sábado, 17 de junho de 2023

Artur de Azevedo (Contos em versos) VAGABUNDO


O Mathias, coitado,
Vive sabe Deus como, que é casado
E duzentos mil mensais apenas ganha,
Pois lhe há sido tamanha
A ingratidão dos fados desumanos,
Que ele ainda hoje tem o parco vencimento
De quando começou, há muitos anos,
Numa repartição...

Caminho lento
Percorre o funcionário
Que se mostre à mesura refratário,
E, metido consigo
De toda a gente não se faça amigo,
Nem serviços alegue
E da sorte ao capricho apático se entregue.
Era assim o Mathias,
E, passavam-se dias
Semanas, meses, anos, sem que o mundo
Lhe ouvisse a menor queixa.

De Catumby no fundo,
Numa viela que a montanha fecha,
Reside o pobretão em companhia
Da cara esposa que, fazendo balas,
Do casal as despesas auxilia,
Porque, se assim não fora, ambos decerto
Se veriam em talas.

Seria aquela casa um lindo céu aberto
Se tivesse o casal um filho, um filho ao menos,
Sim, porque, não há dúvida, os pequenos
Espancam a tristeza
E tornam suportável a pobreza
No lar mais esquecido dos favores
Da eterna deusa cega e fugitiva
Que anda sobre uma roda e que nos faz senhores,
Andar a todos numa roda viva.

No entanto, em casa havia
Um velho cão que, a bem dizer, supria
De uma criança, a falta.
Era um grande peralta
Que, se a porta da rua achava aberta,
Ia logo se embora,
E eram dias e dias pela certa,
Que ficava lá fora,
E coisas tais fazia,
Que ao regressar, trazia
Vestígios eloquentes
De haver lutado a dentes,
Disputando, talvez, uma gentil cadela
Qual cavaleiro antigo, a lança heroica em riste,
Disputaria a sua dama bella.

O cão dessas façanhas vinha triste,
Cauda e orelhas caídas, receoso
De ser mal recebido (e era muito bem feito!);
Porém bastava um gesto carinhoso,
Um sorriso fagueiro,
Uma bala roubada ao tabuleiro,
Para vê-lo de novo alegre e satisfeito.

Há dez anos o cão aparecera um dia
Ali; ninguém sabia
De onde viera. Tinha fome o bicho,
E, como lhe a matassem
E lhe dessem um nicho
Onde nem sol nem chuva o incomodassem
Foi-se ficando o maganão tranquilo
Naquele doce asilo.

Deram-lhe o nome feio
De Vagabundo, e o mesmo nome, creio
(Digo-o em seu desabono)
Lhe havia dado o primitivo dono,
Porque, à primeira vez que foi assim chamado,
Correu logo apressado.

Jamais num cão fraldeiro
Esse nome assentou com tanta propriedade;
Vagabundo, melhor do que o melhor carteiro,
Conhecia a cidade
Do Rio de Janeiro.

Ultimamente, há dias, quando a nossa
Municipalidade
A guerra declarou de morte aos cães vadios,
Mathias e a mulher tiveram calafrios
Por causa da patibular carroça
Que o bairro percorria
Engaiolando os cães, para mata-los.
Incessantes abalos
No piedoso casal o carro produzia.
Que querem? Não havia
Dinheiro para o imposto
Que podia evitar-lhes o desgosto
De verem Vagabundo engaiolado...

Um dia
A carroça fatal passou de cães repleta,
E a mulher do Mathias inquieta,
Debalde procurou por Vagabundo:
Não estava em casa, andava a correr mundo
— Quem sabe se foi preso e vai ali? — murmura,
E, fazendo tão triste conjectura,
Viu a carroça... e Vagabundo dentro!

A mulher desespera!
Em minúcias não entro,
Que é difícil pintar-vos a sincera
Dor que dela se apossa
Ao ver o cão querido na carroça,
Que lembra uma carreta
No tempo da infeliz Maria Antonieta.

Mas, eis que o velho cão sai de baixo da mesa
Agitando a sorrir a cauda tesa,
Como se tudo houvera compreendido;
Parecendo dizer: — Cá estou, não tenha medo,
Eu me havia escondido
Apenas por brinquedo.

Não era Vagabundo, o cão engaiolado,
Porém outro com ele parecido,
Que o não ser cão de raça
Tem este inconveniente
De se não distinguir de qualquer cão que passa.

A senhora ficou muito contente,
Para outro susto não sofrer, coitada,
Foi buscar onde estava bem guardada
Uma velha pulseira,
Joia numero um, do tempo de solteira,
E empenha-la mandou no Monte do Socorro,
Para pagar o imposto do cachorro.
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Nota sobre o nome do autor:
Neste livro consta Artur (sem o h), em outros é Arthur. Ainda há uns que não possuem o de antes de Azevedo. Estou publicando sem o h, como está neste livro.


Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman

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