AS MINHAS MENINAS se foram. De repente, partiram, bateram asas como pássaros assustados numa manhã solitária. Minhas princesas voaram para longe. Alçaram um voo sem volta para um planeta desconhecido que não sei dizer com precisão onde fica situado. Acredito, inclusive, que viajaram para um lugar onde meus passos não alcançam. Ficou por aqui morando comigo o silêncio. De roldão, além do silêncio, se engrandeceu o eco das risadas que antes preenchiam a casa. Se solidificou o choro convulso quando eu ralhava por alguma discordância, ou por uma arte não prevista. Ficou mais, se fez presente um vazio denso que se alastrou com a ausência infame que pesa mais do que qualquer lembrança. Igualmente restou o vácuo dos carinhos que me endereçavam; uma com os olhinhos perdidos num ponto distante; a outra, chupando o dedinho como se pensasse num amanhã que ainda nem havia chegado para nós.
Hoje, preso e acorrentado nesta solidão, procuro caminhos, sendas, trilhas e veredas. Invento mapas, crio expectativas, ensaio palavras, faço músicas, escrevo crônicas, mas o destino delas, o paradeiro, eu sei, (não, eu não sei), se esconde atrás de janelas e portas invisíveis. E eu, aqui, aos setenta e dois anos, sigo perguntando ao vento: como chegar até onde elas estão? O vento não responde. Não sei! As minhas meninas desapareceram como quem fecha uma porta sem fazer barulho. Não houve aviso, não houve bilhetes na mesa. Apenas o vazio pesado e denso, esse hóspede antigo que sabe se instalar sem pedir licença. De repente, elas, as minhas meninas, se tornaram sombras em outro quintal — risos em outras casas, segredos em mãos que não conheço o calor do toque. E eu, meu Deus, eu fiquei aqui, permaneci estancado, tentando decifrar o mapa de um território que não existe,
E ainda agora, aqui estou, procurando incansável e atônito, atalhos em ruas e vielas, alamedas e desvãos que não levam a lugar algum, a não ser para dentro da minha própria solidão. Venho aprendendo, dia após dia, que o tal do desconhecido é uma espécie de labirinto de Dédalo. Sei que há vida lá dentro, ouço barulhos, distingo vozes, risos — por vezes choros, mas não consigo enxergar, ver claramente o âmago da realidade. É como se o tempo tivesse engolido as minhas meninas e cuspido apenas lembranças frágeis como migalhas de um vidro enorme quebrado em mil pedaços. No silêncio da noite, tarde da noite, a coisa fica mais insuportável. Escuto, mergulhado nos meus medos, passos que não vêm. Invento diálogos, imagino retornos, contudo, do nada, o tudo, o tudo se dissolve como fumaça em meio à forte ventania.
Talvez seja isto: eu preciso urgentemente aprender mais, ou seja — careço de conviver com o que não se alcança, com aquilo que se perde sem explicação. Enquanto não distingo, sigo assim, me abalando entre o peso da ausência e a leveza da esperança. Vou à frente, mas à esmo, ao Deus dará, como um autônomo — tipo uma espécie de robô que escreve cartas ao vento, na expectativa de que um dia ele descubra o caminho de volta. E nele, traga as minhas meninas. Pois é, meu Deus! As minhas meninas se foram. Não houve despedida, não houve promessas de retorno. Apenas um silêncio pesado, denso, volumoso, insípido, que se instalou como poeira sobre móveis antigos, cobrindo cada canto da casa. De repente, elas se tornaram invisíveis, como se tivessem atravessado uma fronteira secreta — um portal que só elas conheciam.
Eu, eu fiquei aqui, permaneci do lado de cá, tentando decifrar sinais, rastros, pegadas, qualquer vestígio que me indicasse o caminho para chegar até elas. O desconhecido é um senhor sem rosto, sem voz, sem saída, e cada tentativa de alcançá-lo me devolve ao mesmo ponto, qual seja, a ausência. Sei que é inusitado pensar que o tempo continua, segue adiante, mesmo quando a vida parece suspensa. As horas passam, ou melhor, voam, os dias se acumulam, se atropelam e eu sigo colecionando perguntas sem respostas. Onde, onde estão? Quem as guarda? Que vozes as chamam agora? Às vezes imagino que se tornaram personagens de um livro-romance que nunca li, vivendo capítulos que não me pertencem. Outras vezes, penso que são como estrelas: astros distantes, mas ainda brilhando em algum lugar lá em cima, no imenso céu, mesmo que eu não consiga vê-las.
O desconhecido é mais que um senhor sem rosto, é uma sombra tenebrosa que não se revela. Mesmo tapa, uma porta fechada, sem chave, um nome que não se pronuncia. E eu, aqui, eu aqui, sigo escrevendo cartas que nunca serão entregues, tentando dar forma ao vazio, como se pedisse socorro a alguém que nunca virá para me dizer “ei, ser vivente, elas apesar dos pesares, voltarão, se acalme, estão chegando”. Talvez seja isto que restou: eu no meu oco tentando aprender a toque de caixas, a porradas de uma vida vazia e cruel a conviver com o invisível, com o que me escapa das mãos. Aceitar que há histórias que não se contam, destinos que não se alcançam — tendo consciência de que a perquisição de toda esta infelicidade atroz segue sendo uma só: até quando? Só Deus tem as respostas. Enquanto estas indagações não são respondidas, eu sigo.
Me embrenho, me descabelo, entre o peso esmorecido e consternado da ausência e a leveza gélida, perversa e lancinante da imaginação. Me infiltro às apalpadelas, entre o silêncio mordaz e pétreo que dói e as palavras impiedosas que tentam preencher o meu “eu interior”. Sigo como quem caminha em direção ao nada. Me enlaço acreditando que o nada também pode guardar segredos. Talvez seja isso: eu, aqui, sem saída, sem horizonte, aprendendo de alguma forma, ainda que meio destrambelhado e feérico, que nem tudo precisa ser efetivamente revelado. Tenho urgência em tomar ciência, ou consciência, de que há histórias as mais diversificadas que se escrevem no invisível. Mesmo modo, destinos que se cumprem longe dos nossos olhos. E que, mesmo sem saber como chegar, colocar na cabeça, de uma vez para sempre, que ainda é possível, ainda é possível ESPERAR.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras. Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas. Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Reside atualmente em Vila Velha/ES.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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