quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 14 -


PÁGINA TRISTE

Há muita dor por este mundo a fora
Muita lágrima à toa derramada;
Muito pranto de mãe angustiada
Que vem saudar o despontar da aurora!

Alma inocente só de amor cercada
A criancinha a soluçar descora,
Talvez no berço onde o menino chora
Também, oh dor, tu queiras, desolada.

Erguer um trono, procurar guarida...
Foge do berço! Não magoes a vida
Desta ave implume, lirial botão...

Queres um ninho, um carinhoso abrigo?
Pois bem! Procura-o neste seio amigo,
Dentro em minh’alma, aqui no coração!
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POBRE FLOR!

Deu-ma um dia antiga companheira
De tempinho feliz de adolescente;
E os meus lábios roçaram docemente
Pelas folhas da nívea feiticeira.

Como se apaga uma ilusão primeira,
Um sonho estremecido e resplendente,
Eu beijei-lhe a corola, rescendente
Inda mais que a da flor da laranjeira.

E como amava o seu formoso brilho!
Tinha-lhe quase essa afeição sagrada
Da jovem mãe ao seu primeiro filho.

Dei-lhe no seio uma pousada franca...
Mas, ai! Depressa ela murchou, coitada!
Doce e mísera flor, cheirosa e branca!
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POMBOS MENSAGEIROS

Transformados em pombos cor de neve,
Entraram-me a cantar pela janela,
A tua carta delicada e leve
E o beijo amigo que envolveste nela.

Ó que alegria para o coração
Onde a Saudade, sempre em flor, renasce!
A carta leve me pousou na mão
E o beijo amigo acarinhou-me a face.

E então, a rir, ó pomba idolatrada!
Eu transformei meu coração em ninho:
Nele repousa a tua carta amada
E canta o beijo a ária do carinho.
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RENASCIMENTO

Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desabrocham flores.

Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.

Ouves, minh’alma? Que prazer no ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranquilo e plácido deserto!

Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o Te Deum, meu coração liberto.
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RECUERDO

Findava o mês de maio envolto e preces,
O doce mês da orações formosas...
Iam com ele as encantadas messes
Dos perfumes, dos sonhos e das rosas.

Era muito à tardinha; as aves mansas
Voavam todas, em formosos pares,
Como se fossem garrulas crianças
Que andassem, rindo, a percorrer os ares!

E eu murmurei ao ver assim voando
Aquelas aves para os brandos ninhos:
"Ah! Quem me dera só andar cantando,
Sempre crianças, como os passarinhos!”
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REGINA MARTYRUM

Lírio do céu, sagrada criatura,
Mãe das crianças e dos pecadores,
Alma divina como a luz e as flores
Das virgens castas a mais casta e pura;

Do azul imenso, dessa imensa altura
Para onde voam nossas grandes dores,
Desce os teus olhos cheios de fulgores
Sobre os meus olhos cheios de amargura!

Na dor sem termo pela negra estrada
Vou caminhando a sós, desatinada,
— Ai! pobre cega sem amparo ou guia!

Sê tu a mão que me conduza ao porto...
Ó doce mãe da luz e do conforto,
Ilumina o terror desta agonia!

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.

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