sábado, 3 de junho de 2023

Artur de Azevedo (contos em versos) Juvenal

(contos cariocas)
 
 Chegado há pouco de Nápoles,
Mal completara treze anos
A flor dos italianos,
O formoso Juvenal.
Vendia as folhas diárias;
Cansava as perninhas nuas,
Gritando por essas ruas:
— Cruzeiro! Globo! Jornal! —

Coitado! Vivia o mísero
Como um cãozinho sem dono,
Ao mais completo abandono,
Ora aqui, ora acolá,
A dormir um sono plácido
À noite, nas horas mortas,
Sobre o batente das portas
Deitava-se ao Deus dará!

Da saúde a cor púrpura
Não lhe alterara o desgosto:
Juvenal tinha no rosto
Da infância o róseo matiz.
Era o inocente notívago,
No seu viver lastimoso,
Um miserável ditoso,
Um desgraçado feliz.

O fato não é poético,
Mas à verdade não fujo:
O pequeno andava sujo,
Sujo que metia dó;
Braços, pernas, rosto — ó lastima! —
Enegrecidos estavam,
E o pescoço lhe abraçavam
Negros colares de pó.

Dos seus fregueses no número
Havia um sor. conselheiro:
Ia levar-lhe o Cruzeiro
Cedinho, pela manhã.
No topo da escada nítida
Quem a folha recebia
E pagava, todo o dia,
Era a formosa Nhã-nhã.

Nhã-nhã, um anjo pulquérrimo!
Pálida, triste, franzina...
Era mais do que menina
E menos do que mulher;
Desabrochava-lhe esplêndida,
Entre douradas quimeras,
Flor de quinze primaveras
Em lábios de rosicler.

De vê-la o pobre alegrava-se,
E se acaso não a via,
No fundo da alma sentia
Misterioso torpor...
Um sentimento novíssimo
Entre o respeito e a vontade;
Muito mais do que amizade,
Muito menos do que amor.

Como não a visse um sábado,
Juvenal, todo inocência
Disse consigo: — Paciência;
Eu hei de vê-la amanhã —;
Mas que aflição! que suplício!...
Quantas mágoas e agonias!...
Passar assim vinte dias
Sem que ele visse Nhã-nhã!

Vinte dias! Louco, atônito,
No vigésimo primeiro
A escada do conselheiro
O pobrezinho subiu...
Estava na sala um féretro,
Por tochas alumiado,
Numa eça colocado
Que de surpreso o feriu.

Penetrou na sala, trêmulo,
Vexado como um patife,
E, ao chegar junto do esquife,
Lívido, parvo, estacou...
Nhã-nhã morrera! De lágrimas
Houve tamanha enxurrada,
Que ele de cara lavada
A vez primeira ficou.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Arthur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman

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