sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Simplesmente funambulesco*)

* Funambulesco = ridículo
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ERA MANHÃ de sábado e a doutora Lamparina estava de plantão na sua clínica odontológica. Não esperava clientes naquele dia. A maioria das pessoas preferia aproveitar o fim de semana para descansar ou se divertir. Ela mesma gostaria de estar em casa, assistindo a um filme ou acabando de ler os capítulos finais da “25ª Hora,” do escritor romeno Virgil Gheorghiu, lembrando que geralmente nos finais de semana, dificilmente algum imprevisto aconteceria que necessitasse com urgência das suas obrigações profissionais.

A doutora estava sentada na recepção, na cadeira da sua secretária, folheando uma revista, quando ouviu um barulho estranho vindo da antessala onde ficavam os pacientes e o acesso da porta principal. Parecia o som de algo batendo contra os vidros espessos que colocara para dar mais claridade ao ambiente. Apressada, se levantou a fim de verificar do que se tratava. Para sua surpresa, se deparou com um cavalo preto, de porte médio, que olhava fixamente para os óxidos metálicos que frenteavam a clínica. O animal parecia nervoso. Dava a impressão de ter bebido todas, ou além da conta. Em razão disso, soltava uns relinchos altos e estrepitosos.

Num primeiro momento, a doutora Lamparina ficou sem reação. Em toda sua vida desde que viera morar naquele povoado, não se lembrava de ter visto um espécime por aquelas paragens, muito menos na frente da clínica onde montara seu ganha-pão. Perguntou aos botões de seu jaleco de onde aquele quadrúpede saíra, e quem seria o seu dono? Pensou em abrir a porta e tentar afugentar o visitante. Teve medo de assustá-lo ou provocá-lo. Resolveu ficar quieta, esperando que o intruso fosse embora por conta própria.

Todavia, o “equus” não arredou pés. Pelo contrário, se aproximou mais e encostou o focinho naturalmente dando de cara com a própria imagem.  O sujeito, ou melhor, o rústico, parecia curioso, ou talvez confuso, com o advento do seu próprio reflexo. Ficou assim por alguns instantes e depois se virou de lado. Ato contínuo, iniciou uma série de coices na direção do vitral. A estrutura estremeceu, sem, no entanto, se quebrar. A doutora se atemorizou, e diante daquele fato bizarro, recuou. Pensou em gritar por socorro. Contudo, emparedada, não sabia se alguém viria em seu auxílio. 

Passou a mão no celular e tentou ligar para a polícia. A droga do aparelho estava com a bateria descarregada. O bronco, por sua vez, seguia prepotente, abusado, arrogante e fora de controle. Continuava com seus coices no revestimento. As patadas se faziam cada vez mais potentes. O belo arquitetônico finalmente se rachou. Um amontoado de pequenos estilhaços se espalhou pelo chão do piso de azulejos brancos. A dentista sentiu um frio na barriga. Imaginou o que o endiabrado faria se conseguisse derrubar a porta e invadir o recinto. 

Pensou nos seus equipamentos caros, nos prontuários dos clientes, e em seus diplomas. Também refletiu na segurança da sua vida. Se perguntou se o sáfaro (animal bravio) estava com raiva, com fome, ou precisando arrancar um dente. Lembrou-se de um evento parecido que ocorreu com a sua amiga ginecologista, a doutora Alterosa Bulboa. Uma vaca prenha quebrara a porta da sua clínica numa cidade próxima dali. Recordou que a médica dissera que a bendita bovina estava gravida, e, em consequência, carecia de ser atendida com certa urgência, pela especialista. 

Por um momento achou graça, porém, naquele momento, não conseguiu se situar em outra coisa menos absurda. O metido a machão seguia determinado. Mandava um coice atrás do outro. A porta finalmente cedeu. Pernadas precisas e o umbral se fez ao chão. A chave saiu correndo para um lado e a fechadura para outro. A doutora Lamparina se escondeu no banheiro, rezando para que o bruto não invadisse aquele pedaço e pedisse para usar o sanitário. Para sua sorte, o afrontoso deve ter pensando duas vezes e não seguiu adiante. 

Limitou-se em apenas olhar para dentro da clínica, como se estivesse satisfeito com os seus feitos tresloucados. Soltou uns relinchos mais alto que os anteriores, deu de ombros (de ombros?!), virou as costas (as costas?!) e se afastou. Saiu trotando calmamente pelo meio da a rua, sem se incomodar com as pessoas que se acotovelaram e gritavam, enquanto outras de celulares nas mãos, filmavam todas as cenas. A Lamparina de certa forma ficou aliviada e perplexa. Mais perplexa que aliviada. 

Não entendia o que acontecera, nem o que motivara o ilustre aviltante a tomar tal atitude. Deixou o banheiro e foi até o acesso onde ficava a porta.  Viu, de perto, o estrago que o animal fizera. Suspirou aliviada. Tinha consciência, nenhuma alma caridosa viria em seu auxílio e que em face dessa fatalidade, tomaria para si os prejuízos, o que não seria nada barato. 

Perguntou-se se o dono do ignominioso apareceria se responsabilizando pelos danos. Possivelmente, tais indagações jamais seriam respondidas. Espiou longamente para o dilatado da rua, e viu uma multidão de pessoas. Eram vizinhos. A maioria deles, curiosos que tinham ouvido o furdunço e se achegaram para filmar tudo o que tinha acontecido e depois postar nas redes sociais. Eles se depararam com os caquinhos espalhados pelo chão, o ingresso quebrado, e a doutora chorando copiosamente tentando compreender a extensão da sua desdita. 

Meia dúzia perguntou o que tinha acontecido, e ela fez um breve relato. Ao final da curta explicação dois senhores se mostraram solidários. Outros, com as caras de imbecis mongoloides riram como se a desgraça da dentista lhes fizesse bem. Vivalma perguntou se a pobre doutora estava bem, ou se necessitava de ajuda. Entretanto, ninguém soube dizer de onde viera o pilungo (cavalo ruim) e menos ainda quem seria seu proprietário. Eles disseram que o caso se fazia inusitado, e que ela deveria chamar a imprensa local, a rádio, culminando em levar tudo ao conhecimento do delegado. 

Disseram outros mais afoitos, que aquela tragédia interiorana daria uma história engraçada, e que ela deveria levar na esportiva. A doutora Lamparina agradeceu a fraca solidariedade e a desvigorada falta de senso do ridículo dos moradores e residentes próximos. Por certo, somente uns boçais e ignaros fariam pilhérias da desfortuna alheia. Ela só queria que aquele dia acabasse logo, e que pudesse esquecer o incidente. A coitadinha só queria voltar para casa e descansar. Queria, em paralelo, que o maldito "equidae" (nome científico de equino) nunca mais aparecesse na sua vida. 

Mesmo saco de coices, que o quadrúpede jamais tivesse coragem e retornar à sua calçada. 

Na segunda feira, por volta das quatro da tarde, o milagre. O inconcebível. Um senhor vestido com humildade apareceu trazendo no cabresto o cavalo imprudente. A doutora, ao vê-lo estremeceu. Um vidraceiro e um marceneiro estavam prestes a terminarem os estragos causados pelo funesto e inditoso animal. O pacato senhor chegou e se dirigiu primeiramente aos trabalhadores contratados para a reforma das depredações. 

Pediu mil desculpas culminando em saldar todas as despesas causadas pelo seu animal. Por fim, encarou à doutora, os olhos vermelhos tomados por lágrimas amargas:

— “Sinhoura, mir perdãum. Queru paga os prejuizu. A sinhoura nãum terá que desinborçar ninhum centavu. Só quiria pedir um favor. Se fô pussíver. Cuida do meo cavalu. Desdi a sumana passada eli tá cuma dor di denti dos infernu. Pelu amour di Cristu, cuida do meu pobri pangaré”?   

Fonte: Texto enviado pelo autor 

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