No princípio, querendo o Senhor estabelecer a ordem perfeita e firmar a harmonia entre as criaturas para que, a todo o tempo, não lhe chegassem queixas de oprimidos ou de descontentes, descia à terra de vez em quando e, ainda que tudo lhe parecesse bem, dissimulando em humildade a sua onipotência, escondia-se na folha da árvore, na pena do pássaro, na pétala da flor, na gota d'água, na estriga (filamentos de plantas), no grão de areia, na centelha do lume, no espírito do homem, no coração do animal e escutava, na intimidade, o que pensavam ou diziam e se achava razão na queixa, corrigia; se ouvia louvores, exultava.
O pássaro bendizia-o porque Ele lhe dera a asa e o canto; a flor agradecia-lhe o perfume, a árvore a folhagem, a serra o arvoredo, o rochedo a fonte e o musgo, a caverna a sombra e o silêncio, a mina os filões de ouro, o homem o pensamento, a fera a liberdade e o mar não se cangava (dominava) de desdobrar os vagalhões admirando-lhes as rendas brancas de espuma que se espalhavam nos areais.
A terra era imensa alegria. Todas as vozes, ainda as mais humildes, como a das formigas que carreavam achegas (materiais de construção) e a das abelhas que recolhiam o mel, eram de agradecimento a Deus. O próprio cardo hediondo mostrava-se ufano da flor que se abria nos seus galhos aleijados.
E Deus parecia contente com o que fizera e, retomando a forma divina, envolvendo-se na auréola refulgente, já se dispunha a regressar ao céu quando ouviu o murmúrio lamentoso que subia de um ribeiro.
Aproximou-se da margem, toda vestida de verdura florente e, inclinando-se sobre as águas passageiras, reteve-as perguntando-lhes porque se queixavam.
— Senhor, disse o ribeiro, a tudo destes liberdade: os pássaros voam por onde querem — se lhes apraz a montanha, batem asas, lá vão; se está em flor o bosque, ao bosque se dirigem. Passam as águias e as levandiscas (aves): são livres, têm toda a terra e todo o espaço; o homem erra à vontade por todas as devesas (pastagens), os animais percorrem as florestas, atravessam as campinas e os desertos, elegem a moradia que lhes convém; a estrela brilha no céu e fulge nas águas; a terra levanta-se em poeira e vai criar ilhas nas rochas do largo oceano e as vagas do mar, se desejam o sol, chegam-se às praias tépidas e douradas, quando querem o repouso recolhem-se nos extremos do mundo e dormem congeladas. Eu só não tenho o direito de deixar esta prisão estreita, nem de retroceder, o que fazem os pequeninos peixes que nascem no meu seio, mais livres do que eu porque podem ir e vir, zombando da correnteza. Sou um cativo. Quisera poder insinuar-me nos bosques, repousar um minuto á sombra das arvores, correr as areias claras do deserto, rolar pelas ribanceiras alfombradas (campo de relva), ser livre, enfim.
— É quanto queres?
— É tudo, Senhor.
— Assim seja.
E logo, desfazendo as ribanceiras que continham as águas do ribeiro, deixou-as o Senhor livres. Precipitadas, com murmúrio alegre, correram pelos campos, invadiram a floresta, alastraram o deserto, meteram-se pelas furnas. Mas a floresta reteve as que lhe chegaram e, juntando-as em lago, matou-as formando com as miseras, dantes tão límpidas e vivazes, o tenebroso e taciturno pântano. O deserto, de areias quentes, mal sentiu as águas erradias, logo as devorou, sôfrego. As furnas, cheias de pedras, em declives escabrosos, precipitaram-nas de queda em queda. De todos os lados, então, subiram lamentos doridos: no pântano, as vozes das águas agonizantes que se sentiam abafar pelas folhas mortas, pelos ramos secos, escabujando (agitando), não sobre o saibro claro em que, dantes, haviam corrido, mas sobre um pútrido lençol de lodo; no deserto, gritos das águas que sucumbiam devoradas pela sede eterna dos areais ressequidos; nas furnas o longo, angustioso gemido das águas arrojadas de pedrouço (montão de pedras) em pedrouço.
Foi, então, que o ribeiro arrependido clamou em desespero :
— Fazei-me, Senhor, voltar ao leito antigo, dai-me a doce prisão das minhas formosas margens. Que fui eu pedir, insensato que sou! Pobres das minhas águas! Dai-me, de novo, o antigo leito com as suas margens orladas de verdura; fazei-me tornar à minha prisão e que as minhas ondas continuem a brincar com as libélulas e com as borboletas. Ó o túmulo negro, o pântano triste...! Como me iludiu a floresta! Ó o deserto pérfido e os antros traidores! Juntai as águas dispersas que sofrem por minha culpa, que elas tornem ao leito enxuto. Fazei-me, de novo, o ribeiro de outrora.
E disse o Senhor :
— Foste o único descontente. Entre tantos rios e ribeiros só tu reclamaste contra a minha ordem pedindo liberdade. Dei-a. Eras límpido, tinhas beleza e tinhas frescura e todas as tuas águas corriam juntas, em alegre bando, por entre as sombras cheirosas. Quiseste entrar na floresta, como o homem — lá estás em pântano; quiseste percorrer o deserto como os leões, as areias devoram-te; quiseste voar como o pássaro, o sol absorve-te; quiseste descer a montanha, os penhascos precipitam-te e, querendo ser tudo nem ribeiro és mais, porque a agua que te resta é uma lágrima escassa que desaparecerá no estio, com o ardor do sol.
E, sem mais dizer, subiu o Senhor ao céu e lá ficou na campina o raso fio de água, resto do ribeiro ambicioso, cujos membros jaziam dispersos: —na floresta rebalsados (estagnados) em pântano, torvelinhando em cachões (borbotões) nas furnas, no deserto em lençol úmido que mal chegava para a sede voraz das areias adustas.
Desde então nunca mais as coisas se queixaram: serviu a todas de exemplo o caso do ribeiro descontente.
O pássaro bendizia-o porque Ele lhe dera a asa e o canto; a flor agradecia-lhe o perfume, a árvore a folhagem, a serra o arvoredo, o rochedo a fonte e o musgo, a caverna a sombra e o silêncio, a mina os filões de ouro, o homem o pensamento, a fera a liberdade e o mar não se cangava (dominava) de desdobrar os vagalhões admirando-lhes as rendas brancas de espuma que se espalhavam nos areais.
A terra era imensa alegria. Todas as vozes, ainda as mais humildes, como a das formigas que carreavam achegas (materiais de construção) e a das abelhas que recolhiam o mel, eram de agradecimento a Deus. O próprio cardo hediondo mostrava-se ufano da flor que se abria nos seus galhos aleijados.
E Deus parecia contente com o que fizera e, retomando a forma divina, envolvendo-se na auréola refulgente, já se dispunha a regressar ao céu quando ouviu o murmúrio lamentoso que subia de um ribeiro.
Aproximou-se da margem, toda vestida de verdura florente e, inclinando-se sobre as águas passageiras, reteve-as perguntando-lhes porque se queixavam.
— Senhor, disse o ribeiro, a tudo destes liberdade: os pássaros voam por onde querem — se lhes apraz a montanha, batem asas, lá vão; se está em flor o bosque, ao bosque se dirigem. Passam as águias e as levandiscas (aves): são livres, têm toda a terra e todo o espaço; o homem erra à vontade por todas as devesas (pastagens), os animais percorrem as florestas, atravessam as campinas e os desertos, elegem a moradia que lhes convém; a estrela brilha no céu e fulge nas águas; a terra levanta-se em poeira e vai criar ilhas nas rochas do largo oceano e as vagas do mar, se desejam o sol, chegam-se às praias tépidas e douradas, quando querem o repouso recolhem-se nos extremos do mundo e dormem congeladas. Eu só não tenho o direito de deixar esta prisão estreita, nem de retroceder, o que fazem os pequeninos peixes que nascem no meu seio, mais livres do que eu porque podem ir e vir, zombando da correnteza. Sou um cativo. Quisera poder insinuar-me nos bosques, repousar um minuto á sombra das arvores, correr as areias claras do deserto, rolar pelas ribanceiras alfombradas (campo de relva), ser livre, enfim.
— É quanto queres?
— É tudo, Senhor.
— Assim seja.
E logo, desfazendo as ribanceiras que continham as águas do ribeiro, deixou-as o Senhor livres. Precipitadas, com murmúrio alegre, correram pelos campos, invadiram a floresta, alastraram o deserto, meteram-se pelas furnas. Mas a floresta reteve as que lhe chegaram e, juntando-as em lago, matou-as formando com as miseras, dantes tão límpidas e vivazes, o tenebroso e taciturno pântano. O deserto, de areias quentes, mal sentiu as águas erradias, logo as devorou, sôfrego. As furnas, cheias de pedras, em declives escabrosos, precipitaram-nas de queda em queda. De todos os lados, então, subiram lamentos doridos: no pântano, as vozes das águas agonizantes que se sentiam abafar pelas folhas mortas, pelos ramos secos, escabujando (agitando), não sobre o saibro claro em que, dantes, haviam corrido, mas sobre um pútrido lençol de lodo; no deserto, gritos das águas que sucumbiam devoradas pela sede eterna dos areais ressequidos; nas furnas o longo, angustioso gemido das águas arrojadas de pedrouço (montão de pedras) em pedrouço.
Foi, então, que o ribeiro arrependido clamou em desespero :
— Fazei-me, Senhor, voltar ao leito antigo, dai-me a doce prisão das minhas formosas margens. Que fui eu pedir, insensato que sou! Pobres das minhas águas! Dai-me, de novo, o antigo leito com as suas margens orladas de verdura; fazei-me tornar à minha prisão e que as minhas ondas continuem a brincar com as libélulas e com as borboletas. Ó o túmulo negro, o pântano triste...! Como me iludiu a floresta! Ó o deserto pérfido e os antros traidores! Juntai as águas dispersas que sofrem por minha culpa, que elas tornem ao leito enxuto. Fazei-me, de novo, o ribeiro de outrora.
E disse o Senhor :
— Foste o único descontente. Entre tantos rios e ribeiros só tu reclamaste contra a minha ordem pedindo liberdade. Dei-a. Eras límpido, tinhas beleza e tinhas frescura e todas as tuas águas corriam juntas, em alegre bando, por entre as sombras cheirosas. Quiseste entrar na floresta, como o homem — lá estás em pântano; quiseste percorrer o deserto como os leões, as areias devoram-te; quiseste voar como o pássaro, o sol absorve-te; quiseste descer a montanha, os penhascos precipitam-te e, querendo ser tudo nem ribeiro és mais, porque a agua que te resta é uma lágrima escassa que desaparecerá no estio, com o ardor do sol.
E, sem mais dizer, subiu o Senhor ao céu e lá ficou na campina o raso fio de água, resto do ribeiro ambicioso, cujos membros jaziam dispersos: —na floresta rebalsados (estagnados) em pântano, torvelinhando em cachões (borbotões) nas furnas, no deserto em lençol úmido que mal chegava para a sede voraz das areias adustas.
Desde então nunca mais as coisas se queixaram: serviu a todas de exemplo o caso do ribeiro descontente.
Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Nenhum comentário:
Postar um comentário