segunda-feira, 1 de abril de 2013

Alexandre Dumas Filho (O Enforcado de La Piroche)

Alexandre Dumas Filho
 O leitor conhece La Piroche? Certamente não. Nem eu. Portanto, não se preocupe em que eu abuse de minha ciência, fazendo uma descrição. Sobretudo porque — digamos, cá entre nós — as descrições são muito aborrecidas. A menos que se trate das selvas virgens da América, como em James Fenimore Cooper, ou do Mississippi, como em Chateaubriand. Isto é, países que não estão ao alcance da mão, e para os quais a imaginação precisa da ajuda dos viajantes poetas, que os visitaram a fim de poder descrevê-los melhor em todos os detalhes.

 Em geral, as descrições não servem para grande coisa, e estão aí para que o leitor as salte. A literatura tem sobre a pintura, a escultura e a música a tríplice vantagem de poder fazer por si só um quadro com um epíteto, uma estátua com uma frase, uma melodia com uma página. Mas não está certo que abuse desse privilégio, e deve-se deixar a cada arte o seu campo específico.

 De minha parte, confesso que — salvo melhor opinião — quando me acho no caso de ter de descrever um país que todo mundo pode ter visto, ou que todo mundo pode ver, seja porque está próximo, seja porque não difere em muita coisa do nosso, prefiro deixar ao leitor o prazer de recordá-lo, se já o viu, ou de imaginá-lo, se ainda não o conhece. O leitor gosta que lhe deixemos sua parte criadora, na obra que está lendo. Isso o lisonjeia, e o faz acreditar que poderia fazer todo o resto. Lisonjear o leitor tem suas vantagens. Além disso, todo mundo sabe o que é o mar, uma planície, um bosque, um pôr-de-sol, um efeito da lua, uma tempestade. Para que tornar o texto pesado com essas coisas? Mais vale traçar a paisagem com uma só pincelada, como Rubens ou Delacroix — digo-o sem querer estabelecer qualquer tipo de comparação — e guardar o valor do nosso pincel para os personagens aos quais queremos dar vida.

 Por mais que empanturremos páginas inteiras com descrições, jamais daremos ao leitor uma impressão igual à que experimenta o mais ingênuo burguês passeando um belo dia de abril pelo bosque de Vincennes; ou ainda a mais ignorante donzela que, às onze horas da noite, atravessa as avenidas sombrias do bosque de Romainville ou do parque de Enghien, de mãos dadas com seu noivo.

 Todos temos no espírito e no coração uma galeria de paisagens com nossas recordações, que podem servir de fundo a todas as histórias do mundo. Basta dizer uma simples palavra — dia ou noite, inverno ou primavera, tempestade ou bom tempo, planície ou montanha — para que logo imaginemos a paisagem completa.

 Só direi, portanto, que quando começa esta história o sol atinge o meio-dia, estamos em maio, o caminho por onde vamos passar tem à direita umas plantações e à esquerda o mar. Isso basta para entender o que quero dizer: que os plantações são verdes, o mar murmura, o céu está azul, o sol está bem quente e a estrada coberta de poeira. Só preciso acrescentar que a estrada corre ao longo da costa normanda, de La Poterie a La Piroche; que La Piroche é uma aldeia que não conheço, mas deve ser como todas as outras; que a ação se desenrola em pleno século XV, justamente em 1448; que um dos dois homens é o pai do outro, ambos camponeses, e vão trotando em seus cavalos a uma velocidade até razoável, tendo em vista que carregam camponeses.

 — Será que chegaremos a tempo? — perguntava o filho.

 — Sim. Vai ser às duas horas, e pela posição do sol deve ser ainda meio-dia.

 — Não quero perder, pois tenho muita curiosidade em ver como é. Vão enforcá-lo com a armadura que roubou?

 — Exatamente.

 — Onde já se viu, o sujeito ter a idéia de roubar uma armadura!

 — O difícil não é ter a idéia...

 — É ter a armadura, eu bem sei — atalhou o filho, aderindo à brincadeira do pai. — E a armadura era boa?

 — Dizem que era magnífica, toda marchetada de ouro.

 — E o pegaram quando a levava?

 — Sim. É fácil compreender que uma armadura não concorda em ser roubada sem montar um escarcéu de todo tamanho. Ela não queria abandonar o dono.

 — Era de aço, e deveria ser muito pesada.

 — O ruído que ela produzia despertou o pessoal do castelo.

 — E logo puseram a mão no ladrão?

 — Não exatamente assim. Primeiro ficaram com medo.

 — Quem é roubado sempre sente medo dos ladrões. Se não fosse assim, os ladrões não levariam nenhuma vantagem.

 — E também as vítimas não sofreriam nenhuma emoção. Mas o caso é que o pessoal do castelo não se julgava diante de ladrões.

 — Diante de quem, então?

 — De um fantasma. O infeliz era muito forte, e carregava a armadura de pé, na frente do próprio corpo, mantendo a cintura dela na altura da própria cabeça. Quem via, na obscuridade, tinha a impressão de um gigante. Acrescente a isso o ruído surdo que o ladrão ia fazendo por detrás da ferragem, e entenderá o espanto dos criados. Por azar dele os criados foram acordar o senhor de La Piroche, que não tem medo de vivos nem de defuntos. Ele sozinho o prendeu, amarrou-lhe as mãos e pés e o entregou à sua própria justiça.

 — E a sua própria justiça...

 — Condenou-o a ser enforcado, revestido da armadura em questão.

 — Por que puseram esta cláusula na condenação?

 — Ah! Porque o senhor de La Piroche, além de ser um valoroso capitão, é um homem de bom senso, engenhoso, e quis transformar a execução num exemplo para os demais e em proveito para si próprio. Segundo dizem, aquilo que esteve em contato com um enforcado se transforma em talismã para seu dono, e ele quis o delinqüente dentro da armadura para poder recolhê-la depois, e assim contar com uma proteção a mais durante as próximas guerras.

 — Bem engenhoso, de fato. Mas é bom nos apressarmos, porque não quero perder o espetáculo.

 — Não vale a pena cansar os cavalos, pois vamos prosseguir viagem uma légua depois de La Piroche, e depois ainda voltar a La Poterie.

 — Sim, mas como só voltaremos à noite, nossos cavalos poderão descansar umas cinco ou seis horas.

 Pai e filho prosseguiram caminho conversando, e meia hora depois chegaram a La Piroche. Havia grande afluxo de gente na ampla praça diante do castelo, onde se havia erguido o patíbulo: uma preciosa forca de madeira muito boa, na verdade pouco alta, mas o suficiente para que a morte desenvolvesse o seu trabalho entre o solo e a extremidade da corda.

 O condenado podia contar com um lindo panorama para morrer, pois ficaria com o rosto voltado para o oceano. Seria um consolo, embora me pareça bem insuficiente. O mar estava azul, e de vez em quando deslizava pelo azul do céu uma nuvem branca, como um anjo que dirigisse a Deus uma prece.

 Os dois companheiros se aproximaram do patíbulo o quanto puderam, para não perder nenhum detalhe do que ia acontecer. Tinham a vantagem de estar montados, e podiam ver melhor sem se cansar. Não esperaram muito. Pouco antes das duas horas abriu-se a porta do castelo e apareceu o condenado, precedido da guarda e seguido do carrasco. Vinha com a armadura, montado de costas em um burro sem arreios. As mãos estavam amarradas às costas. A julgar pela postura, tendo em vista que o rosto estava encoberto pelo elmo, devia estar pouco à vontade, e fazendo as mais tristes reflexões.

 Levaram-no até o patíbulo, e começou a desenrolar-se ante o réu uma cena pouco agradável. O verdugo acabava de encostar a sua escada na forca, e o capelão lia o processo do alto de um estrado. O condenado não se movia, e espalhou-se o boato de que ele resolvera morrer antes de ser alçado à forca, para desgosto dos espectadores. Mandaram que ele apeasse do animal e se aproximasse do verdugo, mas ele continuou imóvel. Indecisão que compreendemos facilmente. Então o verdugo o agarrou pelos cotovelos, desceu-o do burro e o pôs de pé no chão. Ao dizer que o pôs de pé, não mentimos, mas mentiríamos se disséssemos que permaneceu assim, pois em dois minutos havia percorrido dois terços do alfabeto, o que na linguagem corrente quer dizer que em vez de permanecer reto como um I, havia chegado ao Z.

 Durante esse tempo o capelão terminara a leitura da sentença.

 — O condenado tem algo a pedir? — perguntou.

 — Sim — respondeu o desgraçado, com voz rouca e triste.

 — O que deseja?

 — Quero meu indulto.

 Não sei se a palavra farsante já havia sido inventada, mas a ocasião para isso era sem dúvida muito boa.

 O senhor de La Piroche deu de ombros e ordenou ao verdugo que pusesse mãos à obra. Este começou a subir decididamente a escada do patíbulo, com toda a força de que dispunha para separar uma alma do corpo. Tratou também de fazer subir na frente o condenado, o que não era tarefa fácil, pois os condenados inventam toda sorte de dificuldades para morrer. Para fazê-lo subir, o executor da justiça teve de recorrer ao meio de que já se valera para fazê-lo descer do animal: agarrou-o pela cintura e o foi empurrando para cima.

 — Bravo! — gritou a multidão.

 Não havia recurso, e ele teve de subir. Então o verdugo passou destramente o nó corrediço da forca em torno do pescoço, deu um empurrão nas costas do condenado e o lançou no espaço. Um imenso clamor acolheu esse desenlace previsto, e um estremecimento correu a multidão.

 Por grande que seja o crime que tenha cometido, um homem que morre na forca está sempre, ao menos durante um instante, acima dos que o vêem morrer. O enforcado balançou durante dois ou três minutos na ponta da corda. Como tinha direito a isso, debateu-se, contorceu-se, e depois ficou imóvel — o caminho inverso do Z ao I. Os espectadores ficaram olhando ainda durante algum tempo, logo se dividiram em grupos e tomaram caminho de casa.

 Os dois camponeses também retomaram o caminho.

 — Ser enforcado por não ter podido roubar uma armadura é um pouco caro, não acha? — perguntou o pai.

— Gostaria de saber o que ele teria feito com a armadura, se tivesse conseguido levá-la.

 — De fato ele foi mais castigado por um crime que não cometeu.

 — Sim, mas teve a intenção de cometê-lo.

 — E basta a intenção para...

 — É perfeitamente justo.

 Chegando ao alto de uma montanha, olharam para trás, a fim de contemplar pela última vez a silhueta do desconhecido. Vinte minutos depois chegaram ao povoado seguinte, de onde deviam voltar à noite.

 Quando amanheceu o dia seguinte, dois soldados saíram do castelo para remover o cadáver do enforcado e recolher a armadura. Mas encontraram uma situação que nem de longe poderiam imaginar: tudo estava no lugar, mas o enforcado e a armadura haviam desaparecido. Julgaram que estavam sonhando, esfregaram os olhos, mas o fato era real. O enforcado e a armadura haviam sumido. E o mais extraordinário é que a corda não estava cortada nem rompida, permanecia como antes do enforcamento.

 Os soldados foram anunciar ao senhor de La Piroche o que viram, mas este não quis acreditar, e decidiu confirmar com seus próprios olhos. Sendo tão poderoso, pensava que um mísero enforcado não ousaria desobedecer-lhe, e o encontraria onde o mandara ficar. Mas não viu nada além do que os outros haviam visto. Que teria acontecido? Não havia dúvida de que na véspera o sentenciado ficara bem morto ante os olhos de todos. Teria um outro ladrão aproveitado as trevas noturnas para roubar a armadura? Mas se fosse assim, teria deixado o cadáver, que de nada lhe adiantaria. Será que os amigos e parentes do morto quiseram dar-lhe uma sepultura cristã? A hipótese não era absurda, mas o delinqüente não tinha amigos nem familiares. Mesmo se os tivesse, eles teriam se limitado a carregar o cadáver, deixando a armadura. O que pensar do ocorrido?

 Desolado pela perda da armadura, o senhor de La Piroche mandou publicar a promessa de uma recompensa de dez moedas de ouro, para quem entregasse o culpado, desde que com a roupa usada na execução. Ninguém se apresentou. Foram revistadas todas as casas, mas nada se encontrou. Fizeram então vir de Rennes um sábio, e lhe puseram a pergunta:

 — Como é que um enforcado morto pôde fazer para livrar-se da corda que o mantinha no ar?

 Depois de oito dias de meditação o sábio respondeu:

 — Ele não conseguiu soltar-se.

 Apresentaram-lhe então a seguinte pergunta:

 — Um ladrão que não conseguiu roubar enquanto vivo, e que foi condenado à morte por roubo, pode roubar depois de morto?

 O sábio respondeu que sim. Indagado como poderia ter conseguido essa façanha, respondeu que não sabia. E era o maior sábio da época, naquelas paragens.

 O sábio foi embora, e as pessoas preferiram ficar com a convicção de que o enforcado era um feiticeiro.

 Passou-se um mês de inquéritos, buscas e consultas, enquanto a forca permanecia no mesmo lugar, humilhada, triste e desprezada por sua atitude inominável de abuso de confiança. O senhor de La Piroche já se dispunha a resignar-se com a perda da armadura, quando num certo dia, ao despertar, ouviu um alarido na praça da execução. Logo depois o capelão entrou espavorido nos seus aposentos.

 — Senhor, sabeis o que aconteceu?

 — Não, mas gostaria de saber.

 — O enforcado reapareceu, e está lá na forca.

 — Com a armadura?

 — Sim, com a vossa armadura.

 — E está morto?

 — Completamente. Mas...

 — Mas o quê?

 — Quando foi enforcado ele usava esporas?

 — Não.

 — Pois agora usa. Além disso, agora o elmo não está na cabeça, como no dia da execução. Está enforcado com a cabeça descoberta, e o elmo está cuidadosamente colocado no chão.

 — Vamos ver logo tudo isso, senhor capelão.

 O senhor de La Piroche correu à praça, já cheia de curiosos. De fato lá estava o enforcado com o pescoço no laço da corda, e logo abaixo o corpo revestido da armadura. Era prodigioso.

 — Arrependeu-se e voltou a enforcar-se — dizia um.

 — Sempre esteve aí — dizia outro. — Nós é que não o víamos.

 — Mas por que usa esporas? — perguntou um terceiro.

 — Sem dúvida por que vem de longe, e quis chegar rápido.

 — Se fosse comigo, não importa se longe ou perto, eu não teria voltado de jeito nenhum.

 Entre comentários sérios e outros nem tanto, todos olhavam a cara contorcida do morto. Quanto ao senhor de La Piroche, só pensava em assegurar a posse da sua preciosa armadura. O cadáver foi descido, retirada a armadura, e depois o recolocaram para ser comido pelos corvos. O que sem dúvida nos lembra versos como os que colocávamos na primeira página dos nossos livros escolares:

 Morreu Pierrô enforcado
 Por ter um livro roubado.
 Não corra tão grande risco,
 Devolva este ao Francisco.

 Que teria acontecido, para possibilitar ao ladrão escapar depois de enforcado, e depois voltar a enforcar-se? Várias hipóteses foram levantadas, mas uma delas me parece a mais digna de crédito. Vou relatá-la como me foi contada.

 Quando os dois camponeses, pai e filho, regressavam à noite para casa, resolveram passar perto do castelo, para dar uma última olhada ao enforcado. Ao aproximar-se, ouviram gemidos e uma espécie de oração, que pareciam vir do cadáver. Um tanto apavorados, resolveram pegar a escada do verdugo, e o filho subiu por ela até a altura da cabeça do enforcado.

 — É você que está se queixando?

 — Sim.

 — Portanto você ainda está vivo?

 — Acho que sim.

 — E está arrependido do que fez?

 — Sim.

 — Então vou retirá-lo daí. Como o Evangelho manda socorrer os que sofrem, e você está sofrendo, vou socorrê-lo para que empregue a vida em fazer o bem. Deus prefere uma alma arrependida a um corpo castigado.

 O pai e o filho desataram a corda, e só então entenderam por que estava ainda vivo. Em vez de apertar o pescoço do ladrão, a corda apertava o pino de encaixe do elmo. Por isso ele ficara suspenso, mas não enforcado. A cabeça havia encontrado uma espécie de ponto de apoio dentro do elmo, permitindo-lhe respirar e viver até o momento em que os dois camponeses regressaram.

 Recolheram o enforcado com a armadura e voltaram para La Poterie, onde o ladrão ficou aos cuidados das mulheres da casa, mãe e filha.

 Mas não é coisa freqüente um ladrão mudar de condição. Na casa só havia duas coisas roubáveis: o cavalo e a moça, donzela de dezesseis anos. O ex-enforcado resolveu levar ambos, pois precisava de um cavalo e se enamorara da moça. Uma noite ele arreou o cavalo, vestiu a armadura, calçou esporas para fazer o cavalo andar mais depressa, e foi buscar a moça, com intenção de levá-la na garupa. A jovem despertou e começou a gritar. Pai e filho acudiram logo e o ladrão tentou escapar, mas era tarde. Os dois o pegaram e decidiram fazer justiça por sua própria conta, completando o mau trabalho do verdugo. Amarraram o ladrão montado no cavalo e o levaram à praça de La Piroche. Penduraram-no na mesma forca, mas desta vez pelo pescoço do condenado, e não pelo da armadura, que não tinha nenhuma culpa no cartório para ser enforcada, e o elmo foi cuidadosamente depositado no chão.

 Se alguém conhece uma explicação melhor para o mistério, estou pronto a aceitá-la, mas esta me pareceu suficiente.

Fonte:
Alexandre Dumas Fº, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953.

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