*Vegete: [Gíria] Homem velho e ridículo.
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Sabia certo filósofo da vaidade de um seu amigo que, sendo septuagenário, procurava, a todo modo, fazer-se passar por moço. Pintava-se e, só para este artifício, tinha uma enorme bateria de frascos. Os cosméticos eram às dúzias e, no toucador, os bastões rolavam às pilhas e eram potes de pomadas, caixas de polvilhos, ferros, escovas, limas e tesouras. Todos os dentes postiços lembravam as imagens funerais com que, sobre os túmulos, se recordam os finados e o busto, que corcovava (curvava), era mantido a prumo pelas lâminas de aço de um colete.
Certa manhã, procurando-o o filósofo, achou-o atarefado em remoçar-se. Afundou na primeira poltrona com um livro e, enquanto o velho reparava os estragos da velhice, fingiu-se interessado na leitura.
Um momento saiu o pachola (vaidoso) e logo o sábio, pé ante pé, foi ao grande relógio, cujos ponteiros marcavam o meio-dia, e parou-o. Reapareceu o velho sarapintado e ajeitado em quarentão, teso e liso, os cabelos e a barba de azeviche (cor muito preta), mas os olhos ... ai! deles, já vasquejavam (tremulavam) no fundo escavado das órbitas.
Saíram para o almoço. À mesa a palestra foi longa: o velho falou de amores, referindo-se a galantes aventuras; o filósofo sorria, gabando-lhe a fortuna.
Subia o calor — não só do sol como dos vinhos e licores, que foram vários e copiosos.
Passaram ao terraço e, tão doce era o ar em tal recreio, tão cômodo era o recosto mole das poltronas, tão capitoso (embriagante) era o perfume do jardim, que ali se ficaram os dois discreteando (discorrendo com discrição) suavemente, com cabeceios de sono que os faziam mesurar de quando em quando.
Lenta vinha vindo a tarde e o velho, que não desonrava os fingimentos, tornou à câmara a refazer, com unguentos o cosméticos, o que o suor comprometera.
Ao entrar, porém, consultando o relógio, pasmou de o ver parado.
— Parado o relógio!
– Parei-o eu. – disse serenamente o filósofo.
– Tu! Com que fim?!
— Desejando tornar mais longo o nosso convívio, não quis que os ponteiros ganissem do meio-dia.
Dobrou-se o velho a rir do que lhe parecia grande necedade (tolice).
— Temos um novo Josué! Julgas, então, que, parando o relógio, deténs a marcha das horas?
— Não rias, porque foi contigo que aprendi tal lição.
— Comigo?
— “Sim. contigo. Infelizmente, porém, estou convencido do meu erro e peça a Deus que o mesmo lhe aconteça. Parando o relógio ao meio-dia nem por isso consegui evitar que as sombras da noite viessem sobre nós. Elas aí estão, e pesadas, apesar do estratagema. Mira-te agora ao espelho, tu. Não fazes em ti o mesmo que fiz ao relógio ?
“Olhando os ponteiros dá-se logo pela inércia da máquina, porque ninguém se engana com o tempo. Assim, quem te vir, ainda que te besuntes com todos os óleos da terra e tinjas os cabelos com todos os preparados químicos, não se iludirá com a fraude. Queres fixar a mocidade como eu quis reter o tempo, parando o relógio, que lá está imóvel no zênite sem que, por isso, refuta ao negror da noite que já o vai cercando.
“O Tempo é como o sol, meu amigo: ninguém o esconde, não há rebuços que o encubram. É meio-dia no relógio e já por aí andam a trissar (cantar) morcegos. Assim tu — fazes-te moço, escondes a verdade e ela ressalta flagrante em todo o teu corpo. Vamos lá, meu amigo, não nos queiramos iludir opondo tropeços ao que não para. Podes enterrar um raio de sol? Foi este um sonho que Averróis (filósofo espanhol 1126 – 1198) tentou inutilmente. Deixa-te de artifícios — lava-te e aparece como és — enquanto eu vou acertar o relógio, pondo-lhe os ponteiros sobre as horas que são.”
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Sabia certo filósofo da vaidade de um seu amigo que, sendo septuagenário, procurava, a todo modo, fazer-se passar por moço. Pintava-se e, só para este artifício, tinha uma enorme bateria de frascos. Os cosméticos eram às dúzias e, no toucador, os bastões rolavam às pilhas e eram potes de pomadas, caixas de polvilhos, ferros, escovas, limas e tesouras. Todos os dentes postiços lembravam as imagens funerais com que, sobre os túmulos, se recordam os finados e o busto, que corcovava (curvava), era mantido a prumo pelas lâminas de aço de um colete.
Certa manhã, procurando-o o filósofo, achou-o atarefado em remoçar-se. Afundou na primeira poltrona com um livro e, enquanto o velho reparava os estragos da velhice, fingiu-se interessado na leitura.
Um momento saiu o pachola (vaidoso) e logo o sábio, pé ante pé, foi ao grande relógio, cujos ponteiros marcavam o meio-dia, e parou-o. Reapareceu o velho sarapintado e ajeitado em quarentão, teso e liso, os cabelos e a barba de azeviche (cor muito preta), mas os olhos ... ai! deles, já vasquejavam (tremulavam) no fundo escavado das órbitas.
Saíram para o almoço. À mesa a palestra foi longa: o velho falou de amores, referindo-se a galantes aventuras; o filósofo sorria, gabando-lhe a fortuna.
Subia o calor — não só do sol como dos vinhos e licores, que foram vários e copiosos.
Passaram ao terraço e, tão doce era o ar em tal recreio, tão cômodo era o recosto mole das poltronas, tão capitoso (embriagante) era o perfume do jardim, que ali se ficaram os dois discreteando (discorrendo com discrição) suavemente, com cabeceios de sono que os faziam mesurar de quando em quando.
Lenta vinha vindo a tarde e o velho, que não desonrava os fingimentos, tornou à câmara a refazer, com unguentos o cosméticos, o que o suor comprometera.
Ao entrar, porém, consultando o relógio, pasmou de o ver parado.
— Parado o relógio!
– Parei-o eu. – disse serenamente o filósofo.
– Tu! Com que fim?!
— Desejando tornar mais longo o nosso convívio, não quis que os ponteiros ganissem do meio-dia.
Dobrou-se o velho a rir do que lhe parecia grande necedade (tolice).
— Temos um novo Josué! Julgas, então, que, parando o relógio, deténs a marcha das horas?
— Não rias, porque foi contigo que aprendi tal lição.
— Comigo?
— “Sim. contigo. Infelizmente, porém, estou convencido do meu erro e peça a Deus que o mesmo lhe aconteça. Parando o relógio ao meio-dia nem por isso consegui evitar que as sombras da noite viessem sobre nós. Elas aí estão, e pesadas, apesar do estratagema. Mira-te agora ao espelho, tu. Não fazes em ti o mesmo que fiz ao relógio ?
“Olhando os ponteiros dá-se logo pela inércia da máquina, porque ninguém se engana com o tempo. Assim, quem te vir, ainda que te besuntes com todos os óleos da terra e tinjas os cabelos com todos os preparados químicos, não se iludirá com a fraude. Queres fixar a mocidade como eu quis reter o tempo, parando o relógio, que lá está imóvel no zênite sem que, por isso, refuta ao negror da noite que já o vai cercando.
“O Tempo é como o sol, meu amigo: ninguém o esconde, não há rebuços que o encubram. É meio-dia no relógio e já por aí andam a trissar (cantar) morcegos. Assim tu — fazes-te moço, escondes a verdade e ela ressalta flagrante em todo o teu corpo. Vamos lá, meu amigo, não nos queiramos iludir opondo tropeços ao que não para. Podes enterrar um raio de sol? Foi este um sonho que Averróis (filósofo espanhol 1126 – 1198) tentou inutilmente. Deixa-te de artifícios — lava-te e aparece como és — enquanto eu vou acertar o relógio, pondo-lhe os ponteiros sobre as horas que são.”
Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman
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