sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

O. Henry (Vinte Anos Depois)

O policial de serviço subiu a avenida garbosamente. O garbo era-lhe habitual e não  ostensivo, já que havia por ali poucos transeuntes. Ainda não haviam soado as dez horas da noite, mas lufadas de vento gélido e úmido tinham despovoado prematuramente as ruas.

Experimentando as portas à medida que caminhava; girando o bastão com movimentos complicados e destros; voltando-se de quando em quando para inspecionar a avenida pacífica — o policial, com sua figura imponente e afetada, dava bem a ideia de um guardião da paz. O bairro era madrugador. Aqui e ali podiam-se ver as luzes de uma tabacaria ou de um café, desses que permanecem abertos a noite toda; a maioria das portas, porém, pertencia a lojas comerciais havia muito fechadas.

A meio caminho de certo quarteirão, o policial moderou subitamente o passo. Ao portal sombrio de uma loja de ferragens, estava encostado um homem, com um charuto apagado na boca. Ao aproximar-se o policial, disse-lhe rapidamente:

— Está tudo bem, seu guarda; espero um amigo, Um encontro marcado há vinte anos atrás. Parece esquisito, não é? Pois bem, vou explicar o caso e verá que está tudo legal. Naquele tempo, onde agora se encontra esta loja, havia um restaurante, o restaurante de Big Joe.

— Exatamente. Foi demolido há cinco anos — confirmou o guarda.

O homem do portal riscou um fósforo e acendeu o charuto. A chama revelou um rosto pálido, de queixo proeminente, olhos espertos e uma pequena cicatriz branca no supercílio direito. O alfinete de gravata era um grande brilhante, curiosamente engastado.

— Há vinte anos atrás, numa noite como esta — continuou o homem —, jantei no Big Joe com Jimmy Wells, o meu maior amigo e o melhor camarada deste mundo. Ambos crescemos em Nova Iorque, como irmãos; eu tinha dezoito anos, ele vinte. Na manhã seguinte, eu devia embarcar para o Oeste, em busca de fortuna. Ninguém, contudo, lograria arrancar Jimmy de Nova Iorque, pois ele considerava esta cidade a melhor do mundo. Bem, combinamos, naquela ocasião, um encontro aqui, exatamente vinte anos depois, independentemente das condições ou da distância que tivéssemos de percorrer para cumprir o compromisso. Imaginávamos que, dentro de vinte anos, estaríamos com a vida feita e a fortuna consolidada, quaisquer que fossem.

— Muito interessante — retrucou o policial — Todavia, parece-me que vinte anos é prazo um tanto longo, não acha? Teve notícias do seu amigo durante esse tempo?

— Bem, de início nos correspondemos, — respondeu o outro — mas, depois de um ano ou dois, perdemos a pista um do outro. Como sabe, o Oeste é muito vasto e andei sempre muito ocupado, pulando de cá para lá. Tenho a certeza, porém, de que Jimmy, se estiver vivo, virá esta noite, pois sempre foi o sujeito mais correto e leal do mundo. Jamais se esqueceria. Viajei mais de mil milhas para estar hoje neste local e me darei por bem pago se ele aparecer.

O homem consultou o relógio, cuja tampa era ornada de pequenos diamantes.

— Dez para as dez — anunciou. — Separamo-nos exatamente às dez horas, na porta do restaurante.

— O Oeste foi-lhe propício, não? — indagou o policial.

— Nem me diga! Espero que Jimmy tenha tido pelo menos a metade do êxito que tive. Era um tanto bisonho, apesar de bom sujeito. Tive de competir com os malandros mais finórios para cavar o meu quinhão. Em Nova Iorque, a gente fica entocado. Só o Oeste consegue deixar a gente afiado.

O guarda girou o bastão e deu alguns passos.

— Vou andando — disse. — Espero que seu amigo venha. Vai esperá-lo muito tempo ainda?

— Acho que sim — respondeu o outro. — Vou dar-lhe um desconto de meia hora, pelo menos. Se Jimmy estiver vivo, aparecerá logo mais. Até breve, guarda.

— Boa noite — disse o policial, continuando com sua ronda e experimentando as portas conforme se afastava.

Caía, agora, um chuvisco gelado e as ocasionais rajadas haviam-se convertido numa ventania constante. Os poucos transeuntes retardatários apertavam o passo, silenciosos e friorentos, com a gola do casaco erguida e as mãos nos bolsos. À porta da loja de ferragens, o homem que viajara mil milhas para comparecer a um encontro, incerto e quiçá absurdo, com o amigo de mocidade, fumava seu charuto e esperava.

Aguardou vinte minutos e, então, um homem alto, enfiado até as orelhas num comprido sobretudo, atravessou apressadamente a rua. Dirigiu-se para o homem à espera.

— É você, Bob? — indagou, em tom de dúvida.

— É você, Jimmy Wells? — exclamou o homem do portal.

— Por Deus! — suspirou o recém-chegado, tomando entre as suas as mãos do outro. — É Bob mesmo, no duro! Esperava encontrá-lo aqui se você ainda estivesse vivo. Ora, ora, ora! Vinte anos é muito tempo. O velho restaurante se foi, Bob; gostaria de que ainda existisse, para que lá pudéssemos jantar. Como foi de Oeste, meu velho?

— Às mil maravilhas! Lá encontrei tudo quanto esperava. Você mudou muito, Jimmy. Nunca pensei que você pudesse crescer tanto.

— Pois olhe! Depois dos vinte, ainda cresci mais um pouco.

— Dando-se bem em Nova Iorque, Jimmy?

— Assim, assim. Tenho um bom emprego numa repartição municipal. Vamos Bob; sei de um lugar onde poderemos conversar longamente sobre os velhos tempos.

Os dois se puseram a caminho, de braços dados. O homem do Oeste, seu egotismo espicaçado pelo sucesso, começou a esboçar a história de seus êxitos. O outro, enfiado no sobretudo escutava com interesse.

Na esquina, brilhavam as luzes de um café. Ao chegar à zona iluminada, os dois se voltaram simultaneamente para se examinarem um ao outro.

O homem do Oeste parou de súbito e retirou o braço.

— Você não é Jimmy Wells — explodiu. — Vinte anos é muito tempo, mas não o bastante para mudar um nariz romano em batatinha.

— Às vezes, transforma um bom cidadão num mau — retorquiu o homem alto. — Você está preso há já dez minutos, Silky Bob. Chicago deseja conversar consigo e nos telegrafou avisando de que você talvez estivesse por aqui. Vai ficar bonzinho, não vai? Faz muito bem. Agora, antes de irmos até a delegacia, eis um bilhete que me pediram lhe entregasse. Pode lê-lo diante da janela. É do guarda Wells.

O homem do Oeste desdobrou o papelzinlio que lhe fora entregue. Sua mão, firme ao começar a leitura, estava trêmula quando a terminou. O recado era curto:

"Bob: compareci ao encontro na hora marcada. Quando você riscou o fósforo para acender o charuto, reconheci a fisionomia do homem que Chicago procurava. De qualquer maneira, não podia prendê-lo pessoalmente. Por isso, fui arranjar um secreta para executar o serviço.
JIMMY."

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.  

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