terça-feira, 3 de março de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Como Penso, não Sou)


Você me pergunta, minha amiga, como eu sou:

- Como quer realmente que eu seja? Ou melhor; como gostaria que eu fosse? Para que me não tome como um aventureiro, ou descortês, tentarei, em poucas linhas, responder traçando um tiquinho do meu perfil. Para início de conversa, devo dizer que sou viciado em computador. Embora não disponha de uma máquina em casa, para uso pessoal, quando vejo uma dando sopa em lojinhas especializadas, logo me vem a vontade incontida de sentar numa cadeira e colar os olhos de frente pra telinha. Nem que seja para digitar no braço da pessoa que estiver ao lado, o meu nome, endereço de e-mail e telefone para futuros contatos. Sou emotivo, pertinaz, obsessivo, teimoso, não como uma mula sem cabeça, mas como um garanhão selvagem e indomado. Costumo enfatizar que possuo um magnetismo animalesco, vez que, dependendo de como acordo, costumo dar coices em mim mesmo, ou relinchar a torto e a direito. Às vezes, no café da manhã, mando pra dentro uma boa quantidade de alfafa, noutras, me contento com um chumaço de capim fresquinho. Chorão? Você quer saber se sou chorão? Olha minha linda, não muito! Se não me falha a memória, chorei uma única vez. Havia batido com os burros n'água por conta de uma empreitada que não resultou no esperado. Em face desse deslize, quase me vi enjaulado numa delegacia de periferia, acusado por algumas senhoras donas de boutiques de roupas femininas, como ladrão de calcinhas. Faltou bem pouco para que eu acabasse no xilindró, e, pior, nos braços de um negrão duas vezes mais alto que o Sérgio Reis.

Amo a vida. De paixão! Adoro viajar para baixo e para cima. Já rodei o mundo todo nas asas dos meus sonhos junto com minha imaginação. Sou um pouco menino, e, como todo garoto sapeca, corro atrás de pipas, jogo dominó, dama, xadrez, paciência, chuto bolas nas vidraças dos vizinhos e mexo com as meninas. Também tenho mania de levantar as saias das moças que encontro pelas ruas só pra ver a cara de zanga que elas costumam fazer a admoestação desse meu gesto. Espio as minhas irmãs no banheiro lá de casa pelo buraco da fechadura, quando vão tomar banho, ou trocar de roupas, e roubo balas dos velhinhos nos pontos de ônibus. Como homem nunca me achei no caminho almejado. Naquele trilhar que verdadeiramente tracei quando ainda fazia planos e acreditava em Papai Noel. Tampouco me flagrei no lugar em que a tal da sorte me disse ter reservado assento numa cadeira cativa. Sou tolo, fugaz despropositado e desagradável. Às vezes, suponho saber tudo, de repente descubro que não enxergo um palmo adiante do nariz. Faço parte de uma família que não criou raízes, nem correu atrás de algo sólido. Daí, ser assim, destrambelhado, adoidado, tantã. Sem base, sem porto seguro, com um parafuso a menos.

No meu mundinho, amiga, meus pares vivem cada um por si, enclausurados dentro de quatro paredes escuras. Cada consanguíneo, isolado na sua redoma intransponível, procurando ser mais introspectivo que o outro. Todos, sem exceção, aparentam ser desprovidos das ideias (pelo fato de estarem presos a pesadelos mórbidos), perdidos como um bando de cegos em meio de um tiroteio, à cata de uma porta aberta que jamais será encontrada. Não sou feliz, também não sou triste. Não carrego mágoas, nem ódios ou rancores. Apenas vegeto num vazio muito grande que me mata, aos poucos e me definha a alma. Se me casei? Sim, amiga. Duas vezes. Tive uma infinidade de mulheres (amantes, nem se fala) que, por sua vez, me valeu uma penca de filhos espalhados pelos quatro cantos. Não fui um bom esposo, tampouco pai exemplar. E quem não é pai exemplar digno de ser copiado, jamais será considerado um modelo a ser seguido como padrão de comportamento ou de perfeição. Talvez seja por Isso que, nas vezes, em que visito mamãe, perceba que ela deixa transparecer certa contrariedade, como se minha presença a incomodasse de alguma forma. Noto claramente que fica distante, amuada, aborrecida, enfastiada e alheia. Se eu saberia o motivo? Sustento a teoria de que ela tem preferência por outro irmão mais novo. Não que ele seja um galã ou mais bem apessoado que eu. Contudo, quero crer, em vista de ter tido mais sorte, e, em razão desses ares benfazejos, logrado posição financeiramente mais afortunada. Dessa forma, nascido com a “bunda pra lua”, esse meu mano conseguiu dar a ela uma vida mais abastada e sem os transtornos e as correrias de um simples assalariado.

Apesar dos pesares, queria encontrar a felicidade que busquei a vida toda. Desfrutar dessa paz que as pessoas falam e que em nenhum momento se dignou sorrir para amenizar a minha angustia. Adoraria ter um porto amigo, um ombro onde pudesse deitar e falar como foi o meu dia. Sonho, ainda agora, com uma casa, mesmo pobre, uma mulher me esperando, uma criança sorrindo, um quadro na parede, um fogão velho na cozinha. Algumas panelas sobre ele, um prato de comida requentado, servido em cima de uma mesa sem toalha. Um bocado de arroz com um ovo frito não faria a menor importância. Queria, ainda, poder sentar num sofá caindo aos pedaços, ver um pouco de televisão em preto e branco e, depois, dessa via crucis, me dar ao luxo de dividir as alegrias e as tristezas com minha cara metade. Almejaria mais, nesta utópica insensatez; deitar a cabeça num travesseiro sem fronha e saber que dia seguinte, depois que ultrapassasse a porta da rua, nenhuma perspectiva de melhora estaria me esperando na esquina ou me sorrindo com ares de boas vindas. Mas assim mesmo, confesso, do fundo da alma, eu sairia feliz. Sairia de cabeça erguida, alegre, saltitante. Realizado e próspero. Seguiria para o batente como um sortudo afortunado e venturoso, que ganhou na loteria, porque atrás de mim... Atrás de mim havia deixado um lar, uma família, um amor de verdade, um sonho que se renovaria a cada volta no começo da noite.

Você me pergunta minha amiga, como sou. Sou isso, um trapo, um Zé Ninguém. Nem pobre, nem rico. Completamente desprovido do necessário para sobreviver condignamente. Vazio, oco, desiludido. Um idiota em busca de mim, um imbecil planejando ver a tal da esperança (mesmo que por alguns poucos minutos) diante de meus olhos. Sou isso tudo que acabei de dizer, talvez um pouco mais. No fundo, minha querida, um monte de lixo.

Resumindo minha triste existência, não sou nada. Nunca fui. Jamais serei. Na verdade, não existi. Não fiz história. Apenas vegetei uma existência medíocre e barata, me consumi em dissabores, em inconsequências, com gente a toda hora me virando o rosto, em carinhos não recebidos, em mãos acenando adeus. Minha aparência? Acho que nesta altura do campeonato, esse particular é o que menos importa. Não sou nenhuma estrela de televisão. Não tenho o corpo sarado, não trago piercing ou tatuagem que se possa dizer "nossa, que massa". De estatura mediana, não sou nem alto, nem baixo, nem magro, nem gordo. A cabeça sempre vazia, o bolso sem um tostão pra fazer um cego cantar... Na carteira um monte de contas vencidas. Não se iluda se lhe falar que me pareço um pouco com o Tom Cruise. Claro que não me refiro ao famoso ator e produtor americano, e sim ao Tom Cruz Credo que você encontra em qualquer sinaleira espalhada aí pelas ruas. Se fosse me comparar com alguém, diria que me sinto como um daqueles personagens que encantavam os reis e os nascidos em berços de ouro dos tempos de outrora. Lembra dessas figuras? Consegue materializá-las na mente? Pois então: uma miscigenação barata, aperfeiçoada, dos bufões de antigamente. Resumindo amiga, devo terminar num arrulho estrepitoso lhe confessando que me considero uma cópia fiel de Daniel melhorado, circulando por aí. e, a cada novo porvir, tentando não ser arremessado, ou jogado, como alimento, na cova dos leões para servir de tira gosto a jantares exóticos. Acredite minha amiga, adoraria esse negócio de ser devorado por inteiro. Dos pés a cabeça. Não pelos felídeos predadores de caudas longas e jubas felpudas, evidentemente... Ao contrário, me sentiria plenamente realizado se me visse acolhido pelos resguardos bem agasalhadores da vida plena.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP: Sucesso, 2012.

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