domingo, 1 de março de 2020

Rachel de Queiroz (Caramuru)

    

É um homem que gosta de conversar, aquele. Sempre que tem oportunidade defende a teoria de que existem homens em quase todos os planetas e seus satélites, homens assim como nós, diferentes talvez na estatura e na cor da pele, mas essencialmente homens — nem humanóides ele concede.

Na Lua vivem — ou pelo menos andam — homens; em Vênus vivem homens, de evolução moral superior à nossa; em Marte vivem homens — brutos, cruéis, porque Marte é um mundo de provação. Em Júpiter os homens são de essência tão alta que a existência deles suscitou em nós da Terra a crença nos anjos e nos deuses antropomórficos. E em Saturno nascem os altíssimos espíritos; tanto que os anéis de Saturno não são absolutamente o que pretendem os físicos — são na verdade a auréola coletiva daqueles seres que já alcançaram a perfeição ...

A gente tenta objetar:

“— Mas meu amigo, e as sondas russas que registraram temperaturas de 400 graus em Vênus que vida seria possível lá?” (o homem abana a cabeça com um sorriso superior) ... “e as sondas americanas que alcançaram Marte ... (ele mantém o seu sorriso de esfinge sabedora) ... e afinal — explodi —, os quatro americanos que pisaram no solo da Lua e só descobriram lá desolação total?

Ele, com a mão erguida, pacientemente deixou que eu me acalmasse:

— Aí é que está. Tudo faz parte de uma conspiração internacional. Farsa posta em cena pelas duas superpotências que fingem desacordo para fins de domínio. No caso se entendem muito bem e combinaram essa comédia monstruosa …

— Mas com que fim? Com que fim?

— Com o fim de manter aterrorizados os povos satélites de ambos os lados. Deslumbrar pelo avanço técnico os povos inferiores, que tremem ante o poderio dos superdesenvolvidos, capazes de mandar cérebros eletrônicos a Vênus e homens de carne e osso à Lua ...

Não se lembra de Caramuru? Eles são Caramuru com o bacamarte fumegante, nós somos os índios ajoelhados, gritando pelo Filho do Trovão ...

Aí ele explica: a suspeita da impostura lhe foi sugerida logo ao lançamento do primeiro Sputnik: um jornalista declarou não acreditar na existência real do satélite soviético, explicando que o blip-blip identificador do novo corpo celeste poderia ser emitido fraudulentamente pelos russos. Aquilo a princípio o abatera; convencido que era da habitabilidade dos outros mundos, recebera alvoroçado aquele primeiro passo na direção dos nossos irmãos exteriores. Mas era plausível a teoria da mistificação: o clima natural dos soviéticos é a mentira. Então os satélites começaram a se reproduzir como coelhos — e ele concede que alguns — não todos foram talvez postos em órbita e giraram um pouco ao redor da Terra, mas em altura muitíssimo mais baixa do que eles pretendiam, e a velocidade muitíssimo menos espetacular — senão o atrito os derreteria imediatamente.

— Mas e a cadelinha Laika? E Gagarin?

— Bem, a Laika pode ter sido jogada para cima e jamais recuperada, por cair no mar ou na estepe. Ou foi recuperada e escondida.

Quanto ao Gagarin — olhe, com o Gagarin a princípio até voltei a sentir algumas esperanças. Mas havia sempre uma nota falsa: no caso, foi aquela estúpida mancada de dizer que Deus não existia, “já que não abalroara com Ele, lá em cima”. Um herói, um enviado da ciência, jamais soltaria uma piada tão grosseira. Estou certo de que se tratou de uma farsa completa: mandaram para o ar um foguete vazio, esperaram uns dias, depois apresentaram Gagarin “de volta”. Não viu como tudo foi feito em mistério?

— Mas e o Sheppard? No vôo dele não houve mistérios.

— Bem, depois do “triunfo” dos russos, chegava a vez dos americanos. E como do lado “democrático” as coisas têm que ser mais abertas, armaram a farsa com mais cuidados. Sheppard subiu no foguete, voltou de paraquedas, foi escondido e, na data marcada, jogaram-no dentro da cápsula de bordo de um avião supersônico, que voa a mais de 30 mil metros de altura, E desde então é assim que são feitas as ‘‘viagens espaciais”, Os “astronautas” sobem no foguete, descem ocultamente em paraquedas e, ao cabo, são “recuperados” espetacularmente no meio do oceano ou tundra russa.

— Mas e a Lua, meu senhor, todos testemunhamos, acompanhamos pela TV, vimos com os nossos próprios olhos o homem botar o pé no chão da Lua!

— Perdão, o que todos vimos foi uma imagem na televisão. Ver, atualmente, ninguém viu. E já pensou como é fácil de trucar imagem e som na TV? Fazer um filme num deserto qualquer, no Gobi ou lá mesmo na América, e depois “retransmitir” a imagem como tendo vindo da Lua?

— Mas se teria descoberto, detectado ...

— Quem? Se são eles mesmos — americanos e soviéticos — que controlam as transmissões por satélite — americanos para a banda ocidental, russos para a banda oriental? Eles ficando de combinação, quem pode desmentir a farsa? Aliás, tenho uma prova concreta de que pelo menos a última viagem à Lua foi filmada em terra americana. Numa das fotos ampliadas que eles distribuíram, descobri ao lado direito, sobre o que deveria ser o solo lunar, uma pequena e estranha forma oblonga: parecia um efeito de luz e sombra, mas me intrigou, insisti no exame, usando uma lente fortíssima — e imagine só! a tal forma oblonga era uma garrafa de coca-cola! Ora, não consta que os visitantes da Lua tenham levado consigo garrafas de coca-cola ...

E nesse gosto o homem ainda falou por horas. Mas o essencial do que disse está aí, Que é que vocês acham?

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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