quarta-feira, 14 de junho de 2023

Monsenhor Orivaldo Robles (Perigo Doce)

Tio Vitoriano era dono de um carro de praça. Estávamos em 1951. Nenhum de nós tinha ainda ouvido a palavra táxi. Pelas tantas, os parentes começaram a mostrar incomum preocupação com o patriarca, o vô Rogelio, que o pai chamava de “meu sogro”. Não Rogério, mas Rogelio, como se fala em espanhol. Por influência das muitas famílias italianas do lugar, nos acostumamos a dizer “nona” e “nono”, em vez de vó e vô. Que eu tivesse sabido, ele nunca saíra daquele sítio. Nem cuidara da saúde. Aos 77 anos, obeso, como se descobriu que era diabético jamais entendi. De que meios dispunham para o diagnóstico? Que laboratório tinha feito os exames? Vai lá saber. Mas o nono tinha diabetes e a coisa era antiga. Os sintomas não assustavam pela simples razão de que a família ignorava os riscos. Daí que ele ia levando a vida possível a um diabético desinformado.

Para se locomover – dentro de casa apenas – apoiava-se a uma bengala. Vinha enxergando cada vez menos. Idade, gordura, óculos de fundo de garrafa, nada impressionava. Ao contrário. Conforme a ocasião, até divertia. Uma vez, cheguei a casa enquanto ele dormia. Fui brincar com meu primo Ciro. Não o saudei nem na hora do almoço. À mesa, ouvindo meu nome, forçou os olhos sobre o meu vulto: “Ah, é o Orivaldo? Pensei que fosse um gato”. Todos rimos; ele, inclusive. Para ver quanta ignorância sobre uma vida que caminhava para o fim.

Não passou muito tempo, piorou de vez. Veio o médico. Recomendou sua remoção para Rio Preto, único centro capaz de tratá-lo. Tio Vito morava em Fernandópolis; tio Menegildo, em Jales. Ligação telefônica demorava um dia inteiro naquele tempo. Foram avisados. Havia urgência em reunir os filhos. Como numa vigília, à espera do pior. Tio Vito chegou no seu carro de praça. Um bem conservado Ford, suponho, ou de outra marca, quem lembra? As portas abriam o necessário a passageiros de compleição comum. Não sei se verdadeira ou falsa, a nós foi passada a versão de que o nono, por ser excessivamente gordo, não passou na abertura das portas do automóvel. Impossível embarcá-lo. Nem teria adiantado. A situação era muito grave. Morreu ali mesmo, em casa. Naquela noite ou na seguinte, não recordo.

Trinta anos mais tarde, internei a mãe em hospital de Maringá. Exames vistos, o médico me encarou, assustado: “Quer matar sua mãe? Ela chegou perto de um coma diabético”. Sorte que o seu anjo da guarda era o plantonista do dia. Aí é que fui saber que o diabetes é grave e pode-se herdá-lo. Passamos a cuidar. Acho que bem, porque ela chegou aos 94 anos. Morreu lúcida, junto dos filhos, dos quais um também é portador. Mas o mantemos vigiado por endócrino excelente e amigo.

Ainda sinto dificuldade de superar a doce, mas perversa, atração do açúcar. Por que é tão custoso trocar hábitos nascidos no colo materno? Quem, no passado, ensinou nossas pobres mães a adoçar todo sólido ou líquido que nos levavam à boca? Vida afora, acabamos ingerindo tanta porcaria gostosa, não pelo valor nutritivo, mas pelo sabor agradável. Na minha lembrança, e na de muita gente, continua presente a figura do saco de açúcar, lá na despensa, protegido das formigas, mas franqueado às nossas incursões. Quantas vezes nos tornamos coadjuvantes da mãe na confecção daqueles doces chavascados (
toscos), mais primorosos para nós do que os produzidos nas docerias da rainha da Inglaterra! Delícias, sim, mas perigosas.

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