quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

J. G. de Araújo Jorge (A Poesia Popular)

Somos felizmente um povo inteligente e de grande sensibilidade. Se querem um exemplo da inteligência do povo brasileiro, de sua filosofia, do seu senso de humor, procurem observar as frases que comumente se encontram escritas nos para-choques ou na própria carroceria dos caminhões que trafegam pelas estradas. 

São de uma graça e de uma acuidade, às vezes profundas, em sua simplicidade. Sozinhos, viajando durante dias, longe do lar e de seus amores, os motoristas de caminhões são como os marinheiros. Mas a permanente presença da terra, tira-lhes á saudade aquele tom de grande lirismo do homem do mar, realmente desligado de tudo, cercado de silêncios e horizontes. E espouca em seus espíritos a sátira, a alegria boêmia dos que fazem a vida de aventuras, em prazeres de cada momento.

Já pensei em comprar um caderninho para anotar as frases que leio nos para-choques dos caminhões. Tenho a convicção de que acabaria por ter um verdadeiro retrato do espírito popular, um verdadeiro “compêndio” dessa filosofia de vida, tão interessante e cheia de sutilezas, do homem da rua.

Uma das trovas que compõem o meu “Cantigas de Menino Grande” eu a fiz, aproveitando um pensamento de uma dessas frases que vi num caminhão, quando dirigia meu carro rumo a Friburgo. Dizia o seguinte

“Eu dirijo, Deus conduz”.

Nada mais, simples e profundo. E pensando no que acabara de ler fui arrumando mentalmente os outros versos, já que o pensamento vinha num verso de sete sílabas. No meio da serra a quadrinha estava pronta:

No meu carro vou tranquilo
tenha a estrada sombra ou luz,
pois bem sei que ao dirigi-lo:
- Eu dirijo, Deus conduz."

Numa crônica que preparei para volumes anteriores desta coleção, afirmei:

“Do mesmo modo que os provérbios e adágios representam o pensamento do povo que se vai cristalizando através do tempo, as trovas, são a sua alma. E os poetas, tocados pela “graça” das trovas, os intérpretes dessa alma.” 

O povo fala em versos, sem sentir e, instintivamente, nos seus provérbios e sentenças, procura a rima, que é um elemento oral de enfeite e de memorização mais fácil. Observem os provérbios. este, por exemplo, bem conhecido:

“Água mole em pedra dura
tanto bate até que fura.”

Dois. versos de sete sílabas, rimando.

E este outro:

“Ha sempre um chinelo velho
Pra um pé doente e cansado.”

Glosei, também, numa trova:

O tal ditado é um conselho,
não te mostres desolado…
“Há sempre um chinelo velho
Pra um pé doente e cansado…”

Nem tal fato é de se estranhar, quando sabemos que as línguas neolatinas esgalharam-se do tronco secular do velho latim, na língua poética, dos trovadores medievais, nas suas cantigas.

Sobre trovas populares e anônimas, escrevi, na crônica citada :

“Uma trova, (ou como a chamam também, uma quadrinha) é tanto mais expressiva quanto maior o grau de fidelidade ou de identidade do poeta com o sentimento popular. Cai então, pode-se dizer, no gosto do povo, que a recolhe, decora e divulga, e sua expansão se faz de modo permanente, extenso e profundo.

Seu processo de popularização é tamanho, que ela acaba desgarrada de quem a criou, filha de ninguém. Ou melhor: lhe arranjam um pai, lhe atribuem uma paternidade, ou várias, o que vem a ser a mesma coisa. É uma trova anônima.

Glória efêmero e paradoxal. No momento mesmo em que a atinge, o trovador a perde. E são quase sempre, as maiores trovas, aquelas que acabam no anonimato, emaranhadas em meio a dúvidas e suposições. Tratando-se de pequenas composições poéticas, facilmente reproduzíveis, acontece com as publicações o mesmo que se dá com a difusão oral. Jornais e revistas de toda a parte, álbuns e cadernos de poesia as divulgam com autores diversos, tornando cada vez mais difícil a identificação, e mais penosa a pesquisa.”

“A Ilíada” e a “Odisseia”, memorizadas durante séculos pelo povo grego, e mandadas escrever por Psístrato, guardaram a glória de Homero, ainda que lendária, intacta. Eram grandes poemas. Mas as pequeninas trovas, estilhaçam qualquer glória, e torna-se impossível identificar através dos tempos, os nomes dos seus verdadeiros autores, quando elas caem “na boca do povo”
* * *

Mas, trovas populares e anônimas, não são apenas as trovas “eruditas” dos grandes poetas, as trovas literárias, que um dia se perdem no rio da grande popularidade, afogando seus autores. São também as trovas rústicas e imperfeitas que nascem da alma do povo, na boca dos cantadores, dos violeiros, dos sanfoneiros, dos poetas populares anônimos que enxameiam pelo interior do Brasil e de Portugal. Verdadeiros filões de ouro de nossa sensibilidade e de nosso espírito.

Na sua obra, farto acervo de folclore e poesia, “Mil quadras brasileiras”, ( “Mil quadras populares brasileiras” (Contribuição ao folclore). Recolhidas e prefaciadas por Carlos Góis. (Catedrático do Ginásio Mineiro, membro da Academia mineira de Letras). F. Briguet & Cia., Editora. Rio de Janeiro. 1916).

Carlos Góis observa: 
“É no interior do país, longe do bulício convencional e cerimonioso das grandes cidades, onde mais intensamente floresce a poesia popular. Quem se internar no sertão do Brasil, verá, na razão direta da distância dos grandes centros populosos, a expandir-se a alma do povo em expressões rítmicas de um cunho espontâneo, subitâneo, flagrante. Só quem como nós já assistiu de viso, aos descantes ao som da viola e do violão, poderá aquilatar do grau de fluência e espontaneidade que jorra da musa popular”.

Ainda recentemente, aqui no Rio, tive a oportunidade de conhecer os irmãos Batista, (Otacílio e Dimas), exímios cantadores e improvisadores do Nordeste (de Campina Grande), e outros violeiros e repentistas, alagoanos e baianos. Durante horas, com seus violões ao peito, lançam-se reciprocamente desafios, e os versos vão brotando em catadupas, com uma espantosa facilidade, ricos de verve e imaginação.

Rodolfo Cavalcanti, que é, na Bahia, o Presidente do Grêmio Brasileiro de Trovadores, é um poeta popular típico do Norte. Homens simples, emotivos, sem quase instrução, com uma poesia fácil e “bem falante”, compõe longos poemas a propósito de tudo. Publica-os em folhetos que ele mesmo vende nas ruas de Salvador. E vive disto, como verdadeiro trovador de seu tempo.

Já se começa a dar valor também a essa manifestação literária do povo brasileiro. Os próprios críticos de gabinete, desligados até agora das raízes de nossa formação literária voltam-se para o estudo e a observação de extraordinário manancial de riquezas. O atual surto de trovadores, verdadeiro movimento ,de incentivo à poesia popular, obriga-os a reconsiderarem suas atitudes puramente intelectuais, e a perceberem o que há de autêntico e real nessa manifestação -de nossa sensibilidade e de nossa cultura.
Não foi sem razão, que defini:

Ó trovador: professor
de poesia popular!
Com suas trovas de amor
o povo aprende a cantar!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Cem trovas populares. Coleção Trovadores Brasileiros.

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