domingo, 1 de março de 2020

Contos e Lendas do Mundo (França: O Pedaço de Galo)


Havia, uma vez, em La Chassoule, duas mulheres que eram irmãs - uma chamada Catherine e a outra, a mais jovem, Marie. O seu único bem consistia num galo que deviam compartilhar. A isso se resumia a herança deixada pelos finados pais, e cada uma ficou com metade.

- Comerei o meu pedaço - disse Catherine. - Servirá para cozinhar um excelente estufado, acompanhado por um copo de leite e, no final, castanhas assadas.

- Eu não - replicou Marie. - Guardarei o meu pedaço; que ele faça o que quiser com a ajuda de Deus e do bondoso São Martinho.

O conto prossegue revelando-nos que essa mulher, possuidora de bom coração, recebeu uma excelente recompensa pela sua louvável ação. Na verdade, o seu pedaço de galo soube mostrar-se grato, como a seguir veremos.

Um dia, quando esgaravatava, no quintal, em busca de uma toupeira, o pedaço de galo encontrou uma bolsa cheia de luíses de ouro, que se apressou a entregar à dona. Pelo caminho, porém, cruzou-se com um malvado, que lha arrancou do bico e guardou na algibeira.

- Devolve-me, ou temos luta - advertiu o pedaço de galo.

- Faz o que quiseres - retorquiu o ladrão. - Mas se pretendes lutar comigo, primeiro terás de me apanhar, pois sigo para casa, em Paris, e levo a bolsa.

- Pois bem, lutaremos em Paris.

O pedaço de galo foi comunicar a sua intenção à dona, que lhe perguntou:

- Para que queres ir, se não conseguirás nada?

- Quero a minha bolsa, e tê-la-ei - foi a resposta firme.

E partiu imediatamente. Pelo caminho, cruzou-se com o lobo, que lhe perguntou:

- Aonde vais, pedaço de galo?

- Aonde vou? Lutar em Paris. Acompanha-me, se queres.

- Que dizes, pobre diabo? Com as minhas quatro patas, chegaria muito antes que ti, pois andas ao pé-coxinho, por assim dizer.

- O primeiro a chegar espera o outro - desafiou o pedaço de galo.

O lobo tomou imediatamente a dianteira.

Um pouco mais tarde, o pedaço de galo cruzou-se com a raposa, a qual lhe fez a mesma pergunta e obteve idêntica resposta e convite.

- Não podes andar tão depressa como eu - lembrou a raposa. - Chegarei primeiro e esperarei por ti.

- Isso! O primeiro a chegar espera o outro.

A curta distância dali, o pedaço de galo encontrou um rio, que lhe perguntou:

- Aonde vais tão depressa, pedaço de galo?

- Lutar em Paris. Se queres vir, segue-me.

- Vou muito mais depressa do que tu.

- Como queiras. O primeiro a chegar espera o outro.

Mas, infelizmente, mais adiante, deparou-se uma montanha ao rio, que não pôde continuar.

- Vem para cima de mim, que eu levo-te - indicou o pedaço de galo.

E o rio assim fez.

Não tinham avançado muito, quando o pedaço de galo se cruzou com um enxame, cujas abelhas lhe perguntaram aonde ia.

- Lutar em Paris. Querem vir?

- Nem pensar! E muito longe. Desfalecíamos de cansaço pelo caminho.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-as.

E as abelhas assim fizeram.

O infortunado pedaço de galo teve de continuar a caminhar durante muito tempo. Faltava pouco para chegarem a Paris, quando, numa sementeira à beira da estrada, avistou a raposa e o lobo deitados e a roncar profundamente.

- Que fazem aqui, se iam chegar muito antes de mim? - perguntou-lhes, depois de os acordar com algumas bicadas.

- Caímos extenuados. Não podemos dar nem mais um passo.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-os.

Por fim, decorrido todo o dia, quando o Sol estava prestes a desaparecer no horizonte, chegaram a Paris. O pedaço de galo estava tão esgotado, que a sua única pata parecia dominada por um formigueiro. Dirigiu-se a casa do seu litigante, que lhe disse:

- Hoje já é tarde para lutarmos. Esperaremos que amanheça. Entretanto, jantarás conosco. Beberemos uma garrafa de vinho e oferecer-te-ei uma cama para passares a noite descansado.

- Muito bem - aprovou o pedaço de galo. - Dois bons litigantes podem brindar juntos.

Quando anoiteceu, o homem e a sua mulher, que queriam libertar-se do infortunado matando-o, mandaram-no dormir para o redil onde se encontravam as ovelhas, para que o esmagassem durante a noite. Com efeito, quando a porta foi fechada atrás dele, os animais começaram a investir.

- Lobo - ordenou o pedaço de galo. - Sai daí e come-as.

O lobo procedeu como lhe era indicado.

De manhã, o dono da casa surpreendeu-se ao descobrir todas as ovelhas mortas e que o único ser vivo que restava no redil era o pedaço de galo. Correu a informar a esposa, que replicou com malvadeza:

- Não te preocupes. Logo à noite, mandamo-lo dormir com as aves. As galinhas, perus e gansos hão de matá-lo a fogo lento, até que fique bem cozido.

Ele tratou de seguir o conselho. Quando o introduziram pelo teto da capoeira, todas as aves se lançaram sobre o pedaço de galo, com bicadas implacáveis.

Irritado com a indesejável recepção, ele indicou à raposa:

- Sai daí e mata todos estes imundos animais.

Foi dito e feito. Na manhã seguinte, quando a mulher se dirigiu ao galinheiro, ainda ficou mais surpreendida do que o marido na véspera. Rubra de cólera, procurou-o e determinou:

- Esta noite, fazemo-lo dormir no forno, que aqueceremos previamente. Garanto-te que amanhã o encontraremos assado.

Durante o jantar, o homem anunciou ao pedaço de galo:

- Também não podemos lutar, hoje. Estou muito triste por ter perdido os meus animais.

- Como queiras. Não tenho pressa. Posso esperar.

A noite, após o jantar, os donos da casa disseram ao hóspede:

- Decerto passaste frio, nas noites anteriores. Hoje, vais dormir no forno, onde estarás mais quente.

- Como queiram - respondeu ele. - Não sou exigente. Sinto-me bem em qualquer parte.

Quando se encontrou no forno e notou que a pata começava a chamuscar-se, ordenou ao rio:

- Sai daí e refresca-me a cama, que está demasiado quente.

O rio encheu o forno de água, que se comunicou igualmente aos fogareiros, tina, barril de lixívia, caldeira e grande parte da casa. Arroios caudalosos precipitaram-se para o exterior, e dir-se-ia que estivera a chover durante uma semana.

- Que vamos fazer com este patife? - perguntou a mulher, que tinha os pés imersos em água até meio das pernas.

- Temos de o pôr a dormir conosco, aos pés da cama - decidiu o marido. - Reduzimo-lo a papas com pontapés.

- Boa ideia. Tens alma de anjo. Assim, não nos poderá escapar.

Quando se encontraram os três na cama, o homem e a mulher começaram a mover os pés e a atingir o infortunado pedaço de galo. A princípio, este pensou que apenas o queriam desfrutar, fazendo-lhe cócegas. Mas quando principiou a sentir-se mal, ordenou às abelhas:

- Saiam daí e piquem-nos.

Só queria que vissem a prontidão com que o casal se levantou e começou a percorrer a casa e depois a rua, em camisa de dormir!

Por fim, as abelhas deixaram marido e mulher em paz. Ela, totalmente sufocada, bradou:

- Aquilo não é um galo, mas um papão! O diabo! O Anticristo! Entrega-lhe a bolsa para que nos deixe em paz. De contrário, ainda acaba por nos matar!

Por conseguinte, o dono da casa apressou-se a seguir o conselho. Restituiu a bolsa ao pedaço de galo, que se pôs de novo a caminho em direção a casa, a fim de entregar o dinheiro à dona. Com ele, compraram uma fazenda excelente e, daí em diante, viveram felizes a trabalhar as terras. O pedaço de galo passou o resto da vida sem problemas nem a ter de se preocupar com o dia de amanhã, pois a dona, agradecida, nunca permitiu que lhe faltasse trigo, milho ou cânhamo.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999. In Contos Tradicionais da França

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