O artista de hoje é um vulgarizador das conquistas da inteligência e do sentimento. Extinguiu-se-lhe com a decadência das crenças religiosas a maior de suas fontes inspiradoras. Aparece num tempo em que as realidades demonstráveis dia a dia se avolumam, à medida que se desfazem todas as aparências enganadoras, todas as quimeras e miragens das velhas e novas teogonias, de onde a inspiração lhe rompia, libérrima, a se desafogar num majestoso simbolismo. Resta-lhe, para não desaparecer, uma missão difícil: descobrir, sobre as relações positivas cada vez mais numerosas, outras relações mais altas em que as verdades desvendadas pela análise objetiva se concentrem, subjetivamente, numa impressão dominante. Aos fatos capazes das definições científicas ele tem de sobrepor a imagem e as sensações, e este impressionismo que não se define, ou que palidamente se define "como uma nova relação, passiva de bem-estar moral, levando-nos a identificar a nossa sinergia própria com a harmonia natural".
É a "verdade extensa", de Diderot, ou o véu diáfano da fantasia, de Eça de Queiroz, distendido sobre todas as verdades sem as encobrir e sem as deformar, mas aformoseando-as e retificando-as, como a melodia musical se expande sobre as secas progressões harmônicas da acústica, e o arremessado maravilhoso das ogivas irrompe das linhas geométricas e das forças friamente calculadas da mecânica.
Daí as dificuldades crescentes para o artista moderno em ampliar e transmitir, ou reproduzir, a sua emoção pessoal. Entre ele e o espectador, ou o leitor, estão os elos intangíveis de uma série cada vez maior de noções comuns — o perpetuum mobile dessa vasta legislação que resume tudo o que se agita e vive e brilha e canta na existência universal. Diminui-se-lhe a primitiva originalidade. Vinculado cada vez mais ao meio, este lhe impõe a passividade de um prisma: refrata os brilhos de um aspecto da natureza, ou da sociedade, ampliando-os apenas e mal emprestando-lhe os cambiantes de um temperamento. Já lhe não é indiferente, nestes dias, a ideia ou o assunto que tenha de concretizar no mármore ou no livro.
O seu trabalho é a homogenia da sua afetividade e da consciência coletiva. E a sua personalidade pode imprimir-se fundamente num assunto, mas lá permanecerá inútil se destoar das ideias gerais e dos sentimentos da sua época...
***
Tomemos um exemplo.
Há uma estátua do marechal Ney, em que se têm partido todos os dentes da crítica acadêmica e reportada.
Dos múltiplos aspectos da vida dramática e tormentosa do valente, o escultor escolheu o mais fugitivo e revolto: o final de uma carga vitoriosa.
O general, cujo tronco se apruma num desgarre atrevido, mal equilibrado numa das pernas, enquanto a outra se alevanta em salto impetuoso, aparece no mais completo desmancho: a farda desabotoada, e a atitude arremetente num arranco terrível, que se denuncia menos na espada rijamente brandida que na face contorcida, onde os olhos se dilatam exageradamente e exageradissimamente a boca se abre num grito de triunfo.
É um instantâneo prodigioso. Uma vida que se funde no relance de um delírio e num bloco de metal. Um arremesso que se paralisa na imobilidade da matéria, mas para a animar, para a transfigurar e para a idealizar na ilusão extraordinária de uma vida subjetiva e eterna, perpetuamente a renascer das emoções e do entusiasmo admirativo dos que a contemplam.
Mas para muitos são perfeitamente ridículos aquela boca aberta e muda, aquele braço e aquela perna no ar. Em um quadro, sim, conclamam, à frente de um regimento, aquela atitude seria admirável. Ali, não; não se compreende aquela nevrose, aquela violência, aquela epilepsia heroica no isolamento de um pedestal.
Entretanto, o que a miopia da crítica até hoje ainda não distinguiu, adivinhou-o sempre a alma francesa; e o legitimista, o orleanista, o bonapartista e o republicano divergentes, ali se irmanam, enleados pelos mesmos sentimentos, escutando a ressoar para sempre naquela boca metálica o brado triunfal que rolou dos Pirineus à Rússia, e vendo na imprimadura (passar a primeira demão de tinta) transparente e clara daqueles ares não o regimento tão complacentemente requisitado, mas todo o grande exército...
É que a escultura, sobretudo a escultura heroica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música. Basta-lhe para isto que se não limite a destacar um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado.
Neste caso, malgrado o restrito de seus recursos e as exigências máximas de uma síntese artística, capaz de reproduzir toda a amplitude e toda a agitação de uma vida num bloco limitado e imóvel — este ideal é notavelmente favorecido pelo sentimento coletivo. A mais estática das artes, se permitem o dizer, vibra então na dinâmica poderosa das paixões e a estátua, um trabalho de colaboração em que entra mais o sentimento popular do que o gênio do artista, a estátua aparece-nos viva — positivamente viva, porque é toda a existência imortal de uma época, ou de um povo, numa fase qualquer de sua história que para perpetuar-se procura um organismo de bronze.
Porque há até uma gestação para estes entes privilegiados, que renascem maiores sobre os destroços da vida objetiva e transitória. Não bastam, às vezes, séculos. Durante séculos, gerações sucessivas os modelam e refazem e aprimoram, já exagerando-lhes os atributos superiores, já corrigindo-lhes os deslizes e vão transfigurando-os nas lendas que se transmitem de lar em lar e de época em época, até que se ultime a criação profundamente humana e vasta. De sorte que, não raro, a estátua virtual, a verdadeira estátua, está feita, restando apenas ao artista o trabalho material de um molde.
A de Anchieta, em São Paulo, é expressivo exemplo.
Tome-se o mais bisonho artista; e ele a modelará de um lance. Tão empolgante, tão sugestiva é a tradição popular em torno da memória do evangelizador, que o seu esforço se reduzirá ao trabalho reflexo de uma cópia. Não pode errar. As linhas ideais do predestinado corrigem-lhe os desvios do buril.
O elemento passivo, ali, não é a pedra ou o bronze, é o seu gênio. A alma poderosa do herói, nascente do culto de todas as almas, absorve-lhe toda a personalidade, e transfigura-o e imortaliza-o com o mais apagado reflexo da sua mesma imortalidade...
Mas há ocasiões (e aqui se nos antolha [põe-se diante dos olhos] uma contraprova desta psicologia transcendental e ao parecer singularmente imaginosa) em que a estátua nasce prematura.
Falta-lhe a longa elaboração do elemento popular. Possui talvez admiráveis elementos capazes de a tornarem grande ao cabo de um longo tempo — um longo tempo em que se amorteçam as paixões e se apaguem, pelo só efeito de uma dilatada perspectiva histórica, todas as linhas secundárias de uma certa fase da existência nacional...
Mas não se aguarda esse tempo; não se respeita esse interregno, ou essa quarentena ideal, que livra as grandes vidas dos contágios perniciosos das nossas pequenas vidas; e decreta-se uma estátua, como se fosse possível decretar-se um grande homem.
Então, neste vir fora de tempo, ela é historicamente inviável. E não há golpes de gênio que a transfigurem.
É uma estátua morta.
É a "verdade extensa", de Diderot, ou o véu diáfano da fantasia, de Eça de Queiroz, distendido sobre todas as verdades sem as encobrir e sem as deformar, mas aformoseando-as e retificando-as, como a melodia musical se expande sobre as secas progressões harmônicas da acústica, e o arremessado maravilhoso das ogivas irrompe das linhas geométricas e das forças friamente calculadas da mecânica.
Daí as dificuldades crescentes para o artista moderno em ampliar e transmitir, ou reproduzir, a sua emoção pessoal. Entre ele e o espectador, ou o leitor, estão os elos intangíveis de uma série cada vez maior de noções comuns — o perpetuum mobile dessa vasta legislação que resume tudo o que se agita e vive e brilha e canta na existência universal. Diminui-se-lhe a primitiva originalidade. Vinculado cada vez mais ao meio, este lhe impõe a passividade de um prisma: refrata os brilhos de um aspecto da natureza, ou da sociedade, ampliando-os apenas e mal emprestando-lhe os cambiantes de um temperamento. Já lhe não é indiferente, nestes dias, a ideia ou o assunto que tenha de concretizar no mármore ou no livro.
O seu trabalho é a homogenia da sua afetividade e da consciência coletiva. E a sua personalidade pode imprimir-se fundamente num assunto, mas lá permanecerá inútil se destoar das ideias gerais e dos sentimentos da sua época...
***
Tomemos um exemplo.
Há uma estátua do marechal Ney, em que se têm partido todos os dentes da crítica acadêmica e reportada.
Dos múltiplos aspectos da vida dramática e tormentosa do valente, o escultor escolheu o mais fugitivo e revolto: o final de uma carga vitoriosa.
O general, cujo tronco se apruma num desgarre atrevido, mal equilibrado numa das pernas, enquanto a outra se alevanta em salto impetuoso, aparece no mais completo desmancho: a farda desabotoada, e a atitude arremetente num arranco terrível, que se denuncia menos na espada rijamente brandida que na face contorcida, onde os olhos se dilatam exageradamente e exageradissimamente a boca se abre num grito de triunfo.
É um instantâneo prodigioso. Uma vida que se funde no relance de um delírio e num bloco de metal. Um arremesso que se paralisa na imobilidade da matéria, mas para a animar, para a transfigurar e para a idealizar na ilusão extraordinária de uma vida subjetiva e eterna, perpetuamente a renascer das emoções e do entusiasmo admirativo dos que a contemplam.
Mas para muitos são perfeitamente ridículos aquela boca aberta e muda, aquele braço e aquela perna no ar. Em um quadro, sim, conclamam, à frente de um regimento, aquela atitude seria admirável. Ali, não; não se compreende aquela nevrose, aquela violência, aquela epilepsia heroica no isolamento de um pedestal.
Entretanto, o que a miopia da crítica até hoje ainda não distinguiu, adivinhou-o sempre a alma francesa; e o legitimista, o orleanista, o bonapartista e o republicano divergentes, ali se irmanam, enleados pelos mesmos sentimentos, escutando a ressoar para sempre naquela boca metálica o brado triunfal que rolou dos Pirineus à Rússia, e vendo na imprimadura (passar a primeira demão de tinta) transparente e clara daqueles ares não o regimento tão complacentemente requisitado, mas todo o grande exército...
É que a escultura, sobretudo a escultura heroica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música. Basta-lhe para isto que se não limite a destacar um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado.
Neste caso, malgrado o restrito de seus recursos e as exigências máximas de uma síntese artística, capaz de reproduzir toda a amplitude e toda a agitação de uma vida num bloco limitado e imóvel — este ideal é notavelmente favorecido pelo sentimento coletivo. A mais estática das artes, se permitem o dizer, vibra então na dinâmica poderosa das paixões e a estátua, um trabalho de colaboração em que entra mais o sentimento popular do que o gênio do artista, a estátua aparece-nos viva — positivamente viva, porque é toda a existência imortal de uma época, ou de um povo, numa fase qualquer de sua história que para perpetuar-se procura um organismo de bronze.
Porque há até uma gestação para estes entes privilegiados, que renascem maiores sobre os destroços da vida objetiva e transitória. Não bastam, às vezes, séculos. Durante séculos, gerações sucessivas os modelam e refazem e aprimoram, já exagerando-lhes os atributos superiores, já corrigindo-lhes os deslizes e vão transfigurando-os nas lendas que se transmitem de lar em lar e de época em época, até que se ultime a criação profundamente humana e vasta. De sorte que, não raro, a estátua virtual, a verdadeira estátua, está feita, restando apenas ao artista o trabalho material de um molde.
A de Anchieta, em São Paulo, é expressivo exemplo.
Tome-se o mais bisonho artista; e ele a modelará de um lance. Tão empolgante, tão sugestiva é a tradição popular em torno da memória do evangelizador, que o seu esforço se reduzirá ao trabalho reflexo de uma cópia. Não pode errar. As linhas ideais do predestinado corrigem-lhe os desvios do buril.
O elemento passivo, ali, não é a pedra ou o bronze, é o seu gênio. A alma poderosa do herói, nascente do culto de todas as almas, absorve-lhe toda a personalidade, e transfigura-o e imortaliza-o com o mais apagado reflexo da sua mesma imortalidade...
Mas há ocasiões (e aqui se nos antolha [põe-se diante dos olhos] uma contraprova desta psicologia transcendental e ao parecer singularmente imaginosa) em que a estátua nasce prematura.
Falta-lhe a longa elaboração do elemento popular. Possui talvez admiráveis elementos capazes de a tornarem grande ao cabo de um longo tempo — um longo tempo em que se amorteçam as paixões e se apaguem, pelo só efeito de uma dilatada perspectiva histórica, todas as linhas secundárias de uma certa fase da existência nacional...
Mas não se aguarda esse tempo; não se respeita esse interregno, ou essa quarentena ideal, que livra as grandes vidas dos contágios perniciosos das nossas pequenas vidas; e decreta-se uma estátua, como se fosse possível decretar-se um grande homem.
Então, neste vir fora de tempo, ela é historicamente inviável. E não há golpes de gênio que a transfigurem.
É uma estátua morta.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. Publicado originalmente em 1907.
Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. Publicado originalmente em 1907.
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