segunda-feira, 1 de abril de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 29. Uma Rosa

Ganhei uma rosa e uma experiência. Deu-me aquela, no bonde, um homem velho, rude e chambão. Contraiu a afeição das flores já entrado em anos, depois de desenganado de feminilidades há muitos. E eu tinha o amor das flores na conta de um puro reflexo de sentimentos sexuais, de uma ondulação distante do culto da mulher.

De fato o é; mas também pode ser outra coisa, como me prova este velho puído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando já iam muito longe as derradeiras fagulhas do outro amor.

Quem sabe se ele põe agora neste afeto um afã meio inconsciente de recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja, revelou-me como a natureza, contra toda lógica e toda expectativa, pode achar saídas novas e elegantes para as situações mais abatidas e ruinosas. Há nela uma capacidade virgem e indefinível de com que não costumam contar os analisadores de almas, que pensam desmontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senão jogar com esquemas e conceptos.

Tudo, neste homem, indicaria uma carreira fatal para o embrutecimeno e a prostração. Idade, doenças, decepções, rupturas, arrancamentos, saudades, rancores, desesperança. Devia acabar no desânimo e na tristeza aparvalhada do animal que procura um recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu ainda florir em si, de repente, um novo amor e uma alegria, uma doçura e uma esperança novas. Uma nova forma de ingenuidade fresca e gentil. Uma ressaca de mocidade.

Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido numa energia clara e imprevista de nascente gorgolejante Que todo o cisco do seu passado, em montão, a consumir-se ao sol e à chuva, fecundara a terra e dera-lhe sombra e umidade para que brotasse lá em baixo uma semente ignorada, e que a semente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os destroços apodrecidos para vir oferecer à luz a flâmula verde de uma frondezinha viçosa.

A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem de que é a Vida que vive em nós... A Vida, senhora eterna de todas as germinações.

Fonte:
Domínio Público

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