O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite encostada à parede, agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a pretinha recolhida, então, por misericórdia, como alguém sem préstimo que se apanhasse piedosamente na rua.
Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedroiço (montão de pedras) do calçamento, e recebendo na carapinha (cabelo crespo e lanoso) descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a pretinha, medrosa:
- Onde está minha mãe?
As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava:
- Carlotinha?
A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma auréola e o mesmo burel (hábito), a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão!
- Meu São Benedito!... - gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto escuro.
E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal:
- Carlotinha, junta estas pedras.
A pretinha arrebanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus (seixos), como mandou o santo, sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para sempre.
De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:
- Carlota?
E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.
Diante da pretinha, que orava, de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro (monte) de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!
Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedroiço (montão de pedras) do calçamento, e recebendo na carapinha (cabelo crespo e lanoso) descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a pretinha, medrosa:
- Onde está minha mãe?
As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava:
- Carlotinha?
A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma auréola e o mesmo burel (hábito), a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão!
- Meu São Benedito!... - gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto escuro.
E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal:
- Carlotinha, junta estas pedras.
A pretinha arrebanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus (seixos), como mandou o santo, sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para sempre.
De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:
- Carlota?
E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.
Diante da pretinha, que orava, de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro (monte) de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
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