sexta-feira, 6 de março de 2020

Chico Anysio (Impossibilidade)


— Quer ir ao circo?

O filho pula de alegria. Achou que o pai simplesmente adivinhava seu desejo.

— Peça à sua mãe pra lhe vestir.

A mãe enfeita o menino. Ele põe uma roupa mais à vontade.

— Vamos na geral. Circo é bom é na geral.

O menino concorda.

Saem de mãos dadas. Gérson tem sete anos. Há sete espera a irmã que lhe prometem. O ônibus está vazio. Podem escolher lugar. O menino muda de banco seguidamente. De uma janela para outra, atrás, na frente, perturba o motorista.

— Fica bonzinho aí.

— Vem pra cá, Gérson.

O garoto senta ao seu lado. Está inquieto, excitado pelo circo que o espera e que ele tanto esperava.

— Tem fera?

— Não sei. Lá a gente vê.

— Tem trapézio?

— Deve ter, deve ter...

O menino levanta, anda pelo corredor esfregando a mão no encosto dos bancos vazios. Esbarra nas costas do motorista.

— Fica quieto, oh garoto!...

— Vem cá, Gérson, não atrapalha o moço.

Ele vai, mas não consegue ficar sentado mais do que cinco minutos. Já enfia a cabeça pelas janelas, desliza no corredor, mexe na caixa de colocar as fichas.

— Oh, garoto chato.

O motorista reclama e bate na mão do menino. O garoto chora e olha o pai.

— Não bate no meu filho, não.

O pai e o filho são, agora, os únicos passageiros. O mo­torista diz um palavrão, em resposta à advertência. O menino olha o pai. É sua única defesa. Ele sabe que o menino sabe disto. O motorista, um crioulo forte, não se arrepende do tapa que deu na mão do menino.

— Vê se fica quieto aí.

O menino já não olha o pai. Limita-se a sentar no banco da frente, humilhado, cerceado, proibido.

Ele levanta e caminha inseguro pelo corredor. Senta junto do filho e lhe segura a mão, estreitando-a, forte, entre suas mãos suadas. Percebe, nas costas da mão do menino, a marca dos dedos. O motorista o olha pelo retrovisor. Ele percebe um sorriso no rosto do crioulo.

— Covardia, bater no menino.

— Não aporrinha!

O menino vira o rosto, fazendo de conta que espia a cal­çada. Nada percebe, porém, da paisagem que vai passando. Ele nota que o filho chora.

— Deixa, filho... educação não é todo mundo que tem. Cavalo é cavalo.

O motorista breca e se levanta. Tem os olhos avermelhados pela noite mal dormida, tem a alma moída pela briga de ontem com sua negra amante.

— Quem é cavalo?

O menino afasta-se para o canto do banco. Está tremendo. Ele levanta e se põe à frente do crioulo, menor e mais magro.

— É isso mesmo.

O tapa o derruba no chão do corredor. Ele se levanta com a ajuda do filho. Descem sem pagar. O motorista não se importa. Há coisas mais sérias com que se preocupar. Da calçada ele vê o ônibus sumir, dobrando na Avenida Suburbana. Tem sangue saindo do nariz. Enxuga com a manga da camisa. Quer coragem para olhar o filho. Andam sem saber para onde.

— Vamos pra casa, pai.

— E o circo?   

— No outro domingo a gente vai. Eu hoje nem estava com muita vontade...

Os dois choram enquanto cruzam a rua para esperar o ônibus de volta. Ele sabe que precisa falar, mas não consegue imaginar que frase deva dizer. Limita-se a pousar a mão no ombro do filho. Sente que um dente está abalado e que o nariz talvez tenha tido uma fratura. Resiste à dor física. Está chorando por causa de uma dor diferente. Pior. Pior. Muito pior.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

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