domingo, 25 de junho de 2023

Contos e Lendas da África (Mkaa’Ah Jeecho’Nee, o pequeno caçador)

(por George W. Bateman)


O sultão Maaj′noon tinha sete filhos e um grande tigre. Amava muito a todos.

Tudo ia bem até que um dia o tigre matou um bezerro. Quando foram avisar o sultão, ele respondeu:

— Ora, o tigre é meu e o bezerro também.

— Como quiser, amo. — E o assunto foi esquecido.

Alguns dias depois o tigre capturou uma cabra. Novamente os súditos foram ao sultão.

— O tigre é meu e a cabra também. — E isso resolveu a questão.

Mais dois dias se passaram e o tigre matou uma vaca. Uma vez mais o sultão deu fim às reclamações.

— Tanto o tigre quanto a vaca são meus.

Dois dias mais e um burro foi morto pelo felino. A resposta foi a mesma. Em seguida um cavalo. A resposta foi a mesma.

A vítima seguinte foi um camelo. Diante das reclamações, o sultão zangou-se.

— O que incomoda vocês? Todos os dias se queixam do meu tigre. Parece que não gostam dele e querem me convencer a matá-lo. Deixem que coma o que quiser.

Pouco tempo depois o felino matou uma criança, depois, um homem adulto. A cada nova denúncia, o sultão reforçava que tanto o tigre quanto as vítimas pertenciam a ele, e assim se encerrava o assunto.

Enquanto isso, a ousadia do grande animal só aumentava. Ele agora rondava uma clareira próxima à cidade, caçando e devorando pessoas que iam buscar água ou animais que pastavam ali perto.

Um pequeno grupo de pessoas tomou coragem e foi reclamar com o sultão.

— Por que permite isso, amo? Como nosso sultão, é sua obrigação... ou deveria ser... nos proteger. Seu tigre faz o que quer! Vive nos arredores da cidade, onde mata qualquer pessoa ou animal que se aproxima. E à noite ele perambula por nossas ruas fazendo o mesmo. O que podemos fazer?

A resposta de Maaj′noon foi breve.

— Vocês mostram que realmente odeiam meu tigre. Imagino que queiram que eu o mate, mas não farei isso. Sou o dono de tudo o que ele come.

Como era de se esperar, os súditos ficaram atônitos com as palavras do sultão. Ninguém se atreveria a matar o tigre, por isso tiveram que se mudar para outro bairro. De nada adiantou, pois quando o felino se viu sem caça, também mudou o local de seus ataques.

As reclamações continuaram a chegar até que o sultão Maaj′noon avisou que não atenderia mais ninguém que viesse fazer acusações contra seu tigre. A situação chegou a tal ponto que as pessoas não saíam mais de casa, tampouco deixavam seus animais ao ar livre. O tigre então começou a se deslocar para o interior do país, matando bois, galinhas e todo tipo de criação que encontrava.

Um dia o sultão disse a seus seis filhos mais velhos:

— Vou para o campo hoje ver como andam as coisas por lá. Venham comigo.

O caçula era jovem demais para sair, por isso ficava sempre em casa com as mulheres. Seus irmãos o chamavam de Mkaa′ah Jeecho′nee, que quer dizer senhor-sentado-na-cozinha.

Os seis filhos seguiram seu pai e logo chegaram a um denso bosque. O tigre saltou de dentro da floresta e matou três dos rapazes que vinham por último. Os criados gritaram e o soldados pediram permissão para procurá-lo e matá-lo. O sultão autorizou-os, dizendo:

— Esse não é um tigre comum, é um noon′dah. Tirou três filhos de mim!

Ninguém nunca havia visto um noon′dah, mas sabiam que era uma fera terrível, capaz de matar qualquer animal. O sultão ainda lamentava a perda de seus filhos quando alguns de seus súditos vieram falar com ele.

— Meu amo, esse noon′dah não faz distinção entre suas presas. Ele não diz “Este é o filho do meu senhor, não farei mal a ele” ou “Aquela é a esposa do meu amo, não a comerei”. Quando avisávamos sobre as mortes causadas por ele, o senhor nos dizia que o tigre era seu e o que ele caçava também. Agora ele matou seus filhos e facilmente mataria o senhor também.

— Infelizmente vocês têm razão. — concordou o sultão.

O tigre matou ainda alguns dos soldados que foram atrás dele. O restante fugiu. O sultão e seus outros filhos levaram os cadáveres para a cidade e os enterraram.

Quando Mkaa′ah Jeecho′nee, o sétimo filho, soube da morte de seus irmãos, declarou à sua mãe:

— Vou atrás desse noon′dah. Se ele não me matar como fez com meus irmãos, eu o matarei.

— Não quero que você vá — respondeu a mulher. — Já perdi três filhos. Se você também morrer, será uma ferida a mais em meu coração.

— Ainda assim, tenho de ir. Por favor, não diga nada ao meu pai.

Sua mãe lhe preparou algumas tortas para a viagem e mandou que alguns criados o acompanhassem. Mkaa′ah armou-se com uma espada e uma grande lança, afiada como uma navalha. Despediu-se e partiu.

Como nunca havia saído de casa, Mkaa′ah não sabia muito bem o que procurar. Mal havia deixado a cidade quando se deparou com um grande cachorro. Concluiu que era sua presa. Matou o animal, amarrou-o e arrastou-o até sua casa, cantando:

— O que nos comia, mamãe, não terá mais fome. Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

Sua mãe estava na parte alta da casa e a cantoria a atraiu até a janela. Ao ver o animal abatido, disse:

— Meu filho, esse não é noon′dah, o comedor de homens.

Mkaa′ah Jeecho′nee largou a carcaça no chão e entrou em casa.

— Meu querido, o noon′dah é maior que esse animal — explicou sua mãe. — Mas se eu fosse você, desistiria dessa caça e ficaria em casa.

— Não posso! — exclamou ele. — Só volto para casa quando encontrar e matar o noon′dah.

E assim partiu novamente, indo muito mais longe do que no primeiro dia. Logo encontrou uma civeta (quadrupede, conhecido por gato-de-algália) e pensou ser o animal que procurava. Matou-a, amarrou-a e arrastou-a até sua casa, cantando:

— O que nos comia, mamãe, não terá mais fome. Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

Ao ver a nova presa de seu caçula, a mulher disse:

— Meu filho, esse não é noon′dah, comedor de homens.

E Mkaa′ah livrou-se do animal.

Uma vez mais sua mãe tentou convencê-lo a ficar em casa. Mkaa′ah Jeecho′nee não lhe deu atenção e partiu novamente.

Desta vez chegou até a floresta, onde viu um gato ainda maior do que a civeta. Matou-o, amarrou-o e arrastou-o até sua casa, cantando:

— O que nos comia, mamãe, não terá mais fome. Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

Mas assim que a mulher viu a caça, repetiu:

— Meu filho, esse não é noon′dah, o comedor de homens.

Mkaa′ah Jeecho′nee sentiu-se bastante frustrado, obviamente. E sua mãe continuou:

— Onde você vai procurar esse noon′dah? Você não sabe onde ele está e nunca o viu. Vai acabar doente, já está até abatido. Deixe disso e fique em casa.

— Há apenas três possibilidades para mim — retrucou o menino. — Encontrarei o noon′dah e o matarei; morrerei tentando; ou voltarei para casa como um fracassado. Seja como for, partirei novamente.

Foi ainda mais longe e encontrou uma zebra. Matou-a, amarrou-a e arrastou-a até sua casa, cantando:

— O que nos comia, mamãe, não terá mais fome. Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

E claro que, mais uma vez, sua mãe teve que lhe dizer:

— Meu filho, esse não é noon′dah, comedor de homens.

Após uma longa discussão, em que a mulher foi mais uma vez incapaz de convencer o filho a ficar, Mkaa′ah Jeecho′nee partiu novamente. Foi ainda mais longe e capturou uma girafa. Após matá-la, disse:

— Desta vez consegui. Certamente este é noon′dah.

E a arrastou para casa, cantando:

— O que nos comia, mamãe, não terá mais fome. Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

De novo sua mãe o desiludiu.

— Meu filho, esse não é noon′dah, comedor de homens.

A mulher argumentou ainda que seus irmãos não andavam por aí atrás do comedor de homens. Estavam em casa cuidando de suas próprias vidas. Mkaa′ah apontou que nem todos os irmãos são iguais. Estava determinado a cumprir seu propósito de matar o noon′dah, e uma vez mais saiu em seu encalço, caminhando uma distância ainda maior.

Passava por um campo deserto quando avistou um rinoceronte dormindo debaixo de uma árvore.

— Lá está noon′dah, finalmente! — disse a seus criados.

— Onde, senhor? — perguntaram, ansiosos.

— Ali, debaixo da árvore.

— Ah, sim! E o que devemos fazer?

— Antes de mais nada, vamos comer, depois o atacaremos — respondeu o menino. — Ele está em um lugar desprotegido, mas se nos matar, de nada adiantará.

Então pararam-se para comer as tortas de araruta que haviam trazido. Após a refeição, Mkaa′ah Jeecho′nee deu suas ordens.

— Cada um pegue duas armas. Deixem uma preparada a seu lado e empunhem a outra. Na hora certa, dispararemos todos juntos.

Todos obedeceram. Rastejaram com cuidado por entre os arbustos até chegarem do outro lado da árvore, para surpreender o rinoceronte por trás. Quando chegaram bem perto, todos dispararam ao mesmo tempo. O gigante deu um pulo, correu alguns metros e caiu em seguida. Amarraram o paquiderme e o arrastaram por dois dias até a cidade. Uma vez lá, Mkaa′ah Jeecho′nee entoou mais uma vez a canção:

— O que nos comia, mamãe, não terá mais fome. Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

No entanto, recebeu a mesma resposta de sua mãe:

— Meu filho, esse não é noon′dah, comedor de homens.

Muitas pessoas vieram olhar o rinoceronte morto e sentiram pena do rapaz. Seus pais imploraram para que desistisse. O sultão chegou a oferecer qualquer coisa que ele quisesse para ficar em casa.

— Nada disso me interessa. Adeus — Mkaa′ah Jeecho′nee disse antes de sair novamente.

Desta vez afastou-se ainda mais de sua aldeia. Chegou a um local onde encontrou um elefante dormindo na floresta durante o dia.

— Agora sim encontramos o noon′dah — disse aos seus criados.

— Onde?

— Ali, naquela sombra. Estão vendo?

— Sim, amo. Vamos atacá-lo?

— Não sabemos para que lado está virado. Se chegarmos pela frente, ele nos ataca e nos mata. O melhor é que um de nós se aproxime e verifique onde está sua cara.

Todos gostaram da ideia e um escravo chamado Keerobo′to rastejou até conseguir ter uma boa visão do animal. Arrastou-se de volta e Mkaa′ah perguntou:

— E então? É o noon′dah?

— Não posso afirmar com certeza. Mas acho que tem grandes chances de ser. É um bicho muito grande, com a cabeça enorme. E pelos deuses, nunca vi orelhas daquele tamanho!

— Muito bem — disse seu amo. — Vamos comer e então o matamos.

Comeram suas tortas de araruta e bolos de melaço. O rapaz então anunciou a seus criados:

— Homens, talvez este seja nosso último dia sobre esta terra. Quem conseguir escapar, bem; quem morrer, paciência. Se eu morrer, digam aos meus pais que não lamentem minha morte.

— Não diga isso, amo! Ninguém vai morrer, se Deus quiser. — disseram os escravos.

Engatinharam para mais perto do elefante.

— Qual é o plano, senhor? — perguntou um deles.

— Não há plano. Vamos atirar todos juntos.

Assim fizeram e, após ser atingido pelos tiros, o elefante levantou-se e correu na direção deles, furioso. Com um grande alvoroço, largaram tudo e correram para as árvores, que escalaram com surpreendente agilidade. O elefante continuou correndo até que caiu a uma curta distância de onde estavam.

Passaram a noite nas árvores, desagasalhados e sem comida. Mkaa′ah Jeecho′nee, sentado em um galho, começou a chorar.

— Não sei bem o que é a morte, mas deve ser bem parecida com isto.

Como não podia ver seus companheiros, não sabia onde estavam. Embora quisesse descer da árvore, pensou: “Talvez o noon′dah esteja no chão aqui embaixo, esperando para me comer”.

Cada um dos escravos estava na mesma situação. Sem conseguir ver os outros e com medo de descer e ser atacado pelo comedor de homens. Keerobo′to havia visto o elefante cair, mas também lhe faltava coragem. “Pode estar caído, mas ainda vivo”, pensava.

No entanto, logo um cachorro se aproximou para cheirar o elefante. Nesse momento, o criado teve certeza de que estava morto. Keerobo′to desceu da árvore o mais rápido que pôde e gritou para avisar aos outros. Alguém o chamou de volta e, sem saber de onde veio a resposta, gritou novamente e aguçou os ouvidos. Desta vez pôde identificar o local e correu para lá. Encontrou dois de seus companheiros em uma das árvores.

— Desçam, o noon′dah está morto! — anunciou.

Reunidos, os três foram procurar seu amo. Com a confirmação, Mkaa′ah Jeecho′nee enfim desceu de sua árvore. Logo o grupo estava completo novamente. Todos recolheram suas armas e suas roupas. No entanto, estavam fracos e famintos, por isso comeram e descansaram antes de irem examinar o animal abatido.

Assim que Mkaa′ah Jeecho′nee o viu, declarou:

— Ah, esse sim é o noon′dah! É ele! É ele!

E todos concordaram.

Arrastaram o elefante por três dias até a cidade e, ao chegarem, o rapaz começou a cantar:

— O que nos comia, mamãe, não terá mais fome. Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

Logicamente Mkaa′ah Jeecho′nee ficou muito chateado quando sua mãe disse:

— Meu filho, esse não é noon′dah, comedor de homens.

E a mulher acrescentou:

— Pobrezinho! Quantas infelicidades já teve! Todos estão admirados que um rapaz tão jovem já conheça tantas coisas.

Seus pais repetiram as súplicas até que Mkaa′ah concordou que seria sua última expedição, independentemente do resultado. O grupo partiu novamente e foram ainda mais longe. Atravessaram a floresta e chegaram ao pé de uma montanha muito alta, onde acamparam durante a noite.

Na manhã seguinte, cozinharam arroz para o desjejum.

— Vamos subir até o topo desta montanha para que tenhamos uma visão de todo o território — propôs o jovem caçador.

Subiram por muito tempo até chegarem ao topo. Uma vez lá, sentaram-se para definir os próximos planos.

Um dos criados, chamado Shindaa′no, andava pela encosta quando avistou um animal no meio da trilha que subia para a montanha. No entanto, a distância e as árvores o impediam de ver nitidamente. Chamou seu amo e lhe apontou a fera. Algo no coração de Mkaa′ah Jeecho′nee confirmava que aquele era enfim o noon′dah. Ainda assim, apanhou sua arma e sua lança e desceu parte da montanha, para ver melhor e se certificar.

— Deve ser mesmo o noon′dah — pensou alto. — Minha mãe disse que tinha orelhas pequenas, e as dele são assim. Disse que o noon′dah é robusto e forte, como aquele animal. Que tem manchas como uma civeta, e lá estão elas. E que sua cauda era grossa como aquela. Deve ser o noon′dah, sem dúvida.

Voltou para onde estavam os criados e mandou fazerem uma refeição reforçada. Ordenou que deixassem qualquer item desnecessário para trás. Se tivessem que fugir correndo, nada os atrapalharia, e se tivessem sucesso na caça poderiam voltar depois.

Após esses preparativos, começaram a descer a montanha. Na metade do caminho, Mkaa′ah percebeu que Keerobo′to e Shindaa′no estavam aterrorizados.

— Continuem, não há razão para se afligirem — exortou. — Todos vivem e morrem, então por que ter medo?

E com esse encorajamento, prosseguiram.

Ao chegarem perto do local onde a fera estava, Mkaa′ah Jeecho′nee ordenou que todos tirassem suas vestes, exceto pela roupa íntima, que deveria estar bem justa ao corpo para que não se prendesse em espinhos ou galhos caso precisassem correr.

Aproximaram-se mais um pouco e viram que o animal dormia.

Concordaram que se tratava do noon′dah.

— O sol já vai se pôr — disse o jovem. — Atiramos agora ou esperamos até amanhã?

Estavam todos muito nervosos para esperar, por isso decidiram atirar imediatamente.

Acercaram-se cautelosamente e, após o comando de Mkaa′ah, todos dispararam ao mesmo tempo. O noon′dah sequer se moveu, a artilharia fora fatal. Os caçadores então retornaram ao acampamento, comeram e descansaram.

Na manhã seguinte, após o café da manhã, encontraram o cadáver no mesmo lugar.

Após se refazerem, tomaram o caminho de volta para casa, arrastando seu prêmio com eles. No quarto dia, o corpo começou a se decompor e os criados quiseram abandoná-lo. Mkaa′ah Jeecho′nee exigiu que continuassem mesmo que restasse apenas um osso.

Ao chegarem nos arredores da cidade, o jovem mais uma vez cantou:

— Estou de volta, mamãe, eis-me aqui. Visitei maus espíritos e os venci. Ouça, mamãe, meu canto de vitória:
Cacei a presa, alcancei a glória.
O que nos comia, mamãe, não terá mais fome.
Eu matei o noon′dah, comedor de homens.

Sua mãe saiu à janela e gritou:

— Meu filho, esse é noon′dah, comedor de homens!

Todos saíram à rua para recebê-lo. O sultão Maaj′noon ficou exultante e o cobriu de honrarias, além de arranjar-lhe casamento com uma bela e rica esposa. Mkaa′ah Jeecho′nee se tornou sultão após a morte de seu pai e, querido por todos, teve uma vida longa e próspera.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC.
Distribuição gratuita.

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