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domingo, 1 de março de 2020

Contos e Lendas do Mundo (França: O Pedaço de Galo)


Havia, uma vez, em La Chassoule, duas mulheres que eram irmãs - uma chamada Catherine e a outra, a mais jovem, Marie. O seu único bem consistia num galo que deviam compartilhar. A isso se resumia a herança deixada pelos finados pais, e cada uma ficou com metade.

- Comerei o meu pedaço - disse Catherine. - Servirá para cozinhar um excelente estufado, acompanhado por um copo de leite e, no final, castanhas assadas.

- Eu não - replicou Marie. - Guardarei o meu pedaço; que ele faça o que quiser com a ajuda de Deus e do bondoso São Martinho.

O conto prossegue revelando-nos que essa mulher, possuidora de bom coração, recebeu uma excelente recompensa pela sua louvável ação. Na verdade, o seu pedaço de galo soube mostrar-se grato, como a seguir veremos.

Um dia, quando esgaravatava, no quintal, em busca de uma toupeira, o pedaço de galo encontrou uma bolsa cheia de luíses de ouro, que se apressou a entregar à dona. Pelo caminho, porém, cruzou-se com um malvado, que lha arrancou do bico e guardou na algibeira.

- Devolve-me, ou temos luta - advertiu o pedaço de galo.

- Faz o que quiseres - retorquiu o ladrão. - Mas se pretendes lutar comigo, primeiro terás de me apanhar, pois sigo para casa, em Paris, e levo a bolsa.

- Pois bem, lutaremos em Paris.

O pedaço de galo foi comunicar a sua intenção à dona, que lhe perguntou:

- Para que queres ir, se não conseguirás nada?

- Quero a minha bolsa, e tê-la-ei - foi a resposta firme.

E partiu imediatamente. Pelo caminho, cruzou-se com o lobo, que lhe perguntou:

- Aonde vais, pedaço de galo?

- Aonde vou? Lutar em Paris. Acompanha-me, se queres.

- Que dizes, pobre diabo? Com as minhas quatro patas, chegaria muito antes que ti, pois andas ao pé-coxinho, por assim dizer.

- O primeiro a chegar espera o outro - desafiou o pedaço de galo.

O lobo tomou imediatamente a dianteira.

Um pouco mais tarde, o pedaço de galo cruzou-se com a raposa, a qual lhe fez a mesma pergunta e obteve idêntica resposta e convite.

- Não podes andar tão depressa como eu - lembrou a raposa. - Chegarei primeiro e esperarei por ti.

- Isso! O primeiro a chegar espera o outro.

A curta distância dali, o pedaço de galo encontrou um rio, que lhe perguntou:

- Aonde vais tão depressa, pedaço de galo?

- Lutar em Paris. Se queres vir, segue-me.

- Vou muito mais depressa do que tu.

- Como queiras. O primeiro a chegar espera o outro.

Mas, infelizmente, mais adiante, deparou-se uma montanha ao rio, que não pôde continuar.

- Vem para cima de mim, que eu levo-te - indicou o pedaço de galo.

E o rio assim fez.

Não tinham avançado muito, quando o pedaço de galo se cruzou com um enxame, cujas abelhas lhe perguntaram aonde ia.

- Lutar em Paris. Querem vir?

- Nem pensar! E muito longe. Desfalecíamos de cansaço pelo caminho.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-as.

E as abelhas assim fizeram.

O infortunado pedaço de galo teve de continuar a caminhar durante muito tempo. Faltava pouco para chegarem a Paris, quando, numa sementeira à beira da estrada, avistou a raposa e o lobo deitados e a roncar profundamente.

- Que fazem aqui, se iam chegar muito antes de mim? - perguntou-lhes, depois de os acordar com algumas bicadas.

- Caímos extenuados. Não podemos dar nem mais um passo.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-os.

Por fim, decorrido todo o dia, quando o Sol estava prestes a desaparecer no horizonte, chegaram a Paris. O pedaço de galo estava tão esgotado, que a sua única pata parecia dominada por um formigueiro. Dirigiu-se a casa do seu litigante, que lhe disse:

- Hoje já é tarde para lutarmos. Esperaremos que amanheça. Entretanto, jantarás conosco. Beberemos uma garrafa de vinho e oferecer-te-ei uma cama para passares a noite descansado.

- Muito bem - aprovou o pedaço de galo. - Dois bons litigantes podem brindar juntos.

Quando anoiteceu, o homem e a sua mulher, que queriam libertar-se do infortunado matando-o, mandaram-no dormir para o redil onde se encontravam as ovelhas, para que o esmagassem durante a noite. Com efeito, quando a porta foi fechada atrás dele, os animais começaram a investir.

- Lobo - ordenou o pedaço de galo. - Sai daí e come-as.

O lobo procedeu como lhe era indicado.

De manhã, o dono da casa surpreendeu-se ao descobrir todas as ovelhas mortas e que o único ser vivo que restava no redil era o pedaço de galo. Correu a informar a esposa, que replicou com malvadeza:

- Não te preocupes. Logo à noite, mandamo-lo dormir com as aves. As galinhas, perus e gansos hão de matá-lo a fogo lento, até que fique bem cozido.

Ele tratou de seguir o conselho. Quando o introduziram pelo teto da capoeira, todas as aves se lançaram sobre o pedaço de galo, com bicadas implacáveis.

Irritado com a indesejável recepção, ele indicou à raposa:

- Sai daí e mata todos estes imundos animais.

Foi dito e feito. Na manhã seguinte, quando a mulher se dirigiu ao galinheiro, ainda ficou mais surpreendida do que o marido na véspera. Rubra de cólera, procurou-o e determinou:

- Esta noite, fazemo-lo dormir no forno, que aqueceremos previamente. Garanto-te que amanhã o encontraremos assado.

Durante o jantar, o homem anunciou ao pedaço de galo:

- Também não podemos lutar, hoje. Estou muito triste por ter perdido os meus animais.

- Como queiras. Não tenho pressa. Posso esperar.

A noite, após o jantar, os donos da casa disseram ao hóspede:

- Decerto passaste frio, nas noites anteriores. Hoje, vais dormir no forno, onde estarás mais quente.

- Como queiram - respondeu ele. - Não sou exigente. Sinto-me bem em qualquer parte.

Quando se encontrou no forno e notou que a pata começava a chamuscar-se, ordenou ao rio:

- Sai daí e refresca-me a cama, que está demasiado quente.

O rio encheu o forno de água, que se comunicou igualmente aos fogareiros, tina, barril de lixívia, caldeira e grande parte da casa. Arroios caudalosos precipitaram-se para o exterior, e dir-se-ia que estivera a chover durante uma semana.

- Que vamos fazer com este patife? - perguntou a mulher, que tinha os pés imersos em água até meio das pernas.

- Temos de o pôr a dormir conosco, aos pés da cama - decidiu o marido. - Reduzimo-lo a papas com pontapés.

- Boa ideia. Tens alma de anjo. Assim, não nos poderá escapar.

Quando se encontraram os três na cama, o homem e a mulher começaram a mover os pés e a atingir o infortunado pedaço de galo. A princípio, este pensou que apenas o queriam desfrutar, fazendo-lhe cócegas. Mas quando principiou a sentir-se mal, ordenou às abelhas:

- Saiam daí e piquem-nos.

Só queria que vissem a prontidão com que o casal se levantou e começou a percorrer a casa e depois a rua, em camisa de dormir!

Por fim, as abelhas deixaram marido e mulher em paz. Ela, totalmente sufocada, bradou:

- Aquilo não é um galo, mas um papão! O diabo! O Anticristo! Entrega-lhe a bolsa para que nos deixe em paz. De contrário, ainda acaba por nos matar!

Por conseguinte, o dono da casa apressou-se a seguir o conselho. Restituiu a bolsa ao pedaço de galo, que se pôs de novo a caminho em direção a casa, a fim de entregar o dinheiro à dona. Com ele, compraram uma fazenda excelente e, daí em diante, viveram felizes a trabalhar as terras. O pedaço de galo passou o resto da vida sem problemas nem a ter de se preocupar com o dia de amanhã, pois a dona, agradecida, nunca permitiu que lhe faltasse trigo, milho ou cânhamo.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999. In Contos Tradicionais da França

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Contos e Lendas do Mundo (França: A Princesa do Bosque Encantado)

Era uma vez um rei, pai de três jovens príncipes, todos em idade de casar. Um dia, os nobres, reunidos na corte, perguntaram-lhe se já havia pensado nisso.

- Digam-me quem é a princesa mais bela e mais rica que conhecem e enviarei um deles para lhe pedir a mão - foi a resposta pronta.

Eles declararam que era a princesa do bosque encantado.

- Também não me ocorreria outra melhor, mas vai ser difícil. Muitos outros candidatos tentaram chegar até ela. Internaram-se no bosque, mas nenhum regressou.

- O príncipe tem de passar pela Pousada dos Quatro Gorriões, onde lhe explicarão como deve ultrapassar o primeiro obstáculo.

Depois de se apetrechar devidamente, o príncipe mais velho pôs-se imediatamente a caminho. Quando chegou à Pousada dos Quatro Gorriões, disseram-lhe que, para penetrar no bosque, tinha de matar a serpente de guarda à entrada.

Ao vê-lo aproximar, esta ergueu-se e ele tentou abatê-la, mas a espada limitou-se a roçá-la e ela indicou:

- Continua!

O príncipe embrenhou-se num bosque magnífico, cheio de árvores esplêndidas, povoado por aves de todas as cores e o solo coberto de flores odoríferas. Não tardou a sentir-se atraído por uma bela música de violinos e sanfonas, acompanhados por um coro. Jovens belos que dançavam convidaram-no a reunir-se a eles e ele não hesitou em aceitar.

Sucederam-se os dias sem que o rei tivesse notícias do filho mais velho. Por fim, o do meio anunciou-lhe:

- Também quero pôr-me a caminho.

Tampouco conseguiu matar a serpente, limitando-se a produzir-lhe pouco mais do que um arranhão com a espada, após o que ela indicou:

- Continua!

Quando chegou ao local onde se encontravam os dançarmos, o príncipe deteve-se, surpreendido com aquela música e coros de pessoas que o convidavam a reunir-se a eles. Reconheceu então o irmão e, tal como este, não seguiu em frente.

Como não chegavam notícias dos dois príncipes à corte do rei, o mais jovem comunicou ao pai:

- Agora, quero partir eu.

O monarca não desejava consentir, porém, o filho pegou na espada do avô, mandou-a abençoar e pôs-se a caminho.

Desta vez, a serpente recebeu um golpe mortal. Todavia, no mesmo instante, o príncipe viu que, no lugar do réptil, havia agora uma pequena e admirável raposa à qual faltava uma pata, como se lhe tivessem cortado.

- Vem comigo, príncipe - convidou-o. - Segue-me, mas procura não te deteres com os dançarinos.

Quando ouviu a música, ele voltou-se para o outro lado e prosseguiu o seu caminho, apesar de ter reconhecido as vozes dos seus irmãos, que o chamavam pelo nome. Quando os acordes deixaram de se ouvir, viu que a pequena e admirável raposa já só se apoiava às duas patas que lhe restavam. Apesar disso, ela indicou:

- Vem, vem, meu pequeno príncipe! Verás numerosos pássaros, cada um numa bela gaiola de ouro. Alguns cantam maravilhosamente bem e possuem plumagem deslumbrante. Não te detenhas junto deles. No entanto, quando vires uma gaiola com um pássaro de olhos tristes e penas eriçadas, apodera-te dela.

E, com efeito, o príncipe apoderou-se da gaiola do pássaro de penas eriçadas. No mesmo momento, deu-se conta de que a pequena e preciosa raposa caminhava sobre três patas, pois recuperara uma das perdidas.

- Agora, continua com a tua gaiola e, quando chegares ao palácio, apodera-te de uma mula que um gigante deixou aí a pastar - recomendou ela.

O gigante lamentou-se e rogou ao príncipe que não se apoderasse da mula, mas o jovem príncipe não cedeu aos seus pedidos insistentes, nem às ameaças. Desta vez, a pequena raposa, que recuperara a quarta pata, indicou-lhe:

- Ata a mula à portas do palácio, entra e pergunta ao rei se te concede a mão da filha.

O monarca respondeu que lhe concedia com o maior prazer. No mesmo momento, o pássaro de penas eriçadas transformou-se na princesa mais linda do mundo, a qual aceitou em se tornar esposa do príncipe e pediu-lhe que a levasse imediatamente à corte do pai. A pequena raposa, que aguardava à porta, recomendou ao príncipe:

- Montem ambos na mula e, se aproximar algum perigo, chamem-me com as seguintes palavras: "Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!"

Quando o príncipe passou junto dos dançarinos, os irmãos voltaram a reconhecê-lo. A noite, ele e a princesa desmontaram da mula para descansar. De repente, surgiram dois homens jovens, um dos quais se apoderou da princesa e o outro da mula. E enquanto um levava a princesa sequestrada, o outro - o seu irmão do meio - atirou o príncipe a um poço que havia muito perto dali.

O infortunado príncipe estava prestes a afogar-se, quando se lembrou da raposa e gritou:
- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

No instante imediato, ela apareceu no topo do poço e indicou:

- Agarra-te à minha cauda!

Quando ele se encontrava quase no cume, da cauda soltou-se e voltou a cair na água.

- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

Ela voltou a aparecer e desta vez conseguiu retirá-lo do poço. Em seguida, informou:

- Regressa à cidade onde vive o rei, teu pai. Pelo caminho, encontrarás uma ferradura que a mula perdeu. Guarda-a. Quando chegares à cidade, veste-te de ferreiro e, depois de todos os outros terem tentado ferrar a mula, oferece-te para o fazer. A seguir, dá-te a conhecer ao teu pai e explica-lhe que foste tu que conseguiste chegar até à princesa do bosque encantado.

Os ferreiros foram passando um após outro, mas nenhum conseguiu aproximar-se da mula, que não parava de desferir coices, na presença do rei, com os seus dois filhos. Finalmente, apresentou-se um jovem ferreiro, que se acercou dela, levantou-lhe a pata e puxou de uma ferradura, que se lhe ajustou perfeitamente.

O príncipe deu-se então a conhecer e, cheia de alegria, a princesa abraçou-o. O monarca determinou que o casamento se celebrasse imediatamente.

Jamais se tinha assistido a uma boda tão faustosa. E hoje, o príncipe e a sua princesa são esposos jovens e felizes e trouxeram ao mundo vários principezinhos.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999
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sexta-feira, 8 de março de 2013

Paul Verlaine (A Uma Mulher)

Pintura de Richard Johnson
França, 1844-1896

Pra vós são estes versos, pra consoladora
Graça dos olhos onde chora e ri um sonho
Doce, pra vossa alma pura e sempre boa,
Versos do fundo desta aflição opressora.

Porque, ai! o pesadelo hediondo que me assombra
Não dá tréguas e, louco, furioso, ciumento,
Multiplica-se como um cortejo de lobos
E enforca-se com o meu destino que ensanguenta!

Ah! sofro horrivelmente, ao ponto de o gemido
Desse primeiro homem expulso do Paraíso
Não passar de uma écloga à vista do meu!

E os cuidados que vós podeis ter são apenas
Andorinhas voando à tarde pelo céu
— Querida — num belo dia de um Setembro ameno.

Fonte:
http://www.citador.pt/poemas/a-uma-mulher-paul-verlaine

Charles Baudelaire (Perfume Exótico)

Pintura de Richard Johnson
França, 1821-1867

Quando eu a dormitar, num íntimo abandono,
Respiro o doce olor do teu colo abrasante,
Vejo desenrolar paisagem deslumbrante
Na auréola de luz d'um triste sol de outono;

Um éden terreal, uma indolente ilha
Com plantas tropicais e frutos saborosos;
Onde há homens gentis, fortes e vigorosos,
E mulheres cujo olhar honesto maravilha.

Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas;
Vejo um porto ideal cheio de caravelas
Vindas de percorrer países estrangeiros;

E o perfume sutil do verde tamarindo,
Que circula no ar e que eu vou exaurindo,
Vem juntar-se em minh'alma à voz dos marinheiros.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Jean Lorrain (Os Buracos da Máscara)


De Jean Lorrain (1855-1906), escritor maldito da Paris fim-de-século (homossexual e bebedor de éter — nos tempos em que a ostentação desses costumes era bem mais escandalosa do que hoje), este conto sobre as máscaras e sobre o nada tem uma força incomum de pesadelo, sobretudo porque o narrador consegue contemplar a desaparição de si mesmo.
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“Você quer ver", meu amigo De Jakels me dissera, "está bem, arranje uma fantasia de dominó e uma máscara, um dominó bem elegante de cetim preto, calce uns escarpins e, desta vez, meias de seda preta, e espere-me em casa na terça-feira. Irei pegá-lo por volta das dez e meia."

Na terça-feira seguinte, envolto nas pregas farfalhantes de uma longa cama-lha, com a máscara de veludo e barba de cetim presa atrás das orelhas, esperei meu amigo De Jakels na minha garçonnière da rua Taitbout, enquanto esquentava nas brasas da lareira meus pés arrepiados pelo contato irritante da seda; lá de fora, chegavam-me do bulevar, confusamente, o som das cometas e os gritos desesperados de uma noite de Carnaval.

Pensando bem, era um tanto estranha e até inquietante, a longo prazo aquela festa solitária de um homem mascarado afundado numa poltrona, no claro-escuro de um térreo atulhado de bibelôs, ensurdecido por tapeçarias, e com espelhos pendurados nas paredes, refletindo a chama alta de uma lamparina de querosene e o bruxulear de duas velas compridas muito brancas, esbeltas, como que funerárias; e De Jakels não chegava. Os gritos dos mascarados espocando ao longe agravavam mais ainda a hostilidade do silêncio, as duas velas queimavam tão retas que acabei tomado por um nervosismo e, de súbito apavorado com aquelas três luzes, levantei-me para ir soprar uma delas.

Nesse momento um dos cortinados da porta se abriu e De Jakels entrou.

De Jakels? Eu não tinha ouvido tocar a campainha nem alguém abrir. Como ele se introduzira no meu apartamento? Desde então pensei muito nisso; mas finalmente De Jakels ali estava, na minha frente. De Jakels? Bem, uma longa fantasia de dominó, uma grande forma escura, velada e mascarada como eu:

"Está pronto?", interrogou sua voz, que não reconheci. "Meu carro está aí, vamos embora."

Eu não tinha ouvido seu carro chegando nem parando defronte das minhas janelas.

Em que pesadelo, em que sombra e em que mistério eu começara a descer?

"É o capuz que está tapando os seus ouvidos, você não está acostumado com a máscara", pensava em voz alta De Jakels, que havia penetrado no meu silêncio: ou seja, naquela noite ele tinha o dom da adivinhação. E, levantando meu dominó, verificava a delicadeza de minhas meias de seda e de meus finos sapatos.

Esse gesto me serenou, era mesmo De Jakels e não outra pessoa que, de dentro daquele dominó, falava comigo; um outro não estaria sabendo da recomendação que De Jakels me fizera uma semana antes.

"Pois bem, vamos embora", a voz ordenava, e, num farfalhar de seda e de cetim sendo amassado, nos embrenhamos no corredor até a porta-cocheira, bastante parecidos, tive a impressão, com dois enormes morcegos, pelo esvoaçar de nossas camalhas subitamente levantadas acima de nossos dominós.

De onde vinha aquele vento forte? Aquele sopro do desconhecido? O clima naquela noite de terça-feira de Carnaval estava ao mesmo tempo tão úmido e tão ameno!

II.

Por onde andávamos agora, encolhidos no escuro daquele fiacre extraordinariamente silencioso, cujas rodas não faziam mais barulho do que os cascos do cavalo pelas ruas calçadas de madeira e pelo macadame das avenidas desertas?

Aonde íamos ao longo daqueles cais e daquelas margens desconhecidas mal iluminadas aqui e ali pela lanterna embaçada de um velho poste? Já havia muito tempo que tínhamos perdido de vista a fantástica silhueta da Notre-Dame delineando-se do outro lado do rio contra um céu de chumbo. Quai Saint-Michel, Quai de la Tournelle, e até mesmo Quai de Bercy, estávamos longe da avenida de l'Opéra, das ruas Drouot, Le Peletier e do centro. Não íamos nem sequer ao Bullier, onde os vícios vergonhosos costumam fazer suas assembléias, e, escapando de trás das máscaras, turbilhonam quase demoníacos e cinicamente às claras nas noites de Terça-Feira Gorda. E meu companheiro mantinha-se calado.

À beira daquele Sena taciturno e pálido, sob o arco de pontes cada vez mais raras, ao longo daqueles cais com grandes árvores mirradas de galhos afastados como os dedos da morte, invadia-me um medo insensato, um medo agravado pelo silêncio inexplicável de De Jakels; cheguei a duvidar de sua presença e a acreditar que estava ao lado de um desconhecido. A mão de meu amigo havia segurado a minha, e, ainda que mole e sem força, agarrava-a num tornilho que esmigalhava meus dedos... Essa mão de força e vontade imobilizava minhas palavras na garganta e sob seu aperto eu sentia se derreter e dissolver qualquer veleidade de revolta; agora rodávamos fora das fortificações, por estradas largas margeadas de cercas e de lúgubres vitrines de vendedores de vinho, biroscas havia muito tempo fechadas, nos arredores da cidade; andávamos à luz da lua que, finalmente, acabava de morder um bando de nuvens e parecia espalhar na ambígua paisagem de subúrbio uma camada crepitante de mercúrio e de sal; nesse momento tive a impressão de que as rodas do fiacre, deixando de ser fantasmas, gritavam entre as pedras do calçamento e o cascalho do caminho.

"É aqui", murmurou a voz de meu companheiro, "chegamos, podemos descer." 

E quando balbuciei um tímido: "Onde estamos?" 

"Barreira d'Italie, fora das fortificações, pegamos o caminho mais longo, mas o mais seguro, amanhã voltaremos por outro." 

Os cavalos pararam e De Jakels me largou para abrir a portinhola e me dar a mão.

III.

Uma ampla sala muito alta, de paredes caiadas, e nas janelas postigos internos hermeticamente fechados; em todo o comprimento da sala, mesas com copinhos de estanho presos por correntes, e, no fundo, três degraus acima, o balcão de zinco abarrotado de licores e garrafas com os rótulos coloridos dos lendários comerciantes de vinho; ali em cima o gás assobiando alto e claro. Em suma, a sala banal, se não mais espaçosa e mais limpa, de uma taverna das barreiras, cujos negócios iriam bem.

“Acima de tudo, nem uma palavra com quem quer que seja, não fale com ninguém e responda menos ainda; eles veriam que você não é dos deles e poderíamos passar por um mau momento. A mim, eles conhecem." E De Jakels me empurrou para a sala.

Algumas pessoas com máscaras ali bebiam, espalhadas. Quando entramos, o dono do estabelecimento se levantou e, pesadamente, arrastando os pés, veio até a nossa frente como para impedir nossa passagem. Sem uma palavra, De Jakels levantou a barra de nossos dois dominós e lhe mostrou nossos pés calçando finos escarpins!

Com certeza era o "abre-te sésamo" daquele estranho estabelecimento; o patrão voltou pesadamente para o seu balcão e percebi, coisa estranha, que também usava máscara, mas uma feita de papelão grosseiro burlescamente iluminada, imitando um rosto humano.

Os dois garçons, dois colossos peludos com as mangas de camisa arregaçadas até seus bíceps de boxeadores, circulavam calados, eles também invisíveis, com a mesma máscara horrorosa.

Os raros fantasiados, que bebiam sentados em volta das mesas, estavam com máscaras de cetim e veludo, com exceção de um enorme couraceiro fardado, espécie de brutamontes de maxilar pesado e bigode fulvo, sentado à mesa perto de dois elegantes dominós de seda malva, e que bebia de rosto descoberto, com os olhos azuis já vagos; nenhuma criatura que ali se encontrava tinha um rosto humano.

Num canto, dois grandalhões com blusas e bonés de veludo, máscaras de cetim preto, intrigavam por sua elegância suspeita; pois suas blusas eram de seda azul-clara e, de suas calças novas em folha, escapuliam dedos finos de mulher, envoltos em seda e dentro de escarpins. E, como que hipnotizado, eu ainda estaria contemplando aquele espetáculo se De Jakels não tivesse me arrastado para o fundo da sala, para uma porta envidraçada fechada por uma cortina vermelha. "Entrada do baile" estava escrito no alto dessa porta, em letras rebuscadas de um aprendiz de pintura; aliás, um vigia municipal montava guarda ali do lado. Era, quando nada, uma garantia, mas, ao passar, esbarrei na mão dele e percebi que era de cera, de cera assim como seu rosto rosa eriçado por bigodes postiços, e tive a horrível certeza de que a única criatura cuja presença iria me sossegar naquele local de mistério era um simples manequim.

IV.

Quantas horas fazia que eu perambulava sozinho no meio das máscaras silenciosas, naquele galpão abobadado como uma igreja? E era de fato uma igreja, uma igreja abandonada e secularizada, aquela vasta sala de janelas ogivais, a maioria delas muradas até o meio, entre suas colunas de arabescos pincelados com um reboco espesso amarelado, no qual se afundavam as flores esculpidas dos capitéis.

Estranho baile, onde não se dançava e onde não havia orquestra. De Jakels tinha desaparecido, eu estava sozinho, abandonado no meio daquela turba desconhecida.

Um lustre velho de ferro batido flamejava forte no alto, pendurado na abóbada, iluminando as lajes empoeiradas, algumas das quais, cheias de inscrições, talvez cobrissem túmulos. Ao fundo, no lugar onde certamente devia ter reinado o altar, havia, penduradas a meia altura na parede, manjedouras e grades, e nos cantos, pilhas de arneses e cabrestos esquecidos; o salão de baile era uma estrebaria.

Aqui e ali grandes espelhos de barbearias emoldurados de papel dourado refletiam um no outro o silencioso passeio das máscaras, bem, quer dizer, já não refletiam, pois agora todos estavam sentados, enfileirados e imóveis dos dois lados da igreja, enterrados até os ombros nas velhas estalas do coro.

Ali ficavam, mudos, sem um gesto, como que recolhidos no mistério debaixo de cogulas compridas de lã prateada, um prateado fosco sem reflexos; pois não havia mais dominós, nem blusas de seda azul, nem Arlequins nem Colombinas, nem fantasias grotescas. Mas todas aquelas máscaras eram parecidas, envoltas no mesmo traje de um verde-desbotado tirante ao amarelo-enxofre, com grandes mangas pretas, e todos encapuzados de verde-escuro, e no capuz de suas cogulas prateadas, os dois buracos para os olhos.

Davam a impressão de faces de leprosos, cor de giz, e suas mãos enluvadas de preto erguiam uma longa haste de lírios pretos com folhas verde-claras, e seus capuzes, como o de Dante, eram coroados de flores-de-lis pretas.

E todas aquelas cogulas se calavam numa imobilidade de fantasmas, e, acima de suas coroas fúnebres, a ogiva das janelas recortando-se claramente contra o céu branco do luar cobria-os como uma mitra de bispo.

Eu sentia minha razão soçobrar no pavor; o sobrenatural me embrulhava! A rigidez, o silêncio de todos aqueles seres mascarados. O que eram? Um minuto de incerteza a mais, seria a loucura! Eu já não agüentava, e, com a mão crispada de angústia, adiantei-me para uma das máscaras e levantei abruptamente sua cogula.

Horror! Não havia nada, nada. Meus olhos apavorados só encontraram o oco do capuz; a túnica e a camalha estavam vazias. Aquele ser que outrora viveu não era mais que sombra e nada.

Alucinado de terror, arranquei a túnica do mascarado que se sentava na estala vizinha, o capuz de veludo verde estava vazio, vazio o capuz das outras máscaras sentadas ao longo das paredes. Todos tinham faces de sombra, todos eram nada.

E o gás queimava mais forte, quase assobiando na sala alta; pelas vidraças quebradas das ogivas o luar cegava; então me invadiu um horror no meio de todos aqueles seres vazios, de aparências vãs, diante de todas aquelas máscaras vazias uma dúvida atroz confrangeu meu coração.

E se eu também fosse parecido com eles, se também tivesse deixado de existir, e se sob a minha máscara não houvesse nada, nada senão o nada! Precipitei-me para um dos espelhos. Uma criatura de sonho ergueu-se diante de mim, encapuzada de verde-escuro, com uma máscara de prata, coroada de flores-de-lis pretas.

E aquela máscara era eu, pois reconheci meu gesto na mão que levantava o capuz e, boquiaberto de pavor, dei um grito imenso, pois não havia nada sob a máscara de tela prateada, nada no oval do capuz, a não ser o buraco de tecido arredondado no espaço vazio. Eu estava morto e eu...

"E você bebeu éter novamente", repreendia em meu ouvido a voz de De Jakels.

"Curiosa idéia para enganar o tédio enquanto me esperava." Eu estava estirado no meio de meu quarto, meu corpo arrastado para o tapete, a cabeça encostada numa poltrona, e De Jakels, de traje a rigor debaixo de uma túnica de monge, dava ordens febris a meu mordomo horrorizado; em cima da lareira as duas velas acesas, chegando ao fim, estalavam nas arandelas e me acordaram... Já era tempo.

Fonte:
CALVINO, Ítalo (organizador). Contos fantásticos do século XIX : o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

sábado, 12 de junho de 2010

Folclore Frances (O Galo e o Rei)



Era uma vez uma mulher que tinha um galo. Ela era tão pobre que não pod¡a nem comprar uma galinha para fazer companhia a ele. Mas tratava multo bem o galo, preferindo passar fome a deixar de alimentá-lo.

Certo d¡a, quando ciscava pela rua, o galo achou uma bolsa repleta de moedas de ouro. "vou levar desse tesouro uma querida parte", pensou.

Mas, no caminho de casa, encontrou o re¡, que, ao ver a bolsa no seu bico, ordenou ao pajem:

- Apanhe já aquele galo para mim.

O pajem rapidamente pegou o galo e lhe arrancou a bolsa do bico, entregando-a ao re¡. O galo, furioso, disse consigo mesmo: "Amanhã irei até o palácio real. Tenho que recuperar a bolsa com o tesouro! Custe o que custar!".

No caminho para o palácio, o galo encontrou a raposa, que, ao saber do acontecido, se ofereceu para acompanhá-lo. Mas, pouco depois, a raposa sentiu-se cansada e o galo se propôs a carregá-la sob a asa.

O galo e a raposa iam pela estrada quando encontraram uma abelha.

- Aonde vão vocês? - ela quis saber.

Quando o galo e a raposa lhe contaram sobre a bolsa roubada pelo re¡, a abelha decidiu acompanhá-los. Mas logo se cansou de voar e pediu ao galo que a levasse debaixo de sua asa. Assim, o galo, a raposa e a abelha prosseguiram viagem até que chegaram a um riacho.

- Aonde vão vocês? - quis saber o riacho.

Quando lhe contaram sobre a bolsa roubada pelo re¡, o riacho decidiu acompanhá-los. No meio do caminho ele se cansou, e o galo o guardou debaixo da asa. Finalmente chegaram ao palácio.

- Vim recuperar a bolsa que Sua Majestade tirou de mim! declarou o galo.

- Amanhã eu a devolvo - disse o re¡, e mandou-o para o galinheiro.

Acontece que as galinhas do re¡ tinham recebido ordens para matá-lo a bicadas. Avançaram contra o pobre galo, mas ele pediu:

- Socorro, raposa!
A raposa saiu de sob a asa do galo e rapidamente comeu as galinhas.

Quando o re¡ viu que o galo tinha sobrevivido, ficou furioso e investiu contra ele para matá-lo com as próprias mãos. Mas o galo pediu:

- Socorro, dona abelha!

A abelha saiu picando o re¡, que, chamando seus lacaios, gritou:

- Matem esse galo!

E o galo pediu:

- Socorro, meu amigo riacho!

O riacho saiu de sob a asa do galo, inundou o palácio e salvou a vida dele.

O re¡ percebeu que havia perdido a parada. Devolveu a bolsa ao galo e o libertou.

O galo correu para sua dona e entregou-lhe o tesouro. E foi assim que uma mulher tão pobre, que não pod¡a nem comprar uma galinha, ficou multo rica com a ajuda de um galo que venceu um re¡ com a ajuda de uma abelha, uma raposa e um riacho!

Fontes:
http://www.esnips.com
Imagens = Galo: http://lucianotasso.blogspot.com e
Rei: http://contos.poesias.nom.br