sábado, 24 de junho de 2023

Hans Christian Andersen (0 moinho de vento)

Sobre a colina erguia-se um moinho de vento, de aspecto soberbo. E era mesmo soberbo!

“- Não sou, absolutamente não sou orgulhoso! - dizia ele - Mas sou iluminado, tanto por dentro como por fora. Tenho o sol e a lua para o uso externo e também para o interno; além disso, disponho de velas de estearina, de lâmpadas de óleo e de velas de sebo. Posso dizer, pois, que sou esclarecido! Sou uma criatura dotada de raciocínio e tão bem feita que dá gosto ver! Tenho no peito um bom esôfago; possuo lá em cima quatro dedos fixos junto da cabeça, logo abaixo do chapéu - ao passo que as aves tem apenas duas asas, que carregam às costas. Sou holandês de nascimento, como bem mostra o meu tipo: holandês, como o do Navio Fantasma, daqueles classificados entre os fenômenos sobrenaturais, ainda que eu seja perfeitamente natural. Tenho ao redor do estômago uma galeria, e , nas entranhas. peças de moradia: lá se alojam meus pensamentos. O meu pensamento mais forte, aquele que domina e manda ali, é chamado pelos outros " o homem do moinho" . Ele sabe o que quer e eleva-se muito alto, muito acima do farelo e da farinha. Tem porém, uma companheira, que se chama a "mãe", e faz as vezes de coração. E ela não anda sem tino nem destino, não: sabe também o que quer, sabe o pode fazer; é  suave como a aragem e forte como a tempestade; é capaz de fazer uma coisa com brandura, e, ainda assim, realizar o que deseja. Ela é o meu senso brando, enquanto o pai é rígido. São dois, e todavia um único ser; por isso se chamam " minha cara metade." E eles tem gurizinhos, pensamentos novos, que podem também crescer. Os pequenos é que mantém tudo em ordem. Quando, há pouco tempo, em um momento de meditação, mandei que o pai e os rapazes me inspecionassem o esôfago e o vão do peito, para verificar o que acontecera por lá - alguma coisa cá dentro de mim não funcionava bem e a gente deve examinar-se a si própria - os guris fizeram um barulho tremendo, que até nem fica próprio a quem, como eu, mora em cima de um morro. A gente não deve esquecer de que está iluminada: a opinião é uma espécie de iluminação! Mas, como ia dizendo, os guris fizeram um barulho infernal. O caçula entrou-me  até no chapéu, e, de tão contente de se ver lá, chegou a me fazer cócegas. Os pensamentos pequenos podem crescer, como me informaram; e lá por fora, pelo mundo, há também pensamentos, e nem todos proveem da minha estirpe, pois por mais que alongue a vista, não enxergo nenhum do meu tipo - ninguém, a não ser eu. Aquelas habitações sem asas, contudo, nas quais não se ouve o esôfago, também tem pensamentos que vêm aqui ter com os meus, e contratam casamento, como eles lá dizem... É esquisito, sim. Mas ora! Há muita coisa esquisita: umas vêm cair aqui, outras sucedem mesmo em mim. Alguma coisa está mudada, na engrenagem do moinho. Parece que o pai, a cara metade, é que mudou: diria que ele tem agora um novo sentido, mais suave; uma companheira mais carinhosa, mais jovem, mais piedosa. É, todavia, a mesma, mas pelo efeito do tempo, talvez se houvesse tornado mais branda e mais devota. Evaporou-se o que nela havia de amargura e tudo está agora muito mais alegre na casa.

“Vão-se os dias e outros vêm, sempre novos, trazendo claridade e alegria. E um dia virá, assim está dito e escrito, em que tudo se acabará para mim - embora não totalmente. Serei então demolido, mas me levantarei outra vez, novo e melhor; hei de cessar de viver, e, contudo, continuarei a existir. Ficando o mesmo, tornar-me-ei diferente. É difícil para mim compreender isso, por mais iluminado que seja - pelo sol, a lua, estearina, óleo e sebo! Minha velha construção de madeira e alvenaria há de ressurgir dos destroços.

“Espero ficar com os velhos pensamentos, com o pai, a mãe, com grandes e pequenos - com a família, enfim. Pois a esse todo, que é uma  só coisa, ainda que sejam muitas, chamo eu - associação total dos pensamentos. Assim é preciso; não posso fazer  de outra  maneira.
 
“E também eu terei de ficar eu mesmo, com o esôfago no peito, as asas na cabeça e a galeria em torno do corpo. Senão. talvez nem me reconhecesse a mim mesmo. nem os outros tampouco me reconheceriam, nem diriam: - Lá está o moinho do morro: tem um aspecto soberbo e entretanto não é orgulhoso.”

Todas essas coisas foi o moinho quem disse. E disse muito mais, mas isso é o que havia de mais interessante.

Os dias vinham e se iam, e o último chegou, afinal. Foi quando o moinho se consumiu, todo em chamas. As labaredas subiam muito alto, saíam pelo teto, tornavam a entrar, e iam lambendo e engolindo traves e tábuas, acabando por devorar por tudo. O moinho caiu, e dele nada mais restou senão um montão de cinzas. A fumaça afastou-se do lugar do incêndio, arrastada pelo vento.

O que havia de vivo no moinho subsistiu.

A família do moleiro, uma alma, muitos pensamentos, e todavia um só construiu um moinho novo, um moinho grandioso, tão parecido com o outro que o velho até havia de gostar dele. E as pessoas continuavam a dizer:

Lá em cima do morro se ergue o moinho, de soberbo aspecto.

Mas o novo estava mais bem instalado, era mais moderno, o que já se pode chamar de progresso. A madeira velha, carcomida e podre desfizera-se em cinza e pó. O corpo do moinho, contudo, não ressuscitou das cinzas, como ele esperava.

É que o velho moinho tomava todas as coisas muito ao pé da letra, o que é um erro.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 1845.

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