Por que o manuscrito de Yellah continua inédito? Não me refiro ao meu livro, mas ao documento deixado pelo astrônomo. Não ando à cata de glórias literárias, que certamente o livro me dará, nem sou um explorador do fantástico. Ora, o manuscrito se contém em umas trinta laudas apenas. Eu o teria publicado em jornais e revistas, sem uma só palavra a mais, não fossem as recusas dos editores. Foi esta minha primeira intenção, foi este meu primeiro ímpeto.
A princípio acreditei que as recusas de publicação do estranho escrito se devessem ao desinteresse da imprensa pelo assunto. Dias depois, porém, rememorando os fatos, lembrei-me do entusiasmo do primeiro editor ao ler o texto yellahiano, a emoção com que me agradeceu o fornecer-lhe matéria tão interessante. Prometeu-me boa recompensa, a tiragem do jornal sairia dobrada, podíamos preparar outros textos, explorar o filão. Eu topava a parada? Sim, logicamente. Apareça mais tarde para uma entrevista. E bico calado, nada de procurar outros jornais. Deixasse logo cópia do manuscrito com ele.
Mais tarde, já munido de outras informações para a entrevista do século, custei a acreditar estivesse diante do mesmo editor. Desculpasse, mas o assalto ao banco, no fim da tarde, fato inesperado, não estava sabendo? Havia tomado o último espaço da edição. Ficava para outra oportunidade, ou, então, procurasse fulano, amigão do peito, do jornal tal.
De déu em déu, acabei por desconfiar de outras razões para tantas evasivas tão semelhantes entre si. Ora, mal eu me apresentava, já o sujeito, sem sequer ler o manuscrito, pedia desculpas e me deixava a ver navios.
Na minha ingenuidade, imaginei o mais lógico motivo para o veto dos jornais à publicação do documento: o público não iria entender neres de neres do texto, se publicado sem uma nota explicativa, uma advertência, um preâmbulo esclarecedor. E pus-me a rabiscar um perfil de Yellah, noções elementares de Astronomia, rápidos passeios pela História, sínteses das teorias dos sonhos, e cada vez me perdia mais nos corredores da informação e da suposição. Súbito, havia escrito um longo texto sobre o manuscrito. Que é meu livro recusado pelas editoras.
Minha luta pela sua publicação pode ser tida como a reedição da que travei pela divulgação do escrito de Yellah. Assim, deixei o primeiro editor cheio de esperanças. Ora, eu lhe fiz uma síntese do livro e o assunto lhe pareceu fadado a grande sucesso de público. Falou-me numa primeira edição de cinquenta mil exemplares. Não autorizava logo a publicação para não fugir à política da casa. Referia-se à leitura dos originais pelo conselho editorial. De qualquer forma, voltasse dali a três dias, para a assinatura do contrato. E deu-me palmadinhas às costas, ofereceu-me café, abraçou-me.
No dia aprazado, lá estava eu de novo diante do velhinho. Não o levasse a mal, compreendesse sua posição, não podia ser contra a opinião do conselho. E voltei às correrias e aos desenganos.
Para uns, todo o meu livro, inclusive o texto de Yellah nele inserido, é pura ficção e, por só publicarem obras científicas ou de informações, se me editassem, estariam enganando o público. Para as editoras de obras de ficção, O Manuscrito de Yellah não passa de um amontoado de pseudo-informações. Existem aquelas, porém, que publicam de tudo. E estas têm também suas razões: não investem em autores desconhecidos, andam às voltas com crises financeiras, seus cronogramas editoriais já estão elaborados para os próximos cinco anos.
Decepcionado com a nossa indústria editorial, fiz das tripas coração e fui bater às portas de editores estrangeiros. E até lá minha má fama já chegou. Ou não se trata disso?
O tal manuscrito que ninguém ousa publicar e mais um telescópio foram encontrados por um camponês de Solenhofen junto às cinzas de Yellah. Adquiri-os por uma ninharia.
Em fins de 1945, muitos camponeses morreram fuzilados na Alemanha. Apesar da rendição dos governos fascistas, atrocidades como estas davam prosseguimento à matança iniciada nos anos anteriores. Famílias inteiras desapareciam ao fogo do desespero nazista. Só por extremos atos de heroísmo, um ou outro conseguiam escapar à morte. Como Elizabeth Stengel. Grávida de oito meses, correu quilômetros da fúria de seus compatriotas ensandecidos. Para trás deixou os cadáveres do marido e dos filhos. E alcançou a França, onde deu à luz um menino, que batizou com o nome de Yellah. Por que não de Peter, Thomas, Karl? Ou de Pierre, Charles, Paul? Nem alemão nem francês.
Não durou muito Elizabeth e a criança terminou num asilo para menores abandonados.
Em 1960, o jovem Yellah sonhou com a própria morte. No sonho, estávamos em 1970 e milhares de monstros alados saltavam de um cometa para a Terra e massacravam a humanidade.
Daí por diante, passou a interessar-se por astronomia e fenomenologia. Descobriu as inexplicáveis coincidências existentes entre Halley e ele mesmo. Seu nome, escrito de trás para a frente, era o do astrônomo inglês. Sua mãe havia nascido em 1910, ano da aparição do cometa de Halley. Ela, sim, poderia ter se chamado Yellah.
Em 1682, aos 26 anos de idade, Edmund Halley viu o cometa que recebeu o seu nome. Em 1970, ano da passagem do cometa de seu sonho, Yellah estaria também com 26 anos de vida.
O cometa de Halley reapareceu em 1758, ou seja, 16 anos após sua morte. Em 1986, reaparecerá o cometa, ou seja, 16 anos após a morte de Yellah.
Segundo o inquieto filho de Elizabeth Stengel, no dia 30 de janeiro de 1970, milhões de seres humanos sonharam com a invasão da Terra pelos superarqueoptérix. Estes monstros alados habitavam o cometa de seu sonho apocalíptico há milênios, quando fugiram da Terra. De volta ao berço natal, devoravam os homens, tomando-lhes o lugar de reis da criação.
Para Yellah, o sonho coletivo de 1970 se concretizará em 1986.
Quem se lembrará de um sonho comum dos anos 1970? Nos apontamentos dos psicanalistas talvez se encontrem versões destes sonhos. Ou todos eles preferiram queimar seus cadernos, a terem de depor como inquisidores?
Na opinião do prodigioso alemãozinho, o sonho está para a realidade como a ficção está para o leitor. Um romance, consoante ele, é um ser de palavras. Cada leitor, no entanto, o lê à sua maneira, de acordo com sua capacidade. Uma realidade em si mesma é imutável, embora os homens a vejam em sonho à maneira de cada um. E vai mais longe: o sonho é sempre mais grandioso do que a realidade, da mesma forma que um romance se enriquece à medida que é lido.
Pela teoria de Yellah, para ele verdade irrefutável, enquanto os homens sonhavam, os superarqueoptérix rondavam a Terra.
Para se defender das acusações de charlatanice filosófica ou científica, o pequeno sábio fundamenta sua afirmação assim: os milhões de seres humanos que não dormiam e, portanto, não sonhavam no momento da passagem do cometa, foram ocasionalmente hipnotizados. E também sonharam. Em hipnose ou sono natural, a humanidade estaria desarmada para qualquer resistência.
O tempo de duração da hipnose coletiva estava previsto para algumas horas, suficientes para o ataque a todos os rincões do planeta. De fato, porém, não passou de segundos. Desentendimento entre os invasores? Arrependimento? Decisão de última hora de adiamento do golpe? Na verdade, segundos após a aspersão do narcotizante sobre a Terra, os estranhos nos bombardearam com outra substância de efeito neutralizante.
Yellah teria sido o único ser humano a ver o cometa pelo telescópio e ao mesmo tempo em estado de hipnose ou sonambulismo. Escrevia a parte final e mais importante de sua pequena obra – justamente a narração do aparecimento do cometa e do ataque dos monstros – quando o raio da morte o fulminou.
Ao texto de Yellah não cabe a mim nem a ninguém chamar de ficção. E se for, por que esse medo deles? Ao manuscrito não compete a ninguém indicar seu autor. Se eu, sou quem? Se Yellah, ele existiu?
Fonte:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986.
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