desculpa...

Vendo-me conversar com o pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de sofrer as consequências da sua travessa familiaridade.

Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita de onze anos, com quem simpatizei logo à primeira vista.

Chama-se Maria.

Por um destes acasos, que parece às vezes comprazerem-se em suscitar contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.

Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei: deveras atônito quando o pai inda apresentou.

E ele conhecia bem o valor daquela criança, porque se sentia verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse:

«Esta é a minha Maria!» E tinha razão!

Não podia ser mais discreta do que já era naquela idade.

– É quem vale à mãe!... – acrescentou o velho. – Ali, onde a vê, faz o serviço de uma mulher.... – Há seis meses, quando a minha santa caiu de cama – bem pensei que não arribasse! – a pequena era quem cozinhava e olhava pelos irmãos! E caridade como ela tem!?... Olhe que esteve três dias sem se deitar... Ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, não a queria deixar!...

E o desvanecido pai enxugou com a manga da camisa uma lágrima, que, havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia desprender.

Fazia gosto ver aquela criança com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por um lenço branco.

Desde que o pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca passei por defronte da porta da loja, sem dar pelo menos os bons-dias à pequena.

Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma boneca deitada nos joelhos.

– Eu conheço aquela boneca!... – disse de mim para mim.

E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:

– Maricas! Quem te deu a boneca?...

– Foi ali a menina da vizinha! – respondeu corando de prazer.

Era escusado dizer-mo.

A Maria pegara na boneca e voltara-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá estava a mancha, o estigma cada vez mais visível no meio da testa.

De tempos a tempos, nas raras horas do descanso, Maria entretinha-se com a boneca.

Quem te viu e quem te vê!... – pensava eu.

Às vezes, se a Maria se descuidava e os irmãos lha apanhavam, que tratos diabólicos não sofria a desgraçada!

Roçada por aquelas mãos, que envergonhariam um carvoeiro, empregada como péla, submetida a torturas, era, ainda assim, bem singular o aspecto da triste miserável!

Dava ares de uma duquesa que, por necessidade, houvera sido levada a fraternizar com o povo.

A triste boneca mudara mais uma vez de nome!... De Srª D. Ana, passara a ser Srª Rosinha e tratavam-na por vossemecê.

Usava vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço na cabeça.

Era um prazer para mim escutar as conversas, que Maria sustentava com a boneca.

Esta, umas vezes, fazia o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por tudo estar caro, por haver falta de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os casos, em suma, que mais familiares eram à pequena.

Outras vezes passava a boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar água à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.

Já o leitor vê que, apesar da bondade de Maria, a mísera boneca era infelicíssima.

Iam longe os bons tempos em que ela, rica, morava no palácio vizinho!

Desmaiada de cores, quase perdido o cabelo, semiapagados os olhos, desfeito o carmim dos lábios, a boneca não prometia longa duração.

Foi este pelo menos o prognóstico que fiz a última vez que a vi, tentando em vão agradar à última dona que o seu destino lhe dera.

Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!

Um dia chovia a cântaros! – o enxurro mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.

Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a água negra, que coma. Nisto ouvi um grito que partiu da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto... Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço voando, e foi cair no leito do enxurro...

Olhei... Era a boneca!...

A mísera, arrastada pela água, vogou rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho envolveu-a, e depois de a fazer girar três ou quatro vezes, obrigou-a a passar entre a pedra e o passeio, e lá a triste seguiu no fio da corrente, até se submergir nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na passagem!

Será pieguice, será o que o leitor quiser: mas, confesso-lhe, que me impressionou o destino da pobre boneca.

Mas passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado à vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:

– Porque deitaste fora a boneca, Maricas!?

– Não fui eu... balbuciou a pequena, chorando. – Foi ali o Joaquim!

– E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...

– Ora!... respondeu o garoto com enfado... Ora!... Estava velha.., e feia!...

Curvei a cabeça ante aquela razão, e segui o meu caminho.

Pobre boneca!

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

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