De início, tudo são flores. Esta frase idiota era, no entanto, verdade, porque ela, Margarida, e ele, João Cravo, tinham flores nos seus nomes.
Conheceram-se na Penha quando pagavam promessa, subindo os dois, de joelhos, os degraus da igreja. Durante a subida, nos momentos de parada para o repouso das rótulas, ficaram sabendo das coisas que os torturavam a ponto de dar motivo às promessas. Souberam mais: os seus nomes, telefones, endereços, dissabores, esperanças, e também ficaram a par das imensas solidões que dominavam a vida que carregavam, pois o verbo era bem esse.
Entraram na igreja já um pouco mais amigos. Tinham as mãos dadas num quente apertar de dedos que se entrelaçavam, pondo isto ao bom serviço da santa que amavam. Achavam um exagero o milagre nem pedido, só de longe imaginado.
Na prece que os dois fizeram em pé (joelhos sangrando), mudamente agradeceram o encontro proporcionado pela santinha adorada, sempre de mãos em aperto, amor pingando dos poros abertos pelo esforço na subida.
Não nos atenhamos, porém, ao começo do romance, que foi igual a milhões: trocas de muitos beijos, juras de amor infindo, a constante procura e encontro de João Cravo e Margarida, passeios pelos jardins, encostamentos nos muros, sofá da sala da dona que, por ser desquitada, dava a João certos favores que eram retribuídos no carinho que ele dava.
Margarida nem lembrava do primeiro marido. Sumira um mês depois do casamento civil, e a última notícia era a de que ele andava em Manaus ou Belém. Sabia que era no Norte.
Como não podia casar, um mês depois do milagre os dois se juntaram.
João Cravo, querendo filhos, Margarida transferindo, acabou engravidando, botando gêmeos no mundo. Depois dos dois, a menina, que se chamou Madalena. Devia chamar-se Penha, mas João Cravo ponderou que isso não era certo. Penha só se chamaria filha de casal casado. Esperavam pela morte do marido em Santarém, porque chegaram notícias contando ele andar doente.
Ficaram em três, todavia. Os gêmeos (Mário e Marino) e Madalena, a menina, um ano e pouco mais nova. Os três, a fuça do pai, moreno da cor de um índio, cara de linhas marcadas, um rosto anguloso, feito com régua, olho aberto a compasso.
Ponha-se em conta do encanto a boa vida levada nos quatro primeiros anos de João Cravo e Margarida. Pode ser que tenha sido a busca louca de filhos que tenha cegado João, a ponto de não lhe deixar notar a frieza da mulher. Passados cinco anos, João Cravo então se deu conta de que o amor muitas noites evitado, a busca sem proveito pelo corpo da mulher, dor de cabeça constante, tudo chocho, sem graça, o sexo obrigatório, de pouco ou nenhum prazer.
— O que é que você tem?
— Nada. Uma dorzinha...
— De novo?
— Dor de cabeça.
— Toda noite, Margarida?
— Mas eu não posso ter dor?
— Pode, bem, mas toda noite?
Não era assim toda noite, mas era em volta disso.
Ponha-se em conta das dores de Margarida a aceitação do amor que Suzana ofereceu.
Suzana cresceu na vida, tomando João pra si, e ele sumiu com ela, deixando assim Margarida desquitada e desamada, com 3 filhos pra criar, os gêmeos já com 3 anos, Madalena indo aos dois.
Margarida não tentou tirar esta ideia de João.
— Quer ir? A porta está aberta.
Ficou com os meninos e a máquina de costura que lhe ajudava na criação das crianças. De noite fazia doces pra festas de aniversário. Deitava depois da uma, acordava antes das sete. Mesada João não lhe dava e nem tinha obrigação. Mesmo sendo casada, não lhe pediria nunca um centavo. Os filhos, os seus problemas, ela os resolveria. Mas tinha uma resolução tomada pra toda a vida: "Homem, nunca mais!"
As poucas joias que tinha, de valor pequeno, dormiram nas prateleiras da Caixa, em penhor. Depois vendeu as cautelas, fazendo dinheiro. Sem contar os empréstimos tomados a juros descomunais.
Os filhos cresceram tanto quanto as dívidas contraídas. Os três eram muito certos, estudavam o necessário, e Marino, o mais esperto, arranjou um empreguinho que o ajudava a ajudar nas contas que a mãe pagava.
No quarto, luz apagada, preparada para dormir, Margarida agradecia os filhos que João lhe dera, três crianças feito ouro, três joinhas muito ricas, que um dia seriam gente e, então, oferecia contrita Salve-Rainha à "memória" de João Cravo, de cujo paradeiro não tinha notícia.
Passaram-se quinze anos do dia em que João se tinha ido.
Madalena, professora, ensinava em Madureira, numa escola do governo, e os irmãos, Mário e Marino, faziam cursos pra enfrentar o vestibular. Margarida emagrecia, cabeça já tão grisalha, os olhos diminuídos pela lente avantajada, via os filhos debruçados sobre os livros e chorava a alegria de vê-los no rumo certo, a caminho do diploma.
— Meus filhos de anel no dedo, minha filha professora, a vida foi muito boa, Deus tomou conta de mim.
Foi assim que João a achou no dia em que, arrependido, apareceu de repente, na volta nunca pensada.
— Alô — foi o que falou quando a porta foi aberta.
Ela olhou e, de cabeça, retribuiu o alô, sem nenhum pasmo ou surpresa, olhando apenas nos olhos, os olhos que João trazia, embotados por um choro que era quase evidente.
— Alô — ele repetiu.
E então ela disse: "Alô".
— Quer entrar? — ofereceu, gentil e maquinalmente.
— Se você deixa... — e sorriu.
A porta escancarada deu passagem a João Cravo que, muito desajeitado, entrou, sentou no sofá, mãos fechadas entre as pernas, um jeito mais de visita do que qualquer outra coisa.
A roupa, suja e surrada, a camisa encardida, sapatos desengraxados, cabelos em desalinho, as rugas tomando os olhos, vincos fartos pela testa, um ricto de sofrimento. "Um homem meio molambo" — Margarida deduziu depois de muito o olhar no exame que fazia no homem que ali estava.
— Como vai? — João quis saber.
— Muito bem — ela falou.
— E as crianças?
— Crescidas.
— Estudando?
— Estudando. Madalena é professora.
— Que bonito!
— Também acho.
— Os meninos...
— Vão ser médicos. Vão fazer vestibular, e eu tenho plena certeza de que serão aprovados.
— Doutores... — suspirou fundo — ...doutores!
— Se Deus quiser.
— E você?
— Eu já falei. Eu vou bem, vou muito bem.
João levantou um instante, foi à janela e a abriu. Queria ficar de costas para não mostrar o pranto que descia pelo rosto. Margarida ali o deixou e foi fazer um café. Quando voltou, ele estava ainda lá na janela, olho parado na rua, como quem examinasse as pedras do calçamento.
— Um cafezinho, João?
Ele aceitou e sorveu o café num gole longo.
— Senta, João.
Ele sentou.
Madalena e os meninos ainda não tinham chegado. Ele voltou ao sofá. Ela, na cadeira em frente.
— Eu andei lá pelo Sul.
— É?
— Andei. Você não soube?
— Não. Se soube, não me lembro.
— Andei por lá um tempão.
— Calculo. Faz tanto tempo...
— Quinze anos.
— Tudo isso? Gozado. Parece menos.
Ele sofreu muito a frase. No modo como falara, João percebeu que a chance de voltar àquela casa era nenhuma. Nenhuma. Ficaram calados, mudos, por minutos infindáveis. Ele olhava a simpatia da mulher que tanto o amara, simpatia que crescia pelos cabelos cinzentos. Os óculos lhe davam um jeito de professora primária, um aspecto agradável, os óculos caíam bem.
— Você fica bem de óculos.
Ela os levantou com o dedo, chegando-os ao posto certo, e sorriu agradecida pelo elogio de João.
A porta abriu-se depressa, como se fosse empurrada por força de furacão. Madalena, muito alta, cabelos longos e lisos que deveriam dançar a lhe varrer por detrás, quando corresse ou andasse em passo mais apertado. Madalena, alta e linda, entrou e freou o passo. Seus olhos de moça nova viram João no sofá. À entrada dela ele levantara quase em salto. Madalena olhou o homem e nele viu sua cara. Depois fitou Margarida num olhar que perguntava. A resposta foi um riso escondido, disfarçado. Madalena não fez mais que dizer um boa noite e sumiu no corredor.
— Ela não me conheceu.
— Nem podia conhecer. Tinha menos de dois anos, não podia conhecer.
— É verdade.
— Quinze anos. Não lembra? Faz quinze anos.
Ele muito se lembrava. Depois chegaram os gêmeos, entrando às gargalhadas. Beijaram a mãe na testa e nem deram atenção ao homem que, no sofá, esperava pelo menos um boa noite igual ao que ouvira da filha. Sumiram no corredor, e os dois voltaram a ficar sozinhos naquela sala.
— Dois homens!
— Vão ser doutores — reafirmou Margarida, desta vez muito orgulhosa.
Daí, por falta de assunto, ela perguntou as coisas que ele há muito queria falar, contar, explicar.
— Estou no fim.
Foi o começo da estória que contou. Estória muito sofrida, de enganos e dissabores, contou da mulher (Suzana) de mau proceder constante. Falou de amor só de carne, sem filhos, sem bem-querer, do uruguaio Manolo, com quem Suzana sumira pros lados de Uruguaiana; da ida dele à procura da mulher que o enganara. E antes houvera outros, até um negro peão, de uma fazenda de gado, andara achando em Suzana o xodó que procurava. Mas sempre havia o perdão ditado pelo desejo. Confessou que era Suzana a mulher que o atendia na justa medida, a exata, do sexo. Somente sexo. Aos poucos, foi acordando e vendo que aquilo tudo era coisa de animal. Gente não procede assim, isso não é coisa humana. Falou um quarto de hora na resposta da pergunta que era só:
— E você?
Foram essas cinco letras que provocaram o chorrilho de confissões tão sinceras, tardio arrependimento.
Madalena perguntou se não iriam jantar.
Margarida levantou, depois de pedir licença, e foi preparar a janta, modesta como a de sempre.
— O senhor janta conosco?
A filha, que perguntou.
— Não obrigado, filhinha. Eu já estou de saída.
Muito delicadamente Margarida despediu-se com os filhos já em volta da mesa, começando a se servir.
Da porta, João escutava o tinir de prato e faca. Margarida lhe estendeu a mão, num gesto comum. Ele lhe deu um boa noite, ela, então, fechou a porta e foi sentar-se à mesa, juntando-se aos seus três filhos.
— Quem era? — perguntou Mário.
— Um amigo antigo da mamãe, um amigo do passado — lhe respondeu Madalena, tomando o lugar da mãe na resposta que ela, tonta, procurava encontrar.
— É, meu filho. Um amigo antigo.
Comeram muito calados.
Fonte: Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
Nenhum comentário:
Postar um comentário