sexta-feira, 23 de junho de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Lâmpada milagrosa)

TANGERINO PAPADO DA SILVA trabalhava numa seção onde mexia com uma serie de arquivos mortos. Por causa deles, passava o dia procurando em meio à maços de papeis embolorados e mofados de pensionistas e aposentados que requeriam benefícios ao INSS. O problema é que muitas dessas criaturas já haviam passado desta para melhor.  Alguém, contudo, em nome dos falecidos “defuntos” pretendia uma revisão disso, ou daquilo. Enfim, havia uma máfia lá fora mamando às custas dos “de cujos”, e, claro, dos parentes que desconhecendo as verdadeiras pretensões dos cabeças dessa gangue, entregavam documentos sem pensarem duas vezes nas consequências de tais atos impensados. A função de Tangerino Papado: desarquivar esses carcomidos processos e encaminha-los ao chefe da seção que, por sua vez, mandava tudo para o pessoal da perícia. Num desses arquivos, Tangerino encontrou, por acaso, uma lâmpada tipo a do Aladim.

Satisfeito com o raro objeto, pensou num jeito de levar a relíquia embora. Talvez, a coisa fosse mágica. Como todo ser humano normal dentro do seu mambembe em se tornar rico e independente, acreditava piamente em sonhos, e por se abonar neles, quem sabe desse, de repente, com a sorte grande. Na hora do almoço saiu mais cedo e disse ao encarregado que iria à aquisição de um par de sapatos novos, tendo em vista que os seus se faziam, desde muito, bastante desgastados. E, realmente, tal fato tinha um fundo de verdade. Comprou um modelito vagabundo na primeira loja que avistou. Jogou o deteriorado no lixo e voltou contente à repartição com a caixa vazia debaixo do braço. Se um indiscreto perguntasse sobre o embrulho, diria que nele se fazia acomodado o pisante antigo. Que o levava de volta para usar nos finais de semana. A ideia: economizar o novo. Seguir surrando o escangalhado.

No fundo, a função da caixa bem outra: meter dentro a lâmpada misteriosa. Assim fez. Orgulhoso da sua vivacidade, se gabou do plano que arquitetara. Ninguém desconfiou de nada. Fim do expediente, saiu da sala, passou pela diretoria, pegou o elevador, e, para não levantar suspeitas, antes de ganhar a avenida em direção onde embarcaria destino Santo André, tomou um cafezinho requentado com o porteiro e fumou um cigarrinho com o vigia. O trajeto até sua residência, demorou uma eternidade enervante. Nunca o trem empacara tanto, da estação da Luz, até Prefeito Saladino (uma estaçãozinha antes de Santo André), onde morava com a mulher, um casal de filhos, uma empregada e uma sogra rabugenta. No aconchego do lar, beijou a esposa na cadeira de rodas e as crianças que brincavam com Ritinha, a empregada. Só então se predispôs a esconder o pacote num lugar seguro. Pensou em um que seria inquestionável. Havia entre o guarda-roupas e a parede, um desvão. Ali Tangerino Papado depositou a caixa.

Para despistar a turba de curiosos, pegou uma cadeira quebrada e a entulhou com umas roupas que jaziam sobre a cama. Essa atitude ajudaria a afastar os abelhudos. Em seguida se livrou dos sapatos e da camisa. Pegou uma toalha limpa no armário, levou uma bronca da sogra chata, que apareceu reclamando das coisas deixadas no meio do caminho, da camisa suada sobre a cama e da peça limpa, que ela havia acabado de recolher do varal, para guardar:

— Por que não usa mais uns dias a que está no banheiro?

Fazendo ouvidos de mercador Tangerino fingiu não ter escutado uma palavra.  Assobiando “Quero que vá tudo para o inferno”, de Roberto Carlos, encostou a porta do banheiro (nunca trancava, tinha essa mania), ligou o chuveiro e mandou a caninana para a casa do Carvalho. Do Carvalho mesmo.

O Carvalho: sujeito bom, pacato e humilde. Da mesma idade da sogra. Vivia paquerando a jararaca. Por azar de Tangerino, a maldita não dava chance para o infeliz levá-la, de vez, para dividir pratos e talheres com ele. O elemento nutria sentimentos nobres com relação à setentona. Todavia, a praga não baixava a guarda. O fato é que seu Carvalho se fazia duro de bolso, e Tangerino Papado mole, debaixo do chuveiro, quando via água quente jorrando sobre a cabeça. Nessas ocasiões, esquecia da vida. Levava horas para voltar a si. Ao menos para pensar na conta de luz e no rombo que sofreria seu salário mensal, final do mês, quando viesse o talão. Nesse interregno, a megera resolveu ir ao quarto do genro e preparar uma muda de roupas. Se fazia quase na hora do banho da filha, que, por infelicidade, num desastre de automóvel, fraturara as duas pernas e se quedava, toda engessada, sem poder se locomover para as necessidades mais prementes.

Em lá chegando, estranhou, de pronto, se deparar com uma cadeira encostada num canto com algumas roupas que ela, minutos antes, havia passado. Faltava guardar as ditas nas gavetas correspondentes. Quem as colocara ali? As crianças? Com certeza! Furiosa e resmungando, passou a mão na cadeira. Ao voltar com ela para o lugar onde deveria estar anteriormente, uma blusa se fez ao chão. No que se abaixou para apanhar, a enxerida avistou a caixa de sapatos acondicionada num latíbulo às costas do roupeiro:

— Danadinho. Isso é arte do Marcelinho mais a Francisquinha.

Pegou o achado de qualquer jeito. A caixa, por azar, se abriu sem querer, e nesse franquear, se estalou no chão à estranha lâmpada produzindo um barulho seco de sino tangendo contra o assoalho. Os olhos da coroa se alvoroçaram numa cobiça única. Ao ver aquela joia, seus pensamentos trouxeram à baila tempos remotos:

— Meu Deus parece aquela lâmpada do... como é mesmo o nome do personagem? Ah, lembrei... Aladim!...  mas espere: pior que é, em carne e osso!

Correu à porta. Espiou o corredor. A filha, coitada, se divertia com os olhos pregados na novela. As crianças brincavam:

— Será que se eu fizer alguns pedidos e esfregar... esse treco funciona?

Se enclausurou por dentro, cerrou as janelas silenciosamente.  Ansiosa e meio trêmula, não esperou mais. Não custava tentar. Experimentou. Na primeira fricção, o milagre. Uma grande luz branca surgiu do bico da lâmpada enquanto uma imensa forma humana masculina ia se projetando no espaço do aposento. Num instante espetaculoso, pintou, na frente dela, uma figura estupenda e inimaginável. Um gênio com cara de Brad Pitt esbanjando músculos bem trabalhados. Até a voz lembrava o astro, embora a tradução do inglês para o português fosse de péssima qualidade:

— Diga, minha ama e senhora. Estou aqui para lhe servir. Peça e atenderei. Devo informá-la que tem direito a três pedidos...

A antígona, boquiabertamente assustada, só fez repetir o que lhe interessava:

— Só três...?!

—... Que realizarei imediatamente. Então, ilustre madame, o que vai ser?

A anciã em face daquele imprevisto, se quedou atordoada e desconcertada com tudo o que acontecia. Não se fez de rogada. Pensou, por um instante e decidiu:

— Quero minha filha fora daquela cadeira de rodas e andando com os próprios pés.

— Seu pedido é uma ordem.

Puff!

No minuto seguinte a sogra de Tangerino Papado ouviu gritos vindos da sala e fortes batidas na porta. Complemente fora de seu estado normal, meio que atordoada, correu ao escancaro.

Deparou com a filha andando normalmente. Marcelinho, Francisquinha e a Ritinha, grudados em seu corpo, na maior algazarra:

— Vó, a mãe voltou a andar. Cadê o pai?

— No banho, se lavando...

Enquanto Francisquinha regredia com a Ritinha em busca do pai, para lhe contar a novidade, a velha agarrou nas mãos na filha e do neto. Praticamente arrastou os dois para dentro do quarto, chaveando a passagem:

— Mãe, quem é esse sujeito e de onde ele saiu? Não me diga que a senhora está traindo seu Carvalho?

A velha, agora mais tranquila e dona de si explicou:

— Calma, filha, não é nada do que está pensando. Deixa que depois detalharei com mais tranquilidade. Voltando para o estrangeiro, mandou a ordenação: por favor, vamos em frente. Quero ter muito dinheiro para poder viajar e conhecer o mundo com minha filha aqui e meus lindos netos.

O gênio, lindamente solícito fez um gesto surreal:

— Como lhe disse, madame, seu pedido é uma ordem.

Puff!

Uma avalanche de dinheiro brotou de um buraco que se abriu no teto. Em menos de um minuto, metade do espaço que compunha o dormitório, se abarrotou de notas de cem e de duzentos reais:

— Meu Deus, meu Deus, não acredito. Minha filha estamos ricas...

O gênio interrompeu a longeva e observou:

— Falta o terceiro, minha ama. Por favor! Após ele, desaparecerei.

A senhorinha parou de gargalhar e ficou séria. A filha abraçou Marcelinho e encarou o gênio. A engelhada olhou para a filha, depois para Marcelinho e se voltou para o visitante misterioso:

— Chega o ouvido aqui, meu amigo. Vou mandar sem mais delongas, o terceiro pedido.

O talentoso, com suas maneiras estudadas e extremamente cortês, se aboletou para perto da arcaica coroca. Realmente um espécime bonito, sem falar no porte elegante que lhe emprestava ares de um daqueles antigos reis que viviam em castelos medievais à beira de lagos eternos. Uma pena que vivesse recluso e literalmente enlampado:

— Meu terceiro pedido, caríssimo, é o seguinte...

Sussurrou o restante da frase de maneira que só o superdotado a escutasse:

— Perfeitamente, madame. Seu pedido é uma ordem.

Puff!

Vieram correndo e as algazarras de euforia, a Francisquinha, com Ritinha à tiracolo, segurando, nos braços, um porquinho todo molhado pingando água pelo chão. As duas jovens praticamente esmurraram a porta:

— Vovó, mamãe, Marcelinho, olhem só o que achamos no banheiro.... tava debaixo do chuveiro!

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Texto enviado pelo autor

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