Certo dia, enquanto que o marido trabalhava, um mendigo manco bateu à porta e pediu uma ajuda. A mulher, que gostava muito de conversar, perguntou-lhe de onde vinha. O mendigo, animado com a perspectiva de conseguir uma boa esmola, disse:
— Venho do Céu, com a permissão de Deus. Quero ver se arranjo aqui na Terra algumas coisas que facilitem minha vida lá em cima.
A mulher reagiu surpresa:
— Quer dizer que os habitantes do Paraíso também passam necessidade?
— E como, senhora! — o mendigo exclamou. — Nem mesmo no Céu existe igualdade de direitos. Lá, os que têm muito vivem melhor do que os que têm pouco... Exatamente como aqui.
A mulher ficou pensativa por alguns momentos. Por fim, disse ao mendigo:
— Meu primeiro marido deve estar por lá, pois era um homem bondoso e sábio. Talvez o senhor o conheça.
— Talvez — o mendigo repetiu, com gravidade. — Como é o nome dele?
— Pello Bidegain — disse a mulher.
O mendigo sorriu;
— Claro, como não haveria de conhecê-lo se ele é justamente o meu melhor amigo!
— Que incrível coincidência! — a mulher exclamou encantada.
— Pois estou lhe dizendo, senhora. Lá em cima, eu e seu primeiro marido somos como unha e carne.
Ansiosa, a mulher pediu:
— Então, dê-me notícias de meu Pello Bidegain. Como é que ele está?
— Infelizmente, não muito bem — o mendigo respondeu, meneando a cabeça com uma expressão de pesar. — Para ser franco, Pello Bidegain anda em sérias dificuldades.
— Que tipo de dificuldades, senhor?
— Financeiras, senhora... Anda sempre mal vestido e nunca tem dinheiro para nada, nem mesmo para as necessidades mais básicas.
— Pobre querido — a mulher murmurou. De súbito, teve uma ideia: — Diga-me, o senhor não poderia levar algumas coisas para ele?
— Claro que sim.
— Então, espere um minuto, por favor.
A mulher entrou em casa e logo voltou com muitos presentes para o falecido:
— Aqui estão dois pares de sapatos e algumas peças de roupa; calças, meias, camisas e também a boina da qual Pello Bidegain nunca se separava. O pobrezinho deixou tudo aqui, antes de ir para o Céu. Naturalmente, nem de longe poderia imaginar que a vida lá em cima fosse tão parecida com a que levamos aqui na Terra...
— É mesmo, senhora. Ninguém adivinharia. — Então o mendigo perguntou: — A senhora não teria também algo de comer?
— Claro que sim. — E a mulher explicou: — Providenciei um pouco de toucinho, chouriço, queijo e alguns pães.
— Está ótimo, senhora. Aposto que Pello Bidegain ficará muito feliz. Mas, depois de se vestir condignamente e saborear todas essas delícias, com certeza desejará coroar a refeição com um bom vinho.
— E o senhor acha que já não pensei nisso? — Sorrindo, a mulher entregou-lhe três garrafas do melhor vinho que tinha em casa.
— Ah, minha senhora, Pello Bidegain ficará tão agradecido!
O mendigo guardou tudo num grande saco que trazia às costas. Já se preparava para ir embora, quando ocorreu-lhe uma nova ideia:
— A senhora não teria também algum dinheiro para mandar a Pello Bidegain?
– Pois era justamente nisso que eu estava pensando.
A mulher deu ao mendigo uma moeda de cinquenta pesetas e pediu:
— Entregue-a para ele, por favor. Diga-lhe que o amo mais do que a qualquer outro homem, inclusive mais do que a Mikel, que é meu atual marido.
— Eu direi, senhora.
Assim, o falso enviado do Céu partiu, coxeando, curvado ao peso dos presentes que levava. Estava tão feliz, que até sentia vontade de dançar ao som de castanholas.
Enquanto isso, Mikel, o segundo marido da mulher, voltava para casa. Ao vê-lo, a esposa disse radiante:
— Você nem imagina o que aconteceu.
— O que foi? — o marido perguntou com estranheza.
— Por que toda essa euforia?
— É que tive notícias de meu querido Pello Bidegain. Soube que ele está no Céu... Mas não tão bem quanto eu imaginava.
— Você diz cada disparate, mulher. O Céu é o lugar ideal para as boas almas que partiram deste mundo. Se Pello Bidegain foi para lá, não poderia ter melhor sorte.
— Acontece que a vida lá em cima é muito parecida com a vida aqui embaixo.
Intrigado, o marido perguntou:
— Mas, afinal, quem foi que lhe deu essa notícia?
— Um mendigo manco que desceu do Céu com a permissão do Senhor — a mulher respondeu. — Aliás, ele foi muito gentil e aceitou levar algumas roupas, alimentos, vinho e dinheiro para Pello Bidegain, que está passando necessidade, pobrezinho.
Compreendendo o que havia acontecido, Mikel saiu de casa. Munido de um grande bastão, montou seu cavalo e já ia partir, quando a mulher gritou:
— Ei, aonde você vai?
— Também tenho um presente para aquele enviado do Céu — ele respondeu sem se voltar. — Mas preciso correr, se quiser alcançá-lo.
Enquanto galopava, Mikel ia pensando na surra que daria naquele mendigo mentiroso e aproveitador. Mas o mendigo, astuto como uma raposa, já esperava por represálias. Caminhava pela estrada receoso e a toda hora olhava sobre os ombros para ver se alguém o
seguia.
A certa altura, avistou um cavaleiro a galope, levantando uma nuvem de poeira. Agindo com rapidez, o mendigo escondeu o grande saco atrás de uns arbustos e sentou-se à beira do caminho.
Quando Mikel o viu, fez com que o cavalo parasse e perguntou:
— Você não viu um mendigo manco, levando um enorme saco nas costas?
— Sim, senhor. Eu o avistei ainda há pouco. Percebi até que ele estava assustado, pois volta e meia olhava para trás e corria, arrastando a perna direita. E quanto mais olhava para trás, mais depressa o pobre diabo tentava correr. Por fim, acabou entrando naquela trilha cheia de espinheiros. Mas aposto que não conseguirá chegar muito longe, por ali. O senhor nao terá dificuldade alguma em alcançá-lo.
— Acontece que a trilha é estreita demais para meu cavalo.
Então vá a pé, senhor, e vá tranquilo, que eu tomarei conta do animal.
— Nesse caso, eu lhe agradeço.
Enquanto Mikel se embrenhava na trilha, o mendigo pegou o saco que havia escondido, pendurou-o na sela, montou o cavalo e partiu, congratulando-se com o destino.' Decididamente, aquele era seu dia de sorte.
Horas depois, Mikel voltou para casa, triste e abatido. Mas fingiu-se muito calmo, até alegre, para que a mulher não o importunasse com perguntas que ele não gostaria de responder.
Ao vê-lo entrar, ela disse:
— E então? Conseguiu alcançar o mendigo?
— Claro.
— E o que foi que você lhe deu?
– O cavalo... Para que chegasse mais rápido ao Céu.
Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.
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