sábado, 10 de fevereiro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (E agora, Jose??!!)

SEMPRE GOSTEI de cachorros. Melhor dito, de cachorras. Desde que passei a morar sozinho, adquiri uma amiga de quatro patas que me acompanha em todas as brincadeiras. Ela se chama Bergamota. Bergamota nada mais é que o nome da mexerica no Rio Grande do Sul. A simpática é uma Shitzu Xícara de Chá. Chama a atenção pelo seu tamanho. De pelo totalmente branco crescendo em todas as direções, traz as orelhas caídas e o rabinho em constante estado de abano. Extremamente carinhosa, adora me dar lambidas no rosto. Eu não me importo. Acho tratar a nossa relação de uma forma “cachorral” literalmente especial e amada em demonstrar o seu amor incondicional por mim.

Dia desses, estava aqui em casa a minha avó, e ela me viu beijando a Bergamota na boca. Aquele beijo cinematográfico que faz qualquer língua por mais quieta que seja, sair do sério e mergulhar num mundo de salivas em ebulição deixando ao final um amontoado de lembranças imorredouras. Vovó, entretanto, ficou horrorizada e me deu um sermão. Disse que aquilo se fazia extremamente perigoso. Que eu poderia pegar doenças e parasitas da cachorra. Argumentou que a saliva da minha cadelinha (como a de outros animais) armazena uma série de bactérias e vírus. Que eu poderia, num futuro próximo, ter problemas nos dentes, na pele, no estômago, e até mesmo na cabeça. Ela me mostrou alguns artigos na Internet que falavam sobre os riscos de beijar um animal (por mais limpo e asseado) na boca.  

Fiquei meio que assustado e confesso, ainda ando deveras cabreiro e confuso, notadamente quando ela esclareceu que, de repente, eu poderia passar a latir. Brincadeira ou não, me imaginei latindo em meio aos amigos nas peladas de domingo, ou mesmo quando estivesse com a Brisa, a minha namorada. Será que a Bergamota se constituía numa ameaça para a minha saúde? Será que eu tinha que parar de beijá-la? Resolvi pesquisar mais sobre o assunto. Descobri que havia opiniões diferentes. Alguns especialistas diziam que se fazia um gesto seguro dar um beijo em seu pet, desde que ele estivesse saudável, vacinado e vermifugado. 

Outros acrescentavam que seria de entendimento mais benigno, evitar. Havia sempre um risco, mesmo que pequeno, de transmissão de doenças. Também li que algumas pessoas se tornavam mais vulneráveis do que as outras, o mesmo acontecendo com bebês, crianças, idosos, grávidas e criaturas com o sistema imunológico baixo. A meu ver, não me encaixava em nenhuma dessas categorias. Ainda assim, fiquei com um certo receio. Eu não sabia o que fazer. Amava Bergamota e não queria deixar de beijá-la. Também não queria ficar doente por sua causa. 

Decidi conversar com o meu veterinário. Ele estava viajando. Optei em ter um papo franco com meus pais. Eles, como sempre, metidos até o pescoço, trabalhando. Por derradeiro, os meus amigos. Por azar, os idiotas não entendiam nada de cachorros. Senti-me sozinho e angustiado. Foi então que tive uma ideia. Resolvi conversar com a própria cidadã em pessoa. Cheguei mais cedo em casa, chamei a Bergamota para o meu quarto.  Sentei na cama. Ele veio correndo, abanando o rabo e pulou em cima de mim. Eu a abracei e olhei nos seus olhos. Comecei rodeando:
— Berga... preciso te falar uma coisa... 

Ela, de rabinho em total abanação deu carta branca:
— Fala, meu amor... sou toda ouvido, nariz, boca, e etc...
— Engraçadinha. Você sabe que te amo muito, né? Você é a minha melhor amiga. A minha melhor companheira. Indo mais longe, minha irmã... sua pessoinha alegre e saltitante sempre esteve comigo nos momentos bons e ruins me fazendo rir e me consolando. Você é a melhor criatura do mundo. Porém, entre mortos e feridos, tenho um problema. Estou com uma dúvida tremenda. Melhor dizendo: não sei que decisão tomar. Descobri que beijar você na boca, entre outras coisas, pode fazer mal para mim. Pode me causar uma série de transtornos, ou contrair doenças e infecções. Pode me deixar doente. E eu não quero isso. Eu quero e não só quero, pretendo ficar bem para poder brincar com você, passear com você, cuidar de você... etc... etc... e tal... 

Tomei fôlego e fui em frente:
— Então, minha amiga, eu careço que você me ajude. Necessito que me diga o que fazer. Devo continuar beijando você na boca ou não?
Bergamota me olhou bem dentro dos olhos e meio entristecida, respondeu:
— Gato, com toda certeza você está me tirando. Que mal posso lhe fazer? Sou uma cachorra saudável. Pior é você beijando a língua da sua namoradinha. Aquela lambisgóia da Brisa. Acaso sabe me dizer onde a sua sirigaita (me perdoe a franqueza) mete aquela abertura oral quando não está com você? Duvido!

Fiquei um momento em silêncio e obtemperei:
— Berga, ela é gente...
— E eu, o que sou?
— Uma cachorra... ora bolas...
— Mas na hora do bem bom, você larga a sua amadinha e vem balançar as pulgas comigo. Uma vez você, numa de nossas “excitações,” me disse que as minhas pulgas são as melhores. Mordem pra valer... e a coceira no corpo dura mais...
— Bergamota, entenda...
Bergamota começou a chorar. Me olhou com uma expressão de curiosidade e inocência. Inclinou a cabeça para o lado e soltou um latido. 

Em seguida, lambeu meu rosto todo, da testa ao queixo, passando pelo nariz, pela boca, pelas bochechas. Me deu, no mesmo impulso, os maiores beijos (aqueles como já mencionei, cinematográficos, de novelas) ósculos arrojados e incitantes. Sucções alucinantes como jamais recebera na vida. 
— Estou apaixonado por você. Seu cuspe, seu jato salival, sua baba, ou qualquer outro nome que queira dar, me faz viajar em sonhos. 
Repetiu os beijos, desta vez mais demorados. Na sequência, latiu, digo, falou:
— Meu gato, te amo, te amo, te amo... 
 Sorri e chorei ao mesmo tempo. Eu entendi o que ela quis dizer. 

Na verdade, Bergamota deixou claro que me amava muito. Que acima de qualquer coisa, confiava em mim. Não queria, em hipótese nenhuma me fazer mal. Ela quis dizer (e na verdade disse) que aquele trocar de línguas impulsivos e ousados se fazia no jeito mais humano de me demonstrar seu amor. Sinalizou que não entendia nada de doenças e infecções. Todavia, assimilava o bastante sobre sentimentos e emoções. Quis deixar óbvio (e deixou) que, como cadela, só queria, só desejava, só pleiteava ser feliz comigo, e que esperava, do fundo do seu coração, que também fosse feliz com ela.
Eu abracei a Berga com mais força e disse:
— Berguinha, eu te entendo. Você é uma cadela e eu sou um ser humano. Nós somos diferentes, mas como os seres humanos, nós nos amamos. 

Voltei a tomar fôlego:
— Nós temos nossas formas de expressar o amor, e nós respeitamos isso. Nós não precisamos de palavras. Nossa comunicação se dá através de pequenas trocas de gestos e mimos vindos de dentro do nosso mais profundo. Nós, minha linda, não precisamos de regras. Seguimos o instinto. Não precisamos sentir medo. Nós temos coragem. Nós não ficamos em cima do muro remoendo dúvidas. Temos dentro de nós, a certeza. E eu tenho a convicção de um ponto importante: nunca vou deixar de beijar você na boca. E de fazer outras coisas... tipo tirar suas pulgas, coçar sua barriguinha... porque eu sei que você nunca vai me fazer mal. Em contrapartida, sei que você nunca vai me deixar. Sei que você é a minha melhor amiga e companheira. 

Bergamota me interrompeu com uma das patinhas dianteiras em meus lábios:
— Por minha conta, é porque sei que você é o autor dos meus melhores beijos.
Sem que eu dissesse o que pretendia, Bergamota lambeu o meu rosto mais uma vez e deitou a cabeça no meu peito. Eu fiz um carinho na sua orelha e fechei os olhos. Ficamos assim por um tempo, em silêncio, apenas sentindo o calor um do outro. Estávamos felizes. Ao nosso redor, a paz falava mais alto. Afinal, vivíamos o nosso amor.

— Sabe aquele segredo que eu queria te revelar?
— Não, Berga. Que segredo?
— Duas chances...
— Desistiu do Tigrão, o cachorro chato do nosso vizinho do 601?
— Não. Falta uma... 
— Está de olho no Labrador do sujeito tampinha do segundo andar?
— Errou feio... 
— OK, minha fofa. Entrego os pontos. Abra o jogo de uma vez. 
Antes de trazer à tona o tal segredo, me beijou longamente na boca: 
— Eu vou ser mãe... estou esperando um filhote seu...

Fonte> Texto enviado pelo autor 

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