sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Laé de Souza (Bebedeira do Orlei)


Orlei era daqueles sujeitos sérios por quem se podia pôr a mão no fogo que nunca trairia a mulher. Poucos e raros pertencentes de uma raça em extinção, na qual me incluo. Traí uma vezinha só, num desvio que, após juras de arrependimento, fui perdoado e o episódio esquecido pra nunca mais. Não que eu seja santo, mas é que não consigo segurar uma mentira. Se me for questionado, não adianta, gaguejo, tremo e me entrego. Foi assim, daquela maldita vez, primeira e última. Por sorte, minha companheira percebeu que realmente eu era marinheiro de primeira viagem e que não tinha habilidade para fugas e aventuras às escondidas, concedendo-me seu perdão. Aliás, o perdão, quando dado, deve ser absoluto, nunca cobrado e vigiado. O meu, por exemplo, me foi dado de forma que parece que nunca existiu pecado. É como se começasse tudo de novo. 

Se por acaso a senhora perceber que o companheiro deu uma “pisada na bola”, e, se chegou ao ponto de arrependimento, e consenso de que é caso de perdão, passe realmente o apagador de vez por cima e vida nova, sem olhares suspeitos. Bem, mas voltemos ao nosso Orlei, que também era desse nosso clube de gente direita.

Numa noite, num bar, apresentado por um amigo, conheceu a Gracelinda e entre conversas e afagos, aconteceu. Sim, aconteceu mesmo. Mas, acredito que mais pela inteligência da cachaça do que pela sua própria vontade. Ou até, talvez, afloramento de uma vontade subconsciente e fora do seu domínio. De qualquer forma, a noitada foi sem igual e mesmo com aquele esquecimento natural do ocorrido, durante a bebedeira, nunca saíram de sua mente aqueles momentos extravagantes e descompromissados.

No dia seguinte, mesmo ressabiado, com a cabeça pesada e a consciência a gritar (meu pesadelo foi de longos anos), não dá motivos para encrencas e cumpre o prometido passeio ao zoológico com a família.

Numa curva, sente um pé de sapato solto que roça os seus pés, num indo e vindo. Relembra Gracelinda risonha, bêbada e arteira, fazendo estrepolias sobre o banco e ele rindo com suas artes. Ruborizado e de soslaio, percebe um batom no console e tem medo de vasculhar mais cantos, embora seus olhos se desviem para a marca dos lábios da Gracelinda, incentivada por ele a deixar no canto do para-brisa. Discretamente, e valendo-se da agilidade aprendida no curso de mágica, quando mocinho, apanha o sapato e o batom jogando-os pela janela. O outro pé, vasculhado por baixo do banco, sorrateiramente, também foi lançado, acompanhado do apagar do beijo no para-brisa numa passada de mão. Sentiu um leve arrepio e deu um Graças a Deus por ter-se livrado de tudo.

Ao chegarem ao parque, a sogra, com os pés inchados, procura os seus sapatos que jura ter tirado no carro. Procuram, e o próprio Orlei vasculha o carro, várias vezes, e a sogra quase o esgana, ao ouvi-lo cochichar no ouvido da mulher que a sua mãe estava caducando. A sogra afirma que deixou os sapatos aos seus pés, enquanto a mulher aponta o lugar em que deixou o seu batom. Orlei acenou à possibilidade de coisas estranhas e a mulher responde que só pode ter sido espírito que encostou por causa da tal bebedeira de ontem. – É culpa tua, Orlei - Orlei engoliu em seco, desviou o olhar e rumaram para o remédio.

No terreiro do Pai Mané, depois do carro lavado com sal grosso para espantar as coisas ruins, ficou esclarecido que foi arte de um espírito zombeteiro que encontrou fraqueza na bebedeira, nunca ocorrida, do Orlei. E o Orlei balançava a cabeça “É, foi consequência da bebedeira de ontem.”
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LAÉ DE SOUZA é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para "O Labor"(Jequié, BA), "A Cidade" (Olímpia, SP), "O Tatuapé" (São Paulo, SP), "Nossa Terra" (Itapetininga, SP); como colaborador no "Diário de Sorocaba", O "Avaré" (Avaré, SP) e o "Periscópio" (Itu, SP). Obras de sua autoria: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial. Projetos: "Encontro com o Escritor", "Ler É Bom, Experimente!", "Lendo na Escola", "Minha Escola Lê", "Viajando na Leitura", "Leitura no Parque", "Dose de Leitura", "Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, "Minha Cidade Lê", "Dia do Livro" e "Leitura não tem idade". Ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. "A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano", dirigida a estudantes e "Como formar leitores", voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras. Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças "Noite de Variedades" (1972), "Casa dos Conflitos" (1974/75) e "Minha Linda Ró" (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Criou o jornal "O Casca" e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco. 

Fonte:
Laé de Souza. Espiando o mundo pela fechadura. 26a. edição. SP: Ecoarte, 2018.

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