sábado, 10 de junho de 2023

Camilo Castelo Branco (As ostras)


No Porto, as comoções que sacodem os nervos da grande cidade são raras, mas, se arrebentam, são a valer!

No princípio deste ano, estávamos todos quietos, com estas nossas caras cheias de ideal, grávidos de filosofias, hipocondríacos, ares ingleses, indigestos, mas, sobre tudo, bons vizinhos e inimigos de novidades.

A quarta página das gazetas andava, há muito, alugada aos vários barateiros, que se denominam numericamente como as dinastias, traspassando a sua qualidade de barateiros n. 1, n. 2, etc., à proporção que quebram, e vão transmitindo a genealogia dos epítetos, maneira discreta de esconder os nomes.

Eis que, inesperadamente, se anunciam em letras colossais as ostras.

E os literatos, encarregados de guiarem a corrente da opinião publica, escolhendo no seu guarda-joias a mais nítida pedraria de estilo, apregoaram as ostras como há dezenove séculos o fazia Horácio quando as afogava no falerno (
vinho produzido em Falerno/Itália) de Mecenas.

O localista (
redator de seção de jornal) do Primeiro de Janeiro, com pulso febril, e ternura pelo marisco, exclamou: «Abençoado o nome de quem quer que em tempos tão doentios nos trouxe medicina tão eficaz e preconizada!... Não são de Ostende as ostras que se nos oferecem, frescas, saborosas e provocadoras, pela manhã como leite de cabra, ao meio dia como o lunch (almoço) à inglesa, á noite como um restaurador das forças perdidas no labutar diurno. São de Montijo, igualmente boas, e igualmente irritantes. Vamos a elas!»

Vamos lá! – Conclamou toda a gente doentia, toda a gente em uso de leite de cabra, toda a gente que “lunchava” à inglesa, e, em suma, toda a gente que à noite costumava restaurar as forças, deitando-se a dormir, ou extraindo do goraz (
peixe) cozido o fósforo necessário à sua vida intelectual e física.

Desde o alvorejar (
alvorecer) das gazetas, confluíram á praça de D. Pedro todos os servos que superintendem na culinária das famílias. As massas que desembocavam das ruas circunjacentes davam a lembrar os comícios daqueles dias de vertigem cívica, lá quando os irmãos Passos abriam na viela da Neta os relâmpagos do Sinai, e a turbulência da liberdade ali vinha soltar um rugido e ameaçar os tiranos.

Não assim agora nestes dias em que o país, podre de feliz e anêmico da sua indigestão de prosperidade, procura restaurar-se pelo marisco.

De mais a mais, os diários tinham anunciado que as ostras eram gordas; e, sobre gordas, dizia o Primeiro de Janeiro, irritantes. Pela qualidade de gordas, o sorriso que brincava nos meus lábios, quando mandei o meu galego (
criado, pessoa sem muito nível cultural) comprar doze vinténs daquele remédio, era um sorriso de tão legitima candura como o leitor os tem visto nas bentas bochechas dos serafins que sobem de gatinhas pelas colunas dos altares. Quanto a irritantes, como essa virtude me não parecesse a mais sadia, mandei ao mesmo tempo comprar a linhaça correspondente.

E, enquanto o criado ia e vinha, consultei, para iludir a impaciência, os meus livros no que havia, através dos séculos, mais averiguado acerca das ostras. Li em Chernoviz que pode uma pessoa comer oito dúzias sem experimentar o mínimo incômodo. Oito dúzias – noventa e seis ostras, de manhã, como leite de cabra; noventa e seis, como lunch à inglesa; noventa e seis à noite para restaurar as forças: ao todo, duzentas e oitenta e oito ostras cotidianas que custam no depósito da praça de D. Pedro 3$840 reis.

É uma alimentação econômica e boa para fortalecer o estômago de um país pobre. Qualquer sujeito anêmico, pálido, que não possa com um gato por qualquer parte do mesmo, deve nutrir esperanças de que, no fim de um ano, tendo comido cento e cinco mil cento e vinte ostras gordas da praça de D. Pedro, que lhe custam um conto quatrocentos e um mil e seiscentos reis, pode gozar uma saúde mais ou menos galega.

Assim que o meu criado chegou com dezoito ostras por 240 reis, atadas na ponta de um lenço, à guisa de biscoitos de revalenta (
preparado de farinha de certos legumes e cereais), duvidei da gordura do testáceo (ostra), mas afaguei a charneira (união das duas partes da ostra) da concha bivalve, porque só de per si a concha tem virtudes medicinais cuja notícia eu envio aos risos jubilosos dos meus amigos. Tenho aqui a Ancora medicinal do grande médico Francisco da Fonseca Henriques, e nela a pag. 247, mihi, artigo Ostras, leio com estremeções (estremecimentos) de gáudio: As conchas das ostras queimadas são boas para as queixas das almorreimas (hemorróidas).

Isto é o que o Primeiro de Janeiro sabia de fundamento quando abençoou o inventor de remédio tão conveniente às doenças do tempo. Faz-se mister grande intuição médica de entranhas para diagnosticar hemorróidas universais na nação.

Das alegrias externas, passei a averiguar a gordura anunciada do testáceo hermafrodita.

Não me pareceu tão gorda a ostra espalmada na concha que pudesse disputar vantagens a um jantar do Ugolino de Dante na Torre de Piza.

Autorizado pelas ideias que formo de gordura, suspeito que o empresário destas ostras descobriu o segredo de repartir dez por cada casca; ou, negociando as cascas em Montijo, as encheu com amêijoas (
molúsculo comestível) do Cabedelo. É uma falsificação engenhosa que merece desculpa em quanto se conservar na família dos testáceos; mas desde que o único depositário das ostras portuenses começar a introduzir nas conchas das ostras pedacinhos de bucho de safio (peixe), carochas e grilos de salmoura, quer-nos parecer que uma dúzia destes covilhetes (pratinhos para doces) por oito vinténs não é barato, nem me garante a renovação do meu sangue depauperado.

Não obstante, o consumo de ostras no corrente mês, no Porto e arrabaldes, tocou uma cifra que seria fabulosa, se as consequências da irritação, previstas pelo Primeiro de Janeiro, se não manifestassem formidáveis, nos jeitos, nos ademanes (
trejeitos), nos esgares, nas crispações elétricas que faiscam dos olhos de toda a gente saturada das ostras do único depósito. Conhece-se que os insultos inferiores, que o pó da concha combate, se deslocaram, e evadiram a cúpula do edifício humano. Os sistemas nervosos, levados pela irritação a eletróforos (disco de resina que conduz eletricidade), tornaram-se engenhos luminosos que transcendem as mais fantásticas idealizações da pirotécnica. Esta galvanização de organismos extenuados é realmente um espetáculo que honra muito a ostra; mas que também pode vir a ser nocivo à saúde das almas.

Sei que temos recursos antiflogísticos (
eficaz contra inflamações) para combater as irritações, desde as cataplasmas de fécula até ás ventosas sarjadas; mas o emprego destes meios terapêuticos obriga as pessoas tímidas a andarem na rua com um alforje de drogas, como os antigos físicos, ministrando capilés (xarope adocicado) e orchatas (bebidas refrigerantes) a todos os sujeitos que denunciem instintos inflamados no último grau de irritação.

Em nome da moral pública, pedimos às pessoas irritáveis que se embebedarem em água de cevada, quando sentirem que a ostra se lhes insinua perfidamente nos seios do coração.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Camilo Castelo Branco. Noites de insomnia a quem não pôde dormir. Bibliotheca de Algibeira. Publicação Mensal n. 1 – janeiro. Porto; Braga: Ernesto Chardron, 1874.
Atualização do Português por J. Feldman.

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