— Quer ir ao circo?
O filho pula de alegria. Achou que o pai simplesmente adivinhava seu desejo.
— Peça à sua mãe pra lhe vestir.
A mãe enfeita o menino. Ele põe uma roupa mais à vontade.
— Vamos na geral. Circo é bom é na geral.
O menino concorda.
Saem de mãos dadas. Gérson tem sete anos. Há sete espera a irmã que lhe prometem. O ônibus está vazio. Podem escolher lugar. O menino muda de banco seguidamente. De uma janela para outra, atrás, na frente, perturba o motorista.
— Fica bonzinho aí.
— Vem pra cá, Gérson.
O garoto senta ao seu lado. Está inquieto, excitado pelo circo que o espera e que ele tanto esperava.
— Tem fera?
— Não sei. Lá a gente vê.
— Tem trapézio?
— Deve ter, deve ter...
O menino levanta, anda pelo corredor esfregando a mão no encosto dos bancos vazios. Esbarra nas costas do motorista.
— Fica quieto, oh garoto!...
— Vem cá, Gérson, não atrapalha o moço.
Ele vai, mas não consegue ficar sentado mais do que cinco minutos. Já enfia a cabeça pelas janelas, desliza no corredor, mexe na caixa de colocar as fichas.
— Oh, garoto chato.
O motorista reclama e bate na mão do menino. O garoto chora e olha o pai.
— Não bate no meu filho, não.
O pai e o filho são, agora, os únicos passageiros. O motorista diz um palavrão, em resposta à advertência. O menino olha o pai. É sua única defesa. Ele sabe que o menino sabe disto. O motorista, um crioulo forte, não se arrepende do tapa que deu na mão do menino.
— Vê se fica quieto aí.
O menino já não olha o pai. Limita-se a sentar no banco da frente, humilhado, cerceado, proibido.
Ele levanta e caminha inseguro pelo corredor. Senta junto do filho e lhe segura a mão, estreitando-a, forte, entre suas mãos suadas. Percebe, nas costas da mão do menino, a marca dos dedos. O motorista o olha pelo retrovisor. Ele percebe um sorriso no rosto do crioulo.
— Covardia, bater no menino.
— Não aporrinha!
O menino vira o rosto, fazendo de conta que espia a calçada. Nada percebe, porém, da paisagem que vai passando. Ele nota que o filho chora.
— Deixa, filho... educação não é todo mundo que tem. Cavalo é cavalo.
O motorista breca e se levanta. Tem os olhos avermelhados pela noite mal dormida, tem a alma moída pela briga de ontem com sua negra amante.
— Quem é cavalo?
O menino afasta-se para o canto do banco. Está tremendo. Ele levanta e se põe à frente do crioulo, menor e mais magro.
— É isso mesmo.
O tapa o derruba no chão do corredor. Ele se levanta com a ajuda do filho. Descem sem pagar. O motorista não se importa. Há coisas mais sérias com que se preocupar. Da calçada ele vê o ônibus sumir, dobrando na Avenida Suburbana. Tem sangue saindo do nariz. Enxuga com a manga da camisa. Quer coragem para olhar o filho. Andam sem saber para onde.
— Vamos pra casa, pai.
— E o circo?
— No outro domingo a gente vai. Eu hoje nem estava com muita vontade...
Os dois choram enquanto cruzam a rua para esperar o ônibus de volta. Ele sabe que precisa falar, mas não consegue imaginar que frase deva dizer. Limita-se a pousar a mão no ombro do filho. Sente que um dente está abalado e que o nariz talvez tenha tido uma fratura. Resiste à dor física. Está chorando por causa de uma dor diferente. Pior. Pior. Muito pior.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.
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