O merceeiro Agostinho Pereira Alvares, proprietário de um dos estabelecimentos mais afreguesados do Engenho Novo, não havia saído, jamais, do seu bairro, para fazer a barba e cortar o cabelo. Sempre que, de dois em dois meses, lhe vinha a ideia de praticar essas medidas higiênicas, mandava ele chamar o barbeiro à sua casa de comércio, submetendo-se à tesoura e à navalha do fígaro em um compartimento nos fundos da mercearia.
Um destes dias, porém, com a noticia de que toda a cidade entrava em melhoramentos para receber o soberano dos belgas, resolveu o futuro capitalista vir, também, à zona urbana, para uns reparos estéticos na sua própria pessoa. Tornava-se preciso que o rei o encontrasse de cabelo cortado e barba feita, e era evidente que esse trabalho só podia ser efetuado por um verdadeiro mestre da arte, como deviam ser, naturalmente, os do centro da cidade.
Tomada essa deliberação, meteu-se o acreditado comerciante, sábado último, em um bonde, e saltou na rua Floriano Peixoto, enfiando-se, pressuroso, pela primeira barbearia que encontrou aberta.
- Cabelo e barba! - pediu, arrogante, libertando-se, com um soco, do formidável colarinho que o asfixiava.
Enfiada, que foi, a toalha pelo pescoço do freguês, começou o barbeiro, um mulato de nariz de batata e cabeleira revolta, a tosquiar a vítima. Terminado o serviço, que não primava, aliás, pelo asseio, o fígaro convidou-o, gentil:
- O "comendador" não quer "fazer" as unhas? Nós temos, aí, para os fregueses, uma boa manicure...
Nesse momento apareceu à porta dos fundos, escandalosamente decotada, e rescendente de si mesmo, uma cafuza de dentes alvíssimos, que cumprimentou, sorrindo, o Agostinho. O merceeiro correspondeu ao cumprimento, olhou as unhas formidáveis, que ele costumava aparar com a faca de cortar sabão, e aquiesceu, condescendente:
- Vamos lá ver isso! Vamos lá!
Uma hora depois, com os dedos ardendo, e com as unhas cortadas até o sabugo, saía o honrado negociante à porta da barbearia. regressando, de pronto, ao Engenho Novo.
No dia seguinte, à tarde, foi, porém, a rua Floriano Peixoto alarmada por um vozerio infernal. Avisado do caso, o guarda civil correu para o local, e viu: no salão da barbearia, andando de um lado para outro, como um possesso, o Agostinho, do Engenho Novo, trovejava, indignado:
- Patifes!... Canalhas!... Ladrões!... Estavam os dois combinados para essa traição, os miseráveis!
Penetrando na casa, o guarda interveio:
- Que é isso, camarada? Que foi que aconteceu?
E o merceeiro, apoplético:
- Foi este homem; este barbeiro, que, de combinação com aquela mulher, me fez uma patifaria, uma canalhice, uma perversidade. Eu vim aqui para cortar o cabelo, e ele me pôs na cabeça uns piolhos; e para que eu não os pudesse tirar, chamou a mulher, e mandou-me cortar as unhas. Veja isto!
E com as grandes mãos estendidas, mostrando os dedos enormes, de sabugo à mostra:
- Canalhas!... Patifes!... Miseráveis!...
Um destes dias, porém, com a noticia de que toda a cidade entrava em melhoramentos para receber o soberano dos belgas, resolveu o futuro capitalista vir, também, à zona urbana, para uns reparos estéticos na sua própria pessoa. Tornava-se preciso que o rei o encontrasse de cabelo cortado e barba feita, e era evidente que esse trabalho só podia ser efetuado por um verdadeiro mestre da arte, como deviam ser, naturalmente, os do centro da cidade.
Tomada essa deliberação, meteu-se o acreditado comerciante, sábado último, em um bonde, e saltou na rua Floriano Peixoto, enfiando-se, pressuroso, pela primeira barbearia que encontrou aberta.
- Cabelo e barba! - pediu, arrogante, libertando-se, com um soco, do formidável colarinho que o asfixiava.
Enfiada, que foi, a toalha pelo pescoço do freguês, começou o barbeiro, um mulato de nariz de batata e cabeleira revolta, a tosquiar a vítima. Terminado o serviço, que não primava, aliás, pelo asseio, o fígaro convidou-o, gentil:
- O "comendador" não quer "fazer" as unhas? Nós temos, aí, para os fregueses, uma boa manicure...
Nesse momento apareceu à porta dos fundos, escandalosamente decotada, e rescendente de si mesmo, uma cafuza de dentes alvíssimos, que cumprimentou, sorrindo, o Agostinho. O merceeiro correspondeu ao cumprimento, olhou as unhas formidáveis, que ele costumava aparar com a faca de cortar sabão, e aquiesceu, condescendente:
- Vamos lá ver isso! Vamos lá!
Uma hora depois, com os dedos ardendo, e com as unhas cortadas até o sabugo, saía o honrado negociante à porta da barbearia. regressando, de pronto, ao Engenho Novo.
No dia seguinte, à tarde, foi, porém, a rua Floriano Peixoto alarmada por um vozerio infernal. Avisado do caso, o guarda civil correu para o local, e viu: no salão da barbearia, andando de um lado para outro, como um possesso, o Agostinho, do Engenho Novo, trovejava, indignado:
- Patifes!... Canalhas!... Ladrões!... Estavam os dois combinados para essa traição, os miseráveis!
Penetrando na casa, o guarda interveio:
- Que é isso, camarada? Que foi que aconteceu?
E o merceeiro, apoplético:
- Foi este homem; este barbeiro, que, de combinação com aquela mulher, me fez uma patifaria, uma canalhice, uma perversidade. Eu vim aqui para cortar o cabelo, e ele me pôs na cabeça uns piolhos; e para que eu não os pudesse tirar, chamou a mulher, e mandou-me cortar as unhas. Veja isto!
E com as grandes mãos estendidas, mostrando os dedos enormes, de sabugo à mostra:
- Canalhas!... Patifes!... Miseráveis!...
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público
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