3 — O grupo se justapõe à comunidade
A partir dessa etapa preliminar, em que os estudantes se articulam e adquirem consciência do seu estado, forma-se o que se poderia chamar a sua sociabilidade específica. Mesmo antes de 1840 eles já aparecem como grupo diferenciado na pequena cidade de então (doze a quinze mil habitantes); a partir mais ou menos daquele ano, firma-se nitidamente o processo de elaboração de uma expressão própria desse grupo. Imaginemos o estado de coisas àquela altura na capital sossegada e provinciana, que um acadêmico irreverente definia assim: "Depois, o povo paulista tem o mesmo tipo: é monótono por excelência. Chilenas, banguês, burros, padres, capas, mantilhas, lama, caipiras (machos e fêmeas) eis o que encontrava Genesco". Os padrões sociais previam o comportamento de sitiantes, proprietários, comerciantes, advogados, magistrados, funcionários, deputados — isto é, daquilo que os rapazes seriam depois do curso, depois de casados, compadres, pais de família, liberais ou conservadores, almoçando às oito, jantando às três, ceando às sete, dormindo às nove. Mas que padrões se ajustariam ao comportamento de dezenas e logo centenas de moços de gravata lavada, ocupados em atividades tão fora do esquadro? No flanco da comunidade paulistana cresceu e se firmou, com características próprias, o grupo diferenciado de acadêmicos.
Na idade em que estavam, de passagem da adolescência à maturidade, quase todos longe das famílias, socialmente colocados aquém da vida prática, nutridos de idéias e princípios diferentes dos que norteavam os paulistanos, é natural que desenvolvessem tipos excepcionais de comportamento. Antes, tinham sido meninos de família, como os outros; depois, seriam letrados, políticos e proprietários, como os outros. No breve curso da Academia, porém, eram algo diferente. Tanto mais diferentes, quanto os haviam concentrado na pequena e pacata São Paulo, que não possuía estrutura social constituída de modo a englobá-los.
Desse caráter de exceção nutriu-se a sua sociabilidade peculiar, definida por determinados tipos de comportamento, determinada consciência corporativa, e, finalmente, uma expressão intelectual própria.
A sua localização histórica é reconhecível pelo apogeu das manifestações características, que podemos delimitar, de um lado, pela fundação da Sociedade Epicuréia (1845); de outro, pela estadia de Castro Alves (1868). A partir de 1870 a convivência acadêmica se vai alterando. O crescimento rápido da cidade, a diferenciação crescente das funções, modificaram pouco a pouco o sistema de relações entre os dois grupos — o de estudantes e a comunidade. Aquele foi perdendo o relevo próprio, encontrando vias cada vez mais numerosas de conexão com esta, dissolvendo-se na vida comum. Em consequência, perdeu a sua gloriosa exceção, embora não a sua importância.
Na fase que nos interessa, portanto, o "corpo acadêmico" se define sociologicamente como um segmento diferenciado na estrutura da cidade, à qual por enquanto se justapõe, sem propriamente incorporar-se, caracterizando-se pela formação de uma consciência grupal própria. A boêmia e a literatura constituem a manifestação mais tangível desta, configurando o tipo clássico do estudante paulistano, exprimindo o seu ethos peculiar. É verdade que sempre houve numerosos rapazes alheios à vida acadêmica, tendendo por isto a integrar-se nos outros agrupamentos da comunidade e aproximando-se dos seus padrões. Eram os que decoravam o compêndio, cortejavam bons partidos, agradavam os figurões — antecipando-se à vida. Mas o fato é que os momentos de crise tornavam patente o elevado grau de coesão estudantil, como foi o caso, em 1843, das assuadas ao presidente Joaquim José Luís de Sousa, quando a prisão de dois rapazes levou grande parte dos colegas a se constituírem prisioneiros em solidariedade. E mais ainda no chamado "conflito dos cadetes" (1854), em que houve um morto e a cidade se pôs em pé de guerra, acabando tudo com a remoção do batalhão do Exército envolvido nas ocorrências. Nessa ocasião, toda a Academia saiu a limpo, a despeito da situação dramática, reagindo coesa, exigindo e obtendo desagravos aos seus brios, que reputara ofendidos.
Esta situação criava tensões frequentes entre os estudantes e a comunidade, e não há melhor prova da estrutura dual que era então a de São Paulo do que o seu reconhecimento tácito pela administração, nomeando em 1851 e mantendo por longos anos no cargo de delegado de polícia um lente da Faculdade, o conselheiro Furtado, que nesta qualidade servia de ponte entre a população e o grupo estudantil.
Além das estudantadas e da boêmia, a sociabilidade acadêmica se manifestava de modo mais estruturado nas "repúblicas", agremiações literárias, jornais e revistas.
Há em São Paulo uma reunião original, vivendo louca, caprichosa e interessante, que tem uma crônica importantíssima, mas que varia tanto, como o caráter de seus protagonistas.
Não sabemos que mente de poeta, ou de socialista observador, batizou essa reunião sob o nome simpático de República.
Três ou quatro rapazes reúnem-se, pactuam e vão viver na mesma casa, fazendo em comum as despesas do alimento, do aluguel etc. Eis a República proclamada.
Estruturadas pelo princípio da origem comum (taubateanos, mineiros, fluminenses) ou do interesse comum (troça, literatura, estudo), elas eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades não apenas de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originaram muitos escritos, muitos projetos literários. Pelos fins do decênio de 1840, nelas se reuniam para improvisar bestialógicos em prosa e verso (gênero da mais alta importância, cujas produções se dispersaram infelizmente quase todas) João Cardoso de Menezes, Silveira de Sousa, José Bonifácio, o moço, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães — autor do estupendo soneto:
Eu vi dos pólos o gigante alado…
Das repúblicas a sociabilidade literária se expandia pelos grêmios, inaugurados pela Filomática: o Ensaio Filosófico, 1850; o Ateneu Paulistano, 1852; a Associação Culto à Ciência, 1857 (de preparatorianos); o Instituto Acadêmico, 1858; o Clube Literário, o Instituto Científico. Merece lugar à parte a Epicuréia (1845), espécie de ponto de encontro entre a literatura e a vida onde os jovens procuraram dar realidade às suas imaginações românticas. Foi uma experiência do maior significado para definir o que houve de mais característico no Romantismo paulistano, na qual o exemplo conscientemente seguido dos personagens de Byron e Musset foi entroncar-se inconscientemente na tradição do marquês de Sade.
Algumas dessas associações tiveram o seu periódico, destacando-se os famosos Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano e Ensaios Literários do Ateneu Paulistano. E houve jornais, como o Acaiaba (1851), O Guaianá (1856) (cujos nomes indicam a tendência), A Academia (1856), íris (1857).
Concluindo, registremos, do ponto de vista que nos interessa, o caráter complexo e multifuncional do grupo estudantino, no que se refere à literatura.
Note-se, com efeito, que ele constituía um meio estimulante para a produção literária, seja envolvendo o estudante numa atmosfera de exceção, seja integrando-o num sistema de relações em que a atitude literária predominava. Muita gente, que pela vida afora nunca mais ia abrir um livro de ficção ou de poesia, era desta maneira conduzida a pagar o seu tributo, contribuindo para o patrimônio do grupo com produções as mais das vezes sem maior significado estético.
Mais ainda: era um sistema de intercâmbio literário, garantindo o curso das produções, seja por escrito, seja nas frequentes sessões de grêmio, seja nos recitativos, discursos e debates de república ou tertúlia. Era uma bolsa de livros, trocados, emprestados, filados — circulando de qualquer forma, na falta de bibliotecas e livrarias. Lembremos a importância decisiva que teve na formação de José de Alencar o fato de morar na República de um amigo de Francisco Otaviano — cujos livros pôde assim devorar, familiarizando-se com a literatura francesa, sobretudo Balzac. Conheço uma coleção encadernada dos Ensaios literários, em cuja primeira página se lê, numa letrinha corrente e amarelecida: "Foi arranjado com muito custo e por isso é infilável por sua natureza". Nada mais significativo das formas estudantis de circulação bibliográfica…
Além disso, as repúblicas constituíam o público, — elemento básico no funcionamento e na continuidade da literatura. No século passado, os estudantes de São Paulo tiveram este privilégio pouco vulgar no Brasil de então: saída certa para a sua atividade intelectual. Imagine-se o estímulo que decorria, devido à ressonância entre os colegas, espécie de auditório ou conjunto permanente de leitores, cuja opinião formava pedestal para a evidência das obras na comunidade e eventualmente no país.
Finalmente, o corpo estudantil fornecia a crítica, a sistematização das apreciações impressionistas, a tentativa de interpretar o significado das obras. Nas revistas e nos jornaizinhos, censores e apologistas ombreavam com poetas e prosadores. Alguns, da melhor e mais promissora qualidade, como Álvares de Azevedo e Antônio Joaquim de Macedo Soares — este, um embrião de grande crítico, sem dúvida superior aos que então pontificavam. Dedicando grande interesse à análise dos trabalhos de acadêmicos e ex-acadêmicos, ele enriquece as coleções da Revista Mensal, dos Ensaios e, no Rio, da Revista Popular, com um juízo agudo e equilibrado, que é pena tenha sido desviado em seguida para outros setores.
Estas considerações nada significam, todavia, se não lhes juntarmos uma última, a saber, que o Romantismo facilitou a constituição autárquica do corpo acadêmico, fornecendo-lhe uma ideologia adequada, pelas três vias em que se manifestou aqui: nacionalismo indianista, sentimentalismo ultra-romântico, satanismo. O primeiro, menos que os outros; o terceiro, mais do que todos.
Depois da publicação das poesias de Gonçalves Dias, o regato brotado na fonte de Nênia, de Firmino, alargou-se numa torrente imperiosa, a cujo fio se deixaram ir muitos dos jovens. O Acaiaba, redigido por Couto de Magalhães, depois o Guaianá, votaram-se ao Indianismo, que alastrou também pelas outras revistas, em poesia e crítica. Reconhecido por todos como fundador da poesia brasileira, Gonçalves Dias era por alguns considerado o modelo necessário. Dentro dos critérios de nacionalismo estético, imperantes em nosso Romantismo, julgou-se o valor dos poetas pela presença ou ausência, na sua obra, do pitoresco nacional, mormente o indígena. Álvares de Azevedo, embora admirado, era tido por muitos como pouco, ou não brasileiro, poeticamente. "Manuel Álvares de Azevedo pouco e muito pouco tem de brasileiro: apontaremos só a Canção do sertanejo", escrevem dois estudantes. "As suas poesias, embelezadas nos perfumes da escola byroniana" — diz outro — "não foram inspiradas ao fogo de nossos lares. As harmonias do nosso céu, os perfumes de nossa terra não ofereciam àquela alma ardente, senão um espetáculo quase sem vida; eram maravilhas por assim dizer murchas, ante as quais o poeta não se inclinava". Pode-se ver a que ponto chegou a obsessão indianista dos estudantes de então por esta primeira estrofe de O canto de Ibitinga, de L. B. Castilho:
Deixei taba adornada de crânios,
Meus djicks, meu forte cuang,
Deixei inis aonde embalava
Meus amores mais doces que o pang.
E o mocinho explica em notas, complacentemente, que djick é flecha, cuang é arco, inis é rede, pang é mel…
O Indianismo chegou pois a adquirir aspectos característicos na atmosfera acadêmica. Não obstante, era linguagem de maior comunicabilidade, ligando os estudantes ao nacionalismo — que se manifestou em São Paulo de forma ainda mais geral, na celebração constante do Ipiranga, tema localista correspondente ao que foram o Dois de Julho, na Bahia, a Guerra Holandesa, em Pernambuco, a Inconfidência, em Minas.
Igualmente acessível ao gosto comum foi o sentimentalismo ultra-romântico, — a idealização amorosa, a pieguice, a melancolia, vazadas em ritmos melodiosos e fáceis, desenvolvidos sob a inspiração direta dos portugueses. Constitui a maioria da produção estudantina do tempo, e bem se compreende a importância que teve para definir a ideologia do grupo, graças à sua insistência no poeta solitário, incompreendido, infeliz, separado por um abismo da comunidade dos homens comuns. Era uma solução para exprimir a posição autárquica do estudante, confirmando-o na sua singularidade, na sua diferença.
Ide, minhas canções, voai aos ermos,
Filhas da solidão, voltai a ela!
[B. Guimarães]
Em face do burguês que lhe esconde a filha e resmunga com as suas tropelias, o moço se define como alma de escol, incompreendida do mundo, fadada à infelicidade. Abundam nas revistas de então as diatribes contra a hipocrisia, a corrupção, a dureza da sociedade — saídas por vezes da pena de algum salteador noturno de galinheiros, ou comparsa de pândegas inconfessáveis. Em face da comunidade estática, o grupo trepidante de moços encontra na atitude romântica uma solução ideal para exprimir a sua diferenciação.
Foi, contudo, o satanismo que constituiu a manifestação mais típica dessa singularidade do poeta-estudante nos meados do século, fornecendo uma ideologia de revolta espiritual, de negação dos valores comuns, de desenfreado egotismo. Foi ele o ingrediente principal das lendas joviais e turvas que envolvem a vida acadêmica de São Paulo numa atmosfera de desvario. A melancolia, o humor negro, o sarcasmo, o gosto da morte traçam à roda do grupo estudantil um círculo de isolamento que acentua, para o observador, o seu caráter de exceção na sociedade ambiente. É a típica tonalidade paulistana, difundida por todo o país, contribuição original desta cidade ao Romantismo brasileiro, ligada à pessoa e à obra de Álvares de Azevedo — principalmente o Macário e A noite na taverna. Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e ele encarnam este momento da nossa literatura — sólida trinca de amigos que fascinou muitas gerações de acadêmicos-literatos. E realmente participaram de tal modo dos padrões excepcionais do seu grupo, que não se acomodaram fora dele: Manuel Antônio morreu antes de deixá-lo; Aureliano jamais conseguiu escapar ao seu influxo, a ponto de morrer de bêbado, inadaptado integral à vida; Bernardo deixou a poesia (pelo menos a verdadeira), buscando outro rumo no romance, e na vida foi sempre um inadaptado pouco melhor que o seu infeliz e fraternal amigo.
Com esta corrente, o grupo da Academia atingiu o ponto mais alto da diferenciação e forjou a sua expressão mais característica. Não era possível ir mais longe sem a ruptura total com a sociedade ambiente. E de fato não foi. As "exagerações" da sua poesia não cessam de ser apontadas nos jornaizinhos, e o grupo acadêmico, apesar do fascínio exercido pela lembrança do satanismo, irá pouco a pouco descobrindo conexões que possibilitem a sua integração na comunidade. Varela, que veio pouco depois refazer na vida, e um pouco na poesia, o caminho da famosa tríade, já não passaria de um continuador. Castro Alves dará o sinal da mudança deslocando os rapazes da sua autarquia para a vasta comunhão dos problemas sociais. E o grupo, crescido como floração estranha no flanco da pequena cidade, integrar-se-á lentamente na vida da grande cidade que desponta.
–––––––––––––-
continua……………
–––––––––––––––-
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
A partir dessa etapa preliminar, em que os estudantes se articulam e adquirem consciência do seu estado, forma-se o que se poderia chamar a sua sociabilidade específica. Mesmo antes de 1840 eles já aparecem como grupo diferenciado na pequena cidade de então (doze a quinze mil habitantes); a partir mais ou menos daquele ano, firma-se nitidamente o processo de elaboração de uma expressão própria desse grupo. Imaginemos o estado de coisas àquela altura na capital sossegada e provinciana, que um acadêmico irreverente definia assim: "Depois, o povo paulista tem o mesmo tipo: é monótono por excelência. Chilenas, banguês, burros, padres, capas, mantilhas, lama, caipiras (machos e fêmeas) eis o que encontrava Genesco". Os padrões sociais previam o comportamento de sitiantes, proprietários, comerciantes, advogados, magistrados, funcionários, deputados — isto é, daquilo que os rapazes seriam depois do curso, depois de casados, compadres, pais de família, liberais ou conservadores, almoçando às oito, jantando às três, ceando às sete, dormindo às nove. Mas que padrões se ajustariam ao comportamento de dezenas e logo centenas de moços de gravata lavada, ocupados em atividades tão fora do esquadro? No flanco da comunidade paulistana cresceu e se firmou, com características próprias, o grupo diferenciado de acadêmicos.
Na idade em que estavam, de passagem da adolescência à maturidade, quase todos longe das famílias, socialmente colocados aquém da vida prática, nutridos de idéias e princípios diferentes dos que norteavam os paulistanos, é natural que desenvolvessem tipos excepcionais de comportamento. Antes, tinham sido meninos de família, como os outros; depois, seriam letrados, políticos e proprietários, como os outros. No breve curso da Academia, porém, eram algo diferente. Tanto mais diferentes, quanto os haviam concentrado na pequena e pacata São Paulo, que não possuía estrutura social constituída de modo a englobá-los.
Desse caráter de exceção nutriu-se a sua sociabilidade peculiar, definida por determinados tipos de comportamento, determinada consciência corporativa, e, finalmente, uma expressão intelectual própria.
A sua localização histórica é reconhecível pelo apogeu das manifestações características, que podemos delimitar, de um lado, pela fundação da Sociedade Epicuréia (1845); de outro, pela estadia de Castro Alves (1868). A partir de 1870 a convivência acadêmica se vai alterando. O crescimento rápido da cidade, a diferenciação crescente das funções, modificaram pouco a pouco o sistema de relações entre os dois grupos — o de estudantes e a comunidade. Aquele foi perdendo o relevo próprio, encontrando vias cada vez mais numerosas de conexão com esta, dissolvendo-se na vida comum. Em consequência, perdeu a sua gloriosa exceção, embora não a sua importância.
Na fase que nos interessa, portanto, o "corpo acadêmico" se define sociologicamente como um segmento diferenciado na estrutura da cidade, à qual por enquanto se justapõe, sem propriamente incorporar-se, caracterizando-se pela formação de uma consciência grupal própria. A boêmia e a literatura constituem a manifestação mais tangível desta, configurando o tipo clássico do estudante paulistano, exprimindo o seu ethos peculiar. É verdade que sempre houve numerosos rapazes alheios à vida acadêmica, tendendo por isto a integrar-se nos outros agrupamentos da comunidade e aproximando-se dos seus padrões. Eram os que decoravam o compêndio, cortejavam bons partidos, agradavam os figurões — antecipando-se à vida. Mas o fato é que os momentos de crise tornavam patente o elevado grau de coesão estudantil, como foi o caso, em 1843, das assuadas ao presidente Joaquim José Luís de Sousa, quando a prisão de dois rapazes levou grande parte dos colegas a se constituírem prisioneiros em solidariedade. E mais ainda no chamado "conflito dos cadetes" (1854), em que houve um morto e a cidade se pôs em pé de guerra, acabando tudo com a remoção do batalhão do Exército envolvido nas ocorrências. Nessa ocasião, toda a Academia saiu a limpo, a despeito da situação dramática, reagindo coesa, exigindo e obtendo desagravos aos seus brios, que reputara ofendidos.
Esta situação criava tensões frequentes entre os estudantes e a comunidade, e não há melhor prova da estrutura dual que era então a de São Paulo do que o seu reconhecimento tácito pela administração, nomeando em 1851 e mantendo por longos anos no cargo de delegado de polícia um lente da Faculdade, o conselheiro Furtado, que nesta qualidade servia de ponte entre a população e o grupo estudantil.
Além das estudantadas e da boêmia, a sociabilidade acadêmica se manifestava de modo mais estruturado nas "repúblicas", agremiações literárias, jornais e revistas.
Há em São Paulo uma reunião original, vivendo louca, caprichosa e interessante, que tem uma crônica importantíssima, mas que varia tanto, como o caráter de seus protagonistas.
Não sabemos que mente de poeta, ou de socialista observador, batizou essa reunião sob o nome simpático de República.
Três ou quatro rapazes reúnem-se, pactuam e vão viver na mesma casa, fazendo em comum as despesas do alimento, do aluguel etc. Eis a República proclamada.
Estruturadas pelo princípio da origem comum (taubateanos, mineiros, fluminenses) ou do interesse comum (troça, literatura, estudo), elas eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades não apenas de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originaram muitos escritos, muitos projetos literários. Pelos fins do decênio de 1840, nelas se reuniam para improvisar bestialógicos em prosa e verso (gênero da mais alta importância, cujas produções se dispersaram infelizmente quase todas) João Cardoso de Menezes, Silveira de Sousa, José Bonifácio, o moço, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães — autor do estupendo soneto:
Eu vi dos pólos o gigante alado…
Das repúblicas a sociabilidade literária se expandia pelos grêmios, inaugurados pela Filomática: o Ensaio Filosófico, 1850; o Ateneu Paulistano, 1852; a Associação Culto à Ciência, 1857 (de preparatorianos); o Instituto Acadêmico, 1858; o Clube Literário, o Instituto Científico. Merece lugar à parte a Epicuréia (1845), espécie de ponto de encontro entre a literatura e a vida onde os jovens procuraram dar realidade às suas imaginações românticas. Foi uma experiência do maior significado para definir o que houve de mais característico no Romantismo paulistano, na qual o exemplo conscientemente seguido dos personagens de Byron e Musset foi entroncar-se inconscientemente na tradição do marquês de Sade.
Algumas dessas associações tiveram o seu periódico, destacando-se os famosos Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano e Ensaios Literários do Ateneu Paulistano. E houve jornais, como o Acaiaba (1851), O Guaianá (1856) (cujos nomes indicam a tendência), A Academia (1856), íris (1857).
Concluindo, registremos, do ponto de vista que nos interessa, o caráter complexo e multifuncional do grupo estudantino, no que se refere à literatura.
Note-se, com efeito, que ele constituía um meio estimulante para a produção literária, seja envolvendo o estudante numa atmosfera de exceção, seja integrando-o num sistema de relações em que a atitude literária predominava. Muita gente, que pela vida afora nunca mais ia abrir um livro de ficção ou de poesia, era desta maneira conduzida a pagar o seu tributo, contribuindo para o patrimônio do grupo com produções as mais das vezes sem maior significado estético.
Mais ainda: era um sistema de intercâmbio literário, garantindo o curso das produções, seja por escrito, seja nas frequentes sessões de grêmio, seja nos recitativos, discursos e debates de república ou tertúlia. Era uma bolsa de livros, trocados, emprestados, filados — circulando de qualquer forma, na falta de bibliotecas e livrarias. Lembremos a importância decisiva que teve na formação de José de Alencar o fato de morar na República de um amigo de Francisco Otaviano — cujos livros pôde assim devorar, familiarizando-se com a literatura francesa, sobretudo Balzac. Conheço uma coleção encadernada dos Ensaios literários, em cuja primeira página se lê, numa letrinha corrente e amarelecida: "Foi arranjado com muito custo e por isso é infilável por sua natureza". Nada mais significativo das formas estudantis de circulação bibliográfica…
Além disso, as repúblicas constituíam o público, — elemento básico no funcionamento e na continuidade da literatura. No século passado, os estudantes de São Paulo tiveram este privilégio pouco vulgar no Brasil de então: saída certa para a sua atividade intelectual. Imagine-se o estímulo que decorria, devido à ressonância entre os colegas, espécie de auditório ou conjunto permanente de leitores, cuja opinião formava pedestal para a evidência das obras na comunidade e eventualmente no país.
Finalmente, o corpo estudantil fornecia a crítica, a sistematização das apreciações impressionistas, a tentativa de interpretar o significado das obras. Nas revistas e nos jornaizinhos, censores e apologistas ombreavam com poetas e prosadores. Alguns, da melhor e mais promissora qualidade, como Álvares de Azevedo e Antônio Joaquim de Macedo Soares — este, um embrião de grande crítico, sem dúvida superior aos que então pontificavam. Dedicando grande interesse à análise dos trabalhos de acadêmicos e ex-acadêmicos, ele enriquece as coleções da Revista Mensal, dos Ensaios e, no Rio, da Revista Popular, com um juízo agudo e equilibrado, que é pena tenha sido desviado em seguida para outros setores.
Estas considerações nada significam, todavia, se não lhes juntarmos uma última, a saber, que o Romantismo facilitou a constituição autárquica do corpo acadêmico, fornecendo-lhe uma ideologia adequada, pelas três vias em que se manifestou aqui: nacionalismo indianista, sentimentalismo ultra-romântico, satanismo. O primeiro, menos que os outros; o terceiro, mais do que todos.
Depois da publicação das poesias de Gonçalves Dias, o regato brotado na fonte de Nênia, de Firmino, alargou-se numa torrente imperiosa, a cujo fio se deixaram ir muitos dos jovens. O Acaiaba, redigido por Couto de Magalhães, depois o Guaianá, votaram-se ao Indianismo, que alastrou também pelas outras revistas, em poesia e crítica. Reconhecido por todos como fundador da poesia brasileira, Gonçalves Dias era por alguns considerado o modelo necessário. Dentro dos critérios de nacionalismo estético, imperantes em nosso Romantismo, julgou-se o valor dos poetas pela presença ou ausência, na sua obra, do pitoresco nacional, mormente o indígena. Álvares de Azevedo, embora admirado, era tido por muitos como pouco, ou não brasileiro, poeticamente. "Manuel Álvares de Azevedo pouco e muito pouco tem de brasileiro: apontaremos só a Canção do sertanejo", escrevem dois estudantes. "As suas poesias, embelezadas nos perfumes da escola byroniana" — diz outro — "não foram inspiradas ao fogo de nossos lares. As harmonias do nosso céu, os perfumes de nossa terra não ofereciam àquela alma ardente, senão um espetáculo quase sem vida; eram maravilhas por assim dizer murchas, ante as quais o poeta não se inclinava". Pode-se ver a que ponto chegou a obsessão indianista dos estudantes de então por esta primeira estrofe de O canto de Ibitinga, de L. B. Castilho:
Deixei taba adornada de crânios,
Meus djicks, meu forte cuang,
Deixei inis aonde embalava
Meus amores mais doces que o pang.
E o mocinho explica em notas, complacentemente, que djick é flecha, cuang é arco, inis é rede, pang é mel…
O Indianismo chegou pois a adquirir aspectos característicos na atmosfera acadêmica. Não obstante, era linguagem de maior comunicabilidade, ligando os estudantes ao nacionalismo — que se manifestou em São Paulo de forma ainda mais geral, na celebração constante do Ipiranga, tema localista correspondente ao que foram o Dois de Julho, na Bahia, a Guerra Holandesa, em Pernambuco, a Inconfidência, em Minas.
Igualmente acessível ao gosto comum foi o sentimentalismo ultra-romântico, — a idealização amorosa, a pieguice, a melancolia, vazadas em ritmos melodiosos e fáceis, desenvolvidos sob a inspiração direta dos portugueses. Constitui a maioria da produção estudantina do tempo, e bem se compreende a importância que teve para definir a ideologia do grupo, graças à sua insistência no poeta solitário, incompreendido, infeliz, separado por um abismo da comunidade dos homens comuns. Era uma solução para exprimir a posição autárquica do estudante, confirmando-o na sua singularidade, na sua diferença.
Ide, minhas canções, voai aos ermos,
Filhas da solidão, voltai a ela!
[B. Guimarães]
Em face do burguês que lhe esconde a filha e resmunga com as suas tropelias, o moço se define como alma de escol, incompreendida do mundo, fadada à infelicidade. Abundam nas revistas de então as diatribes contra a hipocrisia, a corrupção, a dureza da sociedade — saídas por vezes da pena de algum salteador noturno de galinheiros, ou comparsa de pândegas inconfessáveis. Em face da comunidade estática, o grupo trepidante de moços encontra na atitude romântica uma solução ideal para exprimir a sua diferenciação.
Foi, contudo, o satanismo que constituiu a manifestação mais típica dessa singularidade do poeta-estudante nos meados do século, fornecendo uma ideologia de revolta espiritual, de negação dos valores comuns, de desenfreado egotismo. Foi ele o ingrediente principal das lendas joviais e turvas que envolvem a vida acadêmica de São Paulo numa atmosfera de desvario. A melancolia, o humor negro, o sarcasmo, o gosto da morte traçam à roda do grupo estudantil um círculo de isolamento que acentua, para o observador, o seu caráter de exceção na sociedade ambiente. É a típica tonalidade paulistana, difundida por todo o país, contribuição original desta cidade ao Romantismo brasileiro, ligada à pessoa e à obra de Álvares de Azevedo — principalmente o Macário e A noite na taverna. Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e ele encarnam este momento da nossa literatura — sólida trinca de amigos que fascinou muitas gerações de acadêmicos-literatos. E realmente participaram de tal modo dos padrões excepcionais do seu grupo, que não se acomodaram fora dele: Manuel Antônio morreu antes de deixá-lo; Aureliano jamais conseguiu escapar ao seu influxo, a ponto de morrer de bêbado, inadaptado integral à vida; Bernardo deixou a poesia (pelo menos a verdadeira), buscando outro rumo no romance, e na vida foi sempre um inadaptado pouco melhor que o seu infeliz e fraternal amigo.
Com esta corrente, o grupo da Academia atingiu o ponto mais alto da diferenciação e forjou a sua expressão mais característica. Não era possível ir mais longe sem a ruptura total com a sociedade ambiente. E de fato não foi. As "exagerações" da sua poesia não cessam de ser apontadas nos jornaizinhos, e o grupo acadêmico, apesar do fascínio exercido pela lembrança do satanismo, irá pouco a pouco descobrindo conexões que possibilitem a sua integração na comunidade. Varela, que veio pouco depois refazer na vida, e um pouco na poesia, o caminho da famosa tríade, já não passaria de um continuador. Castro Alves dará o sinal da mudança deslocando os rapazes da sua autarquia para a vasta comunhão dos problemas sociais. E o grupo, crescido como floração estranha no flanco da pequena cidade, integrar-se-á lentamente na vida da grande cidade que desponta.
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continua……………
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
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