sábado, 10 de junho de 2023

Hans Christian Andersen (O Tesouro de ouro)

A mulher do tambor entrou na igreja. Viu o novo altar, com as imagens pintada e os anjos esculpidos em madeira. Os anjos representados na tela, de cores variadas e cercados de glória, eram tão belos como os esculpidos na madeira, e coloridos e dourados. O cabelo resplandecia de ouro, cheio de luz. Era um encantamento! Mas a luz do sol de Deus era ainda mais bela, quando penetrava mais, mais clara e mais vermelha, através das árvores sombrias, quando o sol se punha. É uma coisa grandiosa, olhar para o rosto de Deus? A mulher fitou o sol vermelho, e pôs-se a meditar profundamente: pensava na criancinha que a cegonha ia trazer. Alegrou-se a essa ideia, e continuou a contemplar o sol, desejando que a criança tivesse aquele esplendor, e se parecesse ao menos com algum dos anjos brilhantes do altar.

Quando ela segurou nos braços a criancinha e a ergueu para o pai, dir-se-ia que o menino era um dos anjos da igreja. Os cabelos pareciam de ouro, e luzia neles o esplendor do sol poente.

- Meu tesouro de ouro, minha riqueza, minha luz do sol! - disse a mãe, beijando os caracóis resplandecentes.

E ouviu-se no quarto um som de música e de canto, um som que simbolizava alegria, vida e movimento.O tambor rufava, o tambor de incêndio:

- Cabelos ruivos! O menino tem cabelos ruivos! Acredita na pele do tambor, e não no que diz a mãe! Ca-be-los-rui-vos!...Tu-ru-tu-tu! Tu-ru-tu-tu!

E a cidade repetiu o que o tambor de incêndio contava.
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O menino foi batizado na igreja. Deram-lhe um nome simples: chamava-se Pedro. A cidade inteira, também o tambor de incêndio assim o chamaram: Pedro, filho do tambor, o menino dos cabelos ruivos. Mas a mãe beijou-lhe a cabeleira ruiva, chamando-lhe:

- Meu tesouro de ouro.

Muita gente gravava o nome na rampa argilosa do desfiladeiro, para deixar nele uma lembrança. E o tambor disso consigo:

- A celebridade vale alguma coisa!

E lá gravou também o seu nome, e o do filhinho.

Vieram as andorinhas, que nas suas viagens tinham visto inscrições mais duradouras nas rochas e nas paredes do templo indiano: grandes feitos de reis poderosos, nomes imortais, tão antigos que hoje já ninguém pode decifrá-los, nem citá-los.

As andorinhas fizeram ninho no desfiladeiro, abrindo covas na encosta íngreme. As chuvas e a poeira, foram gastando e apagando os nomes, e assim se sumiram também os do tambor e de seu filhinho.

- Creio que o nome de Pedro ficará ali, talvez ano e meio. - dissera o pai.

Mas o tambor de incêndio pensou lá consigo:

- Tolo!

Contudo, limitou-se a dizer em voz alta apenas:

- Ra-ta-plan! ...Pa-ta-ra-tam, pa-ta-ra-tam!

Era um menino cheio de vida e de animação o filho do tambor, o menino dos cabelos ruivos. Tinha uma voz agradável, e sabia cantar; e cantava, como um passarinho na mata. Cantava, e no seu canto havia expressão.

- Pedro deve ser menino do coro, - disse a mãe - e cantar na igreja, perto dos lindos anjos dourados que se parecem com ele.

Mas as mulheres da vizinhança contaram que os trocistas da cidade o chamavam:

- Foguinho! Foguinho!

E os moleques da rua gritaram-lhe um dia:

- Não voltes para casa, Pedro! Se dormires na água-furtada, pegarás fogo no telhado, e o tambor de incêndio terá de rufar!

- Tratem vocês de se livrar das baquetas! - disse o menino.

E, mesmo assim pequeno como era, avançou valentemente, e deu um soco no ventre do que lhe ficava mais próximo.

O moleque sentiu vergaram-lhe as pernas, mas os outros aproveitaram bem as suas para correr em disparada.

O músico da cidade era um homem fino e distinto: era filho do limpador da prataria do rei. Gostava muito de Pedro, e levava-o às vezes à sua casa, e, pondo-lhe um violino nas mãos, ensinava-lhe a maneira de tocar. Parecia que o menino tinha alguma coisa nos dedos! É que ele não queria chegar apenas a simples tambor: aspirava ser um dia músico da cidade.

- Quero ser soldado! - disse ele certa vez, quando era ainda muito pequeno.

  Parecia-lhe a coisa mais linda do mundo carregar um fuzil e andar de farda e espada:

- Um, dois! Um, dois!

Mas o tambor de incêndio retrucou:

- Aprender antes a bater na pele do tambor: Dem-dem, de-ren-dem-dem! Vem! Vem!

- Ah! Se ele pudesse chegar a general, isso sim! - disse o pai. - Mas seria preciso que houvesse uma guerra.

- Deus nos livre! -  exclamou a mãe.

- Ora... nós não temos nada que perder.

- Sim! Temos o nosso menino!

- Mas se for para ele voltar general...

- Sem braços e sem pernas? - protestou ela - Não, senhor! Prefiro guardar o meu tesouro de ouro são e salvo!

- Trom! Trom! Trom! - rufou o tambor de incêndio, com todos os outros tambores.

Rebentara a guerra. Partiram os soldados, e com eles o filho do tambor. E a mãe chorava:

- Meu filho ruivo! Meu tesouro de ouro!

Mas o pai, em imaginação, via-o coberto de fama.  E o músico da cidade pensava que era uma lástima a sua ida para a guerra: devia ficar, e continuar a estudar música.
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 - Foguinho! - diziam os soldados.
 
E Pedro achava graça.

Mas lá um ou outro dizia também:

- Pelo de raposa!

A isso o rapaz cerrava os dentes, e desviava os olhos: olhava para o vasto mundo, e desprezava o motejo.

Era um rapaz destro, de gênio alegre e sempre de bom humor - e é isto o melhor cantil, segundo dizem os soldados velhos.

Passou muitas noites deitado ao ar livre, no pó ou exposto à chuva, molhado até os ossos; contudo não perdia o bom humor, e as baquetas batiam:

- Tá-rá-tá-tá, tá-rá-tá-tá! Levantar ! Levantar!

Sim! Não havia dúvida: ele nascera para tambor!

Chegou o dia da batalha. O sol ainda não aparecera, mas despontara já a madrugada. O ar estava frio, mas a luta ardente! Aquilo não era cerração, não: era a fumaça da pólvora. Balas e granadas voavam, por cima das cabeças - e também para dentro da cabeças, e dos ventres e dos membros. Mas o avanço continuava. Um após outro iam caindo de joelhos, com a fronte ensanguentada e as faces brancas como a cal.  Mas o pequeno tambor tinha ainda a tez corada e saudável. Com alegre fisionomia olhava para o cão do regimento, que ia pulando, tão contente como se estivesse ali para distrair todo o mundo, e as balas que caíam à sua frente lhe servissem de brinquedo.

- Marcha! Avante! Marcha!

Eram essas as palavras de comando para o tambor. Não havia a palavra "recuar!"

Mas talvez chegasse a haver uma retirada, e quem sabe se não seria uma coisa sensata?

Pois veio a ordem: " Recuar!"

Mas o pequeno tambor bateu:

"Avante! Marcha!"

Assim compreendera ele a ordem. Obedeceram os soldados à pele do tambor. Foi um bom rufo, aquele, que deu a vitória aos que já estavam a ponto de ceder.

Perderam-se na batalha corpos e membros. Granadas arrancaram pedaços de carne sanguinolenta. Outras foram acender labaredas na medas de palha, para onde tinham arrastado os feridos, que ali ficariam abandonado durante horas - quem sabe se por toda a vida!
                                                        
De nada serve pensar nessas coisas, mas é impossível deixar de pensar nelas; mesmo longe da luta, na cidade tranquila, há quem nelas pense. Assim era com o tambor e sua mulher, porque Pedro estava na guerra.

- Também já estou farto de lamentos! - disse o tambor de incêndio.

Outro dia de batalha começou. O sol ainda não nascera, mas já chegara a madrugada. O tambor e sua mulher dormiam. Tinham falado no filho, como todas as noites: o filho, que estava lá longe, na mão de Deus. E o pai sonhou que a guerra estava acabada, e os soldados de volta, e entre eles vinha Pedro, com uma cruz de prata no peito. Mas a mãe sonhou que entrava na igreja, e via os anjos esculpidos e os pintados nos quadros, de cabelos cor de ouro; e  seu querido filhinho, o tesouro de ouro do seu coração, lá estava também no meio dos anjos vestidos de branco, cantando tão magnificamente como só os anjos sabem cantar. E, à luz do sol, ele acenou carinhosamente para a mãe.

  - Meu tesouro de ouro! - gritou ela - Agora Deus o levou!

Unindo as mãos, deitou a cabeça no travesseiro e rebentou em pranto.

- Onde jaz ele agora, entre tantos outros, na vala comum que abriram para os mortos? Ou talvez no fundo do banhado? Ninguém sabe onde é o seu túmulo: ninguém rezou uma oração junto dele!

E, silenciosamente, passou-lhe o padre-nosso pelos lábios. Ela curvou a cabeça, profundamente fatigada: e adormeceu assim.

Passaram-se dias, tanto na vida como nos sonhos.

Era noite. Sobre o campo de batalha erguia-se um arco-íris, que tocava a mata e o pântano profundo.

Diz a lenda - e o povo conserva a crença - que no ponto em que o arco-íris toca a terra, há um tesouro enterrado. E ali jazia mesmo um tesouro. Ninguém, a não ser sua mãe, pensava no pequeno tambor, e foi por isso que ela sonhou com ele.

Passaram-se dias, tanto na vida como nos sonhos.

Não lhe haviam tocado nem na ponta de um cabelo, de um daqueles cabelos dourados.

- Drum, drum, drem! Drum, drum, drem! Ele aí vem! Ele aí vem!

Assim teriam dito, assim teriam cantado o tambor de incêndio e a mãe, se o tivessem visto, ou se tivessem sonhado com ele!

Com vivas e cantos, adornados das cores verdes da vitória, regressavam os soldados. Terminara a guerra, assinara-se a paz. O cão do regimento vinha pulando na frente, fazendo círculo enormes, para tornar o caminho três vezes mais comprido.

Passaram-se dias, e semanas. Pedro entrou em casa dos pais. Vinha trigueiro, como um selvagem; o rosto resplandecia como a luz do sol, e os olhos claros olhavam em redor. A mãe estreitou-o nos braços, beijou-lhe a boca, os olhos, o cabelo ruivo. Tinha de novo o seu menino, que não ostentava no peito a cruz de prata com que sonhara o pai, mas conservava intactos os membros - o que a mãe não vira nos sonhos.

Era grande a alegria. Riam e choravam ao mesmo tempo. E Pedro abraçou o velho tambor de incêndio, dizendo-lhe:

- Pois ainda estás aqui, esqueleto velho?

Mas o pai fez o tambor rufar:

- Parece até um incêndio! Dia claro! Alegria nos corações! Ra-ta-plã, plã, plã!
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E então?

Então...Ora! Pergunta-o ao músico da cidade!

- Pedro vai muito acima de tambor! - dissera ele. - Pedro irá muito mais alto do que eu.

Ele era filho do homem que areava a prataria do rei! Mas tudo quanto ele gastara a metade da vida em aprender, aprendera-o Pedro em meio ano. Havia nele uma alegria, uma bondade íntima; luziam-lhe os olhos, tanto como o cabelo - não era possível negar.

   - Ele que mande tingir o cabelo. - disse a vizinha. - A filha do chefe de polícia fez isso e teve muita sorte: encontrou logo um noivo.

- Mas o cabelo ficou logo, logo, verde como lentilha-d'água, e tem de ser retingido de vez em quando.

- Ora, ela sabe dar um jeito. - replicou a vizinha.-Pedro também poderia arranjá-lo. Ele entra nas  casas mais importantes, até na burgomestre; e dá lições de piano à senhorita Lotte.

Como ele sabia tocar! Ah! Sim! Tocava do fundo do coração, e as peças mais lindas, que ainda não existiam escritas em papel pautado! Tocava nas noites claras - e também nas escuras. E a vizinha, e também o tambor de incêndio diziam:

- Que coisa insuportável!

Tocava de tal maneira, que as ideias se elevavam, e brotavam grandes planos de futuro: A celebridade!

Lotte, a filha do burgomestre, estava sentada diante do piano. Seus dedos finos dançavam sobre o teclado, de tal modo que o som ia ecoar no coração de Pedro. Aquilo parecia superior  às suas forças, e contudo, era sempre assim - sempre que ela tocava. Um dia ele segurou os dedos finos e a mão bem feita, e beijou-os, fitando os grandes olhos castanhos da moça. Só Deus sabe o que lhe disse, mas nós temos plena liberdade de adivinhá-lo. Lotte corou, corou, até a raiz dos cabelos mas nada disse. Nesse instante entrou gente estranha na sala; era o filho do conselheiro de Estado, um moço de testa branca, e alta, que se estendia tanto para trás, que ia quase até a nuca. Pedro ficou muito tempo ao pé de Lotte, que o olhava com olhares suaves.
                                                  
À noite, em casa, ele falou do vasto mundo, e do tesouro de ouro que estava escondido para ele, no seu violino.

A celebridade!

- Ra-ta-plã! Par-la-pa-tão, par-la-pa-tão!-  disse o tambor de incêndio. - Os negócios de Pedro não vão bem! Acho que há fogo na casa...

No dia seguinte a mãe foi ao mercado. Na volta, perguntou ao filho:

- Já sabes da novidade, Pedro? É uma novidade esplêndida! Pois a Lotte do burgomestre contratou casamento com o filho do conselheiro de Estado. Foi ontem à noite!

- Não! - brandou Pedro, levantando-se de um salto.

Mas a mãe disse:

- Sim! Foi! Soube-o da mulher do barbeiro: e ele mesmo ouviu a notícia da boca do próprio burgomestre.

Pedro, pálido como um cadáver, tornou a sentar-se.

- Que tens, meu filho? Que tens? Meu Deus!

- Nada, nada... Deixa-me em paz! - disse ele, com as lágrimas a lhe correrem pelas faces.

- Meu filho querido, meu tesouro de ouro! - dizia a mãe, chorando também.

Mas o tambor de incêndio cantou, embora só lá no seu íntimo:

- Lotte morreu, Lotte morreu! Acabou-se a canção!
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Mas a canção não se acabara, não! Pelo contrário, teve ainda muitos versos - os mais belos, o tesouro de ouro da vida.

- Ela está que parece doida, dizia a vizinha. - Todo o mundo tem de ler as cartas que recebe do seu tesouro de ouro, e ainda ouvir o que dizem os jornais a respeito dele e do seu violino. Ele lhe manda dinheiro, e a mãe bem precisa disso, desde que enviuvou!

- Pedro toca diante de imperadores e reis, dizia o músico da cidade. - A mim é que não tocou tal sorte! Mas ele é meu discípulo, e não esquece o velho professor.

E a mãe dizia:

- Deus sabe que seu pai sonhou que ele voltaria da guerra com a cruz de prata no peito... Não foi na guerra que a ganhou, mas de outra maneira muito mais difícil de obter! Agora tem a cruz de cavalheiro. Que pena que o pai não esteja aqui para vê-lo!

- Célebre! - disse o tambor de incêndio.

E a cidade natal repetiu-o:

- O filho do tambor, Pedro, o ruivo, que todos vimos- menino de tamancos, depois tambor, e depois, músico tocando nos bailes - Pedro é célebre!

- Ele tocou na nossa casa, antes de tocar para reis - disse a mulher do burgomestre. - Naquele tempo  andava louco pela Lotte... Sempre teve ambições elevadas. Era presunçoso, naquele tempo, e imaginava tanta coisa... Meu marido riu-se, ao ouvir aquelas tolices, Hoje, Lotte é conselheira de estado!

Sim: um tesouro de ouro fora depositado no coração, na alma da criança pobre que, quando era tamborzinho, rufou: " Avante! Marcha!" - dando o toque de vitória àqueles que estavam a pique de ceder. Havia um tesouro de ouro em seu peito; o vigor dos sons. Seu violino bramava, como se houvesse nele todo um órgão, como se sobre as suas cordas dançassem todos os duendes das noites de verão. Ouvia-se nele o canto do tordo, e a voz humana, clara e cheia. E passou pelos corações um encantamento; e o eco levou para longe, para os países estrangeiros, o nome de Pedro. Foi uma grande fogueira - a fogueira do entusiasmo.

- Além de tudo, ele está tão bem parecido! - diziam as moças, de todas as idades.

A mais velha até comprou um álbum para anéis de cabelo de celebridades, só para pedir um da rica, da esplêndida cabeleira daquele tesouro, daquele tesouro de ouro.

O filho entrou na casa humilde do tambor - distinto como um príncipe, mais feliz que um rei. Tinha os olhos claros, o rosto radiante como o sol. Estreitou a mãe nos braços. Ela beijou-lhe a boca ardente, chorando de alegria, como a gente só pode chorar quando é feliz... Ele acenou para todos os velhos móveis da sala - para o armário que guardava as xícaras de chá, para o vaso de flores, para o catre em que dormira quando era menino. Mas foi buscar o velho  tambor de incêndio, colocou-o no meio da sala, e disse, ao tambor e á mãe:

- Num momento destes, meu pai teria rufado o tambor. Vou eu fazê-lo agora.

E rufou o tambor. Foi um verdadeiro trovão dentro do tambor, que, de tão honrado que se sentiu, rasgou a própria pele. e dizia:

- Que magnífico pulso tem ele! Agora fico com uma lembrança dele para ao resto da vida! E espero que sua mãe também estoure de alegria, da alegria que lhe dá o seu tesouro de ouro!

E é esta a história de ouro.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 1867.

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