sexta-feira, 9 de junho de 2023

Teófilo Braga (A Estrela Dalva)

(CONTO MARÍTIMO DO SÉCULO XVI)


Nisto andava tudo, que se não poderiam por os olhos em parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lágrimas, e de uma amarelão, e trespassamento de manifesta dor, e sobejo receio que a chegada da morte causava, ouvindo-se também de vez em quando algumas palavras lastimosas, sinal certo da lembrança, que ainda naquele derradeiro ponto não faltava dos órfãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos pais que cá deixavam, etc.
Hist. trágico-marítimo, t. I, p. 55.


O sol esmaltava as cores límpidas do horizonte com uns cambiantes de púrpura e de azul, cujo cariz (
semblante) incompleto e vago reflete a melancolia suave em que a alma se concentra nessa hora fugitiva da tarde. O horizonte fechava-se lentamente, como o véu de um templo que se cerra. As virações travessas da noite volitavam encrespando a face trêmula das águas, que lhes respondiam às caricias inquietas, confidenciando com um murmúrio sonoro e confuso. O galeão soberbo da Índia singrava ufano, buscando em proa a terra querida da pátria; levado nas asas das monções propícias, a vela branca desfraldada aos ventos, tinha o garbo da garça altaneira que se libra (equilibra) vaidosa por sobre as ondas, que ela vai roçando de leve. A flâmula ondulante, hasteada no tope do mastro de mezena (mastro de ré), serpeava nos ares como em adeus silencioso às ribas (ribanceiras) odoríferas do Oriente, a despedida ao país dos sonhos e das maravilhas. A natureza como que se absorvera nos encantos desta hora; havia um segredo íntimo em cada toada perdida deste concerto do declinar do dia.

Longo tempo um mancebo encostado à amurada do navio, com os olhos fitos na corrente das vagas, permanecera absorto num cismar incessante, como quem atava na mente as aparências de um sonho mentido, como quem procurava alentar a ultima esperança que prende à vida, e que é como a hera das ruínas. Conhecia-se-lhe na respiração comprimida no peito, que ofegava de cansaço, o esforço acintoso com que procurava afastar da lembrança um sentimento funesto.

A palidez retinta nas faces cavadas pelas insônias longas e aflitivas, era a expressão dos pensamentos tenebrosos, confusos, incoerentes, que vinham povoar-lhe a ansiedade das vigílias. Quem o visse sentiria uma dor igual aquela, uma vontade irresistível de entornar-lhe em sua alma o bálsamo das consolações, com a prodigalidade do afeto com que a moça desenvolta de Magdala vinha derramar aos pés do divino Mestre os perfumes inebriantes da sua urna de alabastro.

Quem o visse na mudez expressiva daquele desalento, no desamparo e soledade de todas as alegrias da vida, sentia-se levado para ele, como por um condão fascinador, que às vezes possuem certos olhares que ninguém pode fitar e de que se tem medo. A brisa fresca da noite, que soprava do poente, como trazendo-lhe o presságio do ocaso de suas esperanças, vinha volatilizar a lágrima tímida e ingênua que tremeluzia viva na pupila cintilante.

A este tempo apareceu sobre o convés do galeão alteroso (
imponente) um outro vulto, todo armado contra a rajada aspérrima (muito áspera) da noite, que se ia cerrando:

— “Ainda aqui, Fernão Ximenez? Embebido nesse longo cismar em que o passado se te afigura doloroso e feio? Para que foges de teu irmão? Bem vês que eu procuro distrair-te dessa agonia lenta que te vai minando a essência débil da vida, desse espasmo da atonia (
inércia) que produz em ti a mudez do sepulcro. O que tens tu em uma vida de criança, inocente, sempre desprevenida, para que o ocultes a teu irmão, ao amigo que sofre com o teu sofrimento, e que exulta com as tuas alegrias?

“ Uma ave, quando é levada para um país distante, longe do ninho que lhe ouviu balbuciar os primeiros trilos de amor, quando lhe falta a bafagem tépida das auras em que se espanejava contente, desfalece à mingua, prisioneira, ralada pela saudade pungente que lhe amofina o ser. Tu, pelo contrario, à medida que os aromas quase imperceptíveis da terra abençoada da pátria nos vêm dar força para afrontar as tormentas escuras, as cerrações e os cabos perigosos, perdes o ânimo ante uma dor imaginária, e deixas-te apossar de uma ânsia, que um instante só de reflexão tranquilizaria. Vamos, serena o teu espírito; seja-te o meu coração o porto almejado onde encontres abrigo. Que receias pois? Temes encontra-la na volta desposada, nos braços de outro? Conta-me a verdade toda; amas?"

— Se com vinte anos apenas haverá quem não tenha sentido ainda esse desvario divino, que acorda de súbito em nós todas as potências da alma, que rasga brilhante a manhã de um éden terreno, dando realidade à vida, e que a um tempo vibra o estertor e o cício (
rumor) horrível dos que se confrangem no báratro (abismo) do desespero que ele gera! Eu amo, sim. É um amor que tem purpurado de risos todas as horas que me absorvo a pensar nela. Para mim é o resumo de todas as belezas do mundo. Onde a vista depara uma aparição grandiosa, deslumbrante, aí sinto uma reminiscência dela; às vezes procuro em vão formar na mente o composto do semblante engraçado, quero tê-la presente pela imaginação à minha idolatria; mas a fantasia não pode reunir em uma mesma auréola de encantos tudo quanto há de mais puro no céu e na terra. Eu estou doido. É o frenesi deste amor que me enlouquece. Eu não a vejo, nem sei mesmo já se existe, mas sinto-a como a essência de um licor suavíssimo e volátil, que inebria à distância os sentidos. Ela flutua-me pairando ante a vista, como um nevoeiro da madrugada que se esvaece (desvanece) nos ares ao romper da claridade, e de que o sol faz realçar a alvura esplendente. Ela nunca me disse que me amava. Quando só em pensamentos a escuto, a dizer-me segredos introduzíveis, parece-me a bailarina indiana requebrando-se flácida, com uma morbidez encantadora, a voltear brandamente às vibrações remotas das gandharvas (seres musicais), instrumentistas do paraíso. Eu voo na mesma ondulação de harmonia, e sonho um gozo indefinível, que me exacerba mais as angústias cruciantes, quando desperto à realidade. Eu não sei mesmo se me ama. Costumado a brincar desde criança, unindo as nossas orações infantis em noites de tormenta, quando seu pai andava sobre as águas, esta confiança torna impossível o mistério, que alimenta todo o amor.

—”Aldonça!  – repetiu despercebidamente Gaspar Ximenez — a mesma, a que me torna aguerrido, audaz para afrontar estas regiões nos términos do mundo; a que jurou um dia ser minha e me prometeu a mão de esposa, que eu beijei e apertei tremulo, convulsivo!

Fernão Ximenez compreendeu estas palavras. Foram como um clarão súbito, que lampeja e cega. Os olhos arrasaram-se-lhe de água, sem as lágrimas poderem rebentar. Era incrível o que se passava em sua alma. A cólera, a alegria, a contrariedade das aspirações mais ardentes da vida, o desinteresse sublime de um coração generoso debatendo-se tudo naquela alma deserta de esperança! Gaspar Ximenez continuou, como delirando:

—Amas também Aldonça? Como ela é meiga e dócil! É a rola inocente do sacrifício. Ela há de querer a tua felicidade. O que eu disse era uma loucura. Amo-a como irmã apenas; ama-a também, mais do que eu, e será tua.

Ao ouvir estas palavras, proferidas com uma acentuação dolorosa, por uma abnegação quase impossível, Fernão Ximenez não pode represar mais tempo as lágrimas, que lhe rebentavam ferventes dos olhos. Os soluços entercortaram-lhe a voz. Ele jurara dar-lhe também um dia a maior prova de dedicação.

A este tempo, ouviu-se um berro do gajeiro (
marinheiro que fica no cesto da gávea) gritando da gávea:

— Mestre Fernão Mendonça, um negrume espesso se alcança no horizonte, que levamos, pois que a não ser a cerração do cabo, mais me parece presságio de tormenta.

O mar começava já a cavar-se. O piloto mandou logo prender o traquete (
vela grande do mastro da proa), colocar a escota (corda da vela que regula sua orientação) à bujarrona, e que o homem de quarto amurasse mais para sotavento, antes que a borrasca rebentasse de chofre. Instantes depois a marinhagem tripulava afanosa (trabalhosa) sobre o convés; a noite estendera pela amplidão dos mares o seu manto gélido de sombras, como um sudário de morte. O vento frígido sibilava na enxárcia (cabo que manobra as velas); parecia uma serpente escamosa quando assobia na floresta intrincável. A orquestra da procela rompia sonora e esplêndida, como a retrata Virgílio num incomparável hemistíquio (versos alexandrinos).

—Por San-Thiago, disse Fernão Ximenez, saindo da mudez do espanto em que o deixara a longaminidade (
generosidade) do irmão; —adivinhava-o o diabo do gajeiro, pois já as ondas guiam os castelos de proa, e lambem a ponta do gurupé (mastro oblíquo na proa). Diabo! que se tivesse mando no timão amurava mais para sotavento, e talvez que escapássemos à fúria da tormenta.

Continuava o enovelar das vagas como grandes cordilheiras sacudidas por um vulcão subtérreo (
subterrâneo). Instantes depois, o moço descia para o porão, e as marés gigantes em vagalhões, salvavam o baixel (embarcação). Soltos, desencontrados dos quatro pontos, os ventos caem de estouro sobre o galeão.

—Que San-Thiago, o bom apóstolo das Espanhas, esteja conosco, murmurou o homem do leme, ao apagar-lhe uma maré a luzinha da bitácula (
caixa onde está a bússola). Que o bom Jesus dos marinheiros nos ampare nesta tribulação, Ave Maria!

A tempestade recrudescia surda à voz do pobre homem de quarto, que não sabia já o rumo que levava. Pouco depois, as ondas envolveram-no no seu marulho, e o sorveram no pélago insondável.

Sem governo, o galeão altivo, cruzando-se sobre duas ondas que rebentaram sobre ele, estremeceu como aluído (
abalado) pelo cavername (cavernas do navio) e costado; o mastro grande, gemendo sobre si, estalou, e sumiu-se na corrente das águas. Por instantes ninguém respirou. Só o capitão Fernão de Mendonça, conhecendo que o temporal amainara, gritou com intrepidez:

—Salta arriba!

A tempestade amansara consideravelmente; via-se espelhado em todos os semblantes um sorriso de esperança, iluminado ao clarão diáfano do santelmo, que reluzia no topo dos mastros.

— Salve! salve, oh Corpo Santo!—gritaram todos possuídos de um regozijo expansivo.

— Podemos agora contar com a bonança, — disse a voz animadora do padre capelão — que o sacro fogo de Santelmo se nos mostra risonho e mensageiro de paz. Oxalá que sem mais desgraças possamos dizer como o mal aventurado soldado das Índias, o bom Luiz de Camões:

Vi nos céus claramente o lume vivo,
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.

—Mestre Fernão de Mendonça!—interrompeu o gajeiro,—o galeão tem um enorme rombo na proa, e daqui a meia hora estaremos todos no fundo, se vos não apraz lançar esta lancha ao mar.

E foi-se cantarolando aquelas trovas do Auto da barca do Inferno, do popular Gil Vicente:

À barca, à barca, boa gente,
Que queremos dar a vela;
Chegar a ela, chegar a ela.

O tom frio com que dissera a má nova fazia julga-lo filho da rajada, como se cria nas encarnações da mitologia grega. Ouvida a fala do capitão, foram saltando todos para o batel. Pouco depois a não soberba da Índia começara a afundar-se. Ao vê-la sumir-se, o padre capelão lançou-lhe a bênção, e proferiu uns versículos da oração dos mortos. A mudez tornava mais sublimes estes instantes. Era como na morte de um herói, que baqueia ferido no auge da luta. As lágrimas borbotavam dos olhos dos velhos marinheiros ao perderem para sempre aquele companheiro das refregas. O batel não podia com a tripulação toda; o mar estava braseiro e a cada momento entrava-lhe pela borda.

Assim foram andando à mercê das correntes, sem que transluzisse no horizonte escuro um clarão de esperança. O ranger dos remos fazia lembrar de hora em hora o estertor de uma veemente agonia. O mar e a fome infundiam na alma o tédio da vida.

O mar continuava roleiro (
manso). A este tempo uma onda encapelada rebentou quase de choque sobre o batel. Era preciso alijar para alivia-lo. O capitão deitou sortes, para ver os que iriam ao mar. Caiu a sorte sobre o intrépido gajeiro. Pero Gutierrez, um velho marinheiro, atirou-se de livre vontade. Fernão Ximenez parecia de tal modo embebido na dor funda que alentava na alma, que não sabia o que se passava em volta de si. A sorte fatídica caíra também sobre o irmão. Despertou da abstração dolorosa, ao abraço fraterno extremo. Repentinamente compreendeu tudo com a lucidez de que o espírito se apossa nos momentos solenes da vida. Deteve-o um instante:

—Uma vez sacrificaste ao meu amor todas as tuas esperanças! É bem que o reconheça; agora estimo a vida só para dá-la por ti.—E desprendeu-se dos braços do irmão, com a resolução do desespero, e arrojou-se à voragem.

Gaspar Ximenez permaneceu atônito, paralisado ante o estranho heroísmo. O sol ia já alto, o céu tornava-se límpido e sereno, o horizonte abria-se imenso, como a expansão de um pensamento de alegria. Depois de haverem remado bastante ainda, descobriram-no à distancia seguindo extenuado o batel. A energia sublime do seu heroísmo e dedicação comovera todos os corações. Quiseram unânimes recebê-lo, estava já sem forças, quase imóvel. O amor fraternal resplandecera com espanto. Os membros enregelados começaram de novo a sentir vida com a reação do calor.

O mar ia amansando progressivamente, e antes do cair da noite viram com pasmo e alegria doida alvejar uma vela. Saudaram-na com a celeuma do regozijo. Quando passados dias chegaram a beijar a terra de seus pais, Fernão Ximenez foi professar, cumprir o voto num mosteiro, para não tornar o amor do irmão impossível.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894.
Português atualizado por J. Feldman

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